quinta-feira, 11 de julho de 2013

A Voz de Brasília

Brasília Encontro, Revista do Correio Braziliense, edição julho de 2013 
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A voz de Brasília
Empresários, políticos, artistas, representantes da sociedade e manifestantes analisam os protestos e sugerem o que pode ser feito para melhorar a vida na capital
Leilane Menezes - Colunista Publicação:09/07/2013 14:39Atualização:10/07/2013 18:07
Na Marcha do Vinagre, em 17 de junho, os manifestantes subiram às cúpulas do Congresso Nacional: imagem rodou o mundo (Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Press)
Na Marcha do Vinagre, em 17 de junho, os manifestantes subiram às cúpulas do Congresso Nacional: imagem rodou o mundo
 Planejada para delimitar, Brasília nasceu cheia de explicações sobre o uso dos espaços urbanos. Um setor é dos hotéis; outro, apenas de hospitais. Até a diversão tem um setor só dela. Embora as definições nem sempre sejam respeitadas, a cidade não se mistura. Caminhos pouco se cruzam. O transporte público não embaralha classes sociais, como se vê fora do país. Ônibus abarrotados de operários, carros que carregam apenas o motorista e as dificuldades dos pedestres – faltam calçadas e passarelas – reforçam os contrastes das ruas, diariamente. Talvez por isso alguns tenham dito que Brasília não se parecia consigo mesma, no último 17 de junho, quando 10 mil pessoas, em grande parte jovens, de classes sociais diversas, dividiram o espaço mais emblemático do quadradinho, a Esplanada dos Ministérios.
A maior das manifestações de junho: no dia 20, 35 mil pessoas tomaram as ruas num protesto que começou pacífico e acabou com vandalismo (Ronaldo de Oliveira/CB/DA PRESS)
A maior das manifestações de junho: no dia 20, 35 mil pessoas tomaram as ruas num protesto que começou pacífico e acabou com vandalismo

As faixas do Eixo Monumental, sempre cheias de motores, foram pisadas por quem caminhava rumo à mudança. Deu-se ao evento, criado e alimentado em redes sociais, o nome de Marcha do Vinagre. Queriam ironizar a prisão de manifestantes contra o aumento do preço das passagens de ônibus em São Paulo que carregavam a solução líquida, capaz de amenizar efeitos de bombas de gás lacrimogêneo, método mais usado pela polícia para dispersar protestos.
Simbolismo: em frente a um cartão-postal da cidade,a imagem de Tatiane Andrade representa a força da juventude brasiliense (Bruno Pimentel/Encontro/DA Press)
Simbolismo: em frente a um cartão-postal da cidade,a imagem de Tatiane Andrade representa a força da juventude brasiliense

O estudante do ensino médio Jimmy Lima, de 17 anos, aluno da rede pública, morador do Plano Piloto, foi o criador da página virtual que convidava todos a marcharem. Teve a ideia após se chocar com a violência policial em São Paulo. Em dois dias, 210 mil pessoas foram convidadas e 15 mil confirmaram presença. “Não era possível ficar parado diante de tudo o que estava acontecendo. Não imaginava essa proporção”, afirmou Jimmy. A mãe dele, a coordenadora de um colégio público, Janaína de Morais Carreiro, de 37 anos, estava entre os caras-pintadas, em 1992, quando 100 mil protestaram em frente ao Palácio do Planalto pelo impeachment do então presidente Fernando Collor, atual senador, e apoiou a atitude do filho.
Policiais reprimiram com violência manifestação contra os gastos excessivos com a Copa: protesto marcou a abertura da Copa das Confederações (Janine Moraes/CB/D.A Press)
Policiais reprimiram com violência manifestação contra os gastos excessivos com a Copa: protesto marcou a abertura da Copa das Confederações

Há várias análises para o poder de mobilização dos protestos atuais. As explicações vão do aumento da parcela da população com acesso à internet ao crescimento da classe média (com melhores salários, mas ainda sem acesso a boas escolas e hospitais e, portanto, indignada). Uma das visões, além das causas históricas, econômicas e culturais, enxerga a questão pelo viés da psicologia. “O movimento de ocupação das ruas, aparentemente, ganhou muita força por meio da internet, que ajudou a romper com o que os psicólogos sociais chamam de ignorância pluralística. A despeito do nome pomposo, é um estado psicológico corriqueiro e manifesta-se em inúmeras situações sociais. Diz respeito à nossa incapacidade de conhecer o que realmente ‘está na cabeça’ de nossos concidadãos, colegas estudantes ou de trabalho, e constitui-se em um inibidor poderoso do comportamento”, explicam os professores do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de Brasília (UnB) Fabio Iglesias e Ronaldo Pilati, em artigo publicado pela instituição e disponível no site oficial.
Em 19 de junho, durante protesto de rodoviários, na Rodoviária do Plano Piloto: manifestantes colocaram fogo em ônibus (Janine Moraes/CB/D.A Press)
Em 19 de junho, durante protesto de rodoviários, na Rodoviária do Plano Piloto: manifestantes colocaram fogo em ônibus

De acordo com os especialistas, o caráter de conexão em rede permite o acesso a inúmeros conteúdos, de milhares de pessoas, que trazem uma clara sinalização de que a insatisfação é compartilhada, produzindo um efeito cascata e sem precedentes de rompimento do padrão conformista.
No dia 17, quem saía do trabalho parou para ver a manifestação, que terminou com gente no alto do poder, literalmente, ao subir na plataforma do Congresso. A sombra do povo cresceu, refletiu-se nas cúpulas, símbolos do lugar onde decisões importantes são tomadas. A Polícia Militar negociou a descida e reagiu quando um grupo tentou invadir o prédio, usou gás lacrimogêneo e spray de pimenta, sem força física ou tiros.

Cenário diferente do visto em dias anteriores. Três dias antes da Marcha do Vinagre, em 14 de junho, 250 pessoas queimaram pneus em frente ao Estádio Nacional, para questionar os gastos da Copa. No dia seguinte, durante o jogo entre Brasil e Japão, a polícia usou balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, cavalaria e spray de pimenta, em frente à arena, e foi acusada de cometer excessos. Pelo menos 27 feridos foram encaminhados a hospitais. A maior manifestação do período ocorreu em 20 de junho. Começou tranquila, apesar dos 35 mil adeptos. No fim, um espetáculo do vandalismo, com ministérios, o Palácio do Itamaraty e a Catedral depredados.
Antes da depredação do Itamaraty, o proteto do dia 20 seguia em paz: 35 mil pessoas, de vários movimentos, juntaram-se na Esplanada (Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Press)
Antes da depredação do Itamaraty, o proteto do dia 20 seguia em paz: 35 mil pessoas, de vários movimentos, juntaram-se na Esplanada

A repressão policial e a presença de arruaceiros entre manifestantes não diminuíram as conquistas do movimento. A Câmara dos Deputados derrubou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, que limitava o poder de investigação do Ministério Público. A Casa aprovou a destinação de mais recursos para educação e saúde. O governo federal propôs um pacote de medidas, que inclui plebiscito a respeito da reforma política. Entre as mudanças sugeridas, estão regras mais duras com relação ao financiamento de campanha e aos crimes contra a administração pública. A vontade do povo pautou o governo. Desdobramentos dessas e de outras decisões baseadas no apelo popular, assim como o rumo das mobilizações, permanecem incertos.
Manifestação de 26 de junho: durante o dia, pacífica. À noite, vandalismo (Minervino Júnior/Encontro/DA Press)
Manifestação de 26 de junho: durante o dia, pacífica. À noite, vandalismo

Para o jurista José Geraldo de Sousa Júnior, ex-reitor da UnB, autor do projeto Direito Achado na Rua e mediador de conflitos sociais da OAB, haverá um momento de trégua, o que não significa o abandono da luta. “Quando for necessário, a mobilização virá cada vez mais forte, porque há uma memória da experiência comum e um horizonte do que se avançou na política”, acredita. Segundo ele, o movimento de hoje é mais crítico, consciente e massivo, mais apto a construir agenda do que o de 1988, mas só é forte porque viveu 1988. “E 1988 viveu a experiência de 1968. Cada vez é mais contundente, porque cada vez mais temos recortes da sociedade lutando: mulheres, índios, homossexuais, catadores de papel... Quando há uma crise, eles se integram num protagonismo mais forte. Isso é a cidadania construída na rua.
Momento da invasão do Palácio do Itamaraty, durante manifestação no dia 20: pelo menos 82 pessoas ficaram feridas (Breno Fortes/CB/D.A Press)
Momento da invasão do Palácio do Itamaraty, durante manifestação no dia 20: pelo menos 82 pessoas ficaram feridas

Aos 53 anos, Brasília viu seus filhos saírem de casa para exigir: transporte público de qualidade (e gratuito), reforma política, acesso à saúde e à educação, entre dezenas de outras pautas sobre direitos humanos. A cidade é palco de protestos semanalmente, nenhum deles, entretanto, defende causas tão amplas ou conta com apoio de um público de perfil diversificado. Dessa vez, quem nunca havia participado de protestos sentiu-se convidado a engrossar o coro. O morador de Taguatinga Victor Hugo Lobo Alves, de 21 anos, estudante de informática, participou de três protestos em menos de duas semanas. “Essa causa é do povo inteiro. Tentei chamar meu pai, minha mãe, mas eles não tiveram disposição. Fui sozinho. A luta principal é contra a corrupção. A partir da melhor administração das verbas públicas, a educação melhora e a saúde também. Temos o dinheiro para investir, mas ele não chega aonde deveria”, explicou Victor Hugo, que usa transporte público e defende o passe livre.
Crianças também foram levadas às ruas por seus pais: essa marcha dos pequenos aconteceu no Parque da Cidade no dia 26 de junho
 (Paula Froes/Esp. CB/DA Press)
Crianças também foram levadas às ruas por seus pais: essa marcha dos pequenos aconteceu no Parque da Cidade no dia 26 de junho

No dia 24 de junho, muitos brasilienses não viram a semifinal da Copa das Confederações: eles foram manifestar em frente ao Congresso (Minervino Júnior/Encontro/DA PRESS )
No dia 24 de junho, muitos brasilienses
não viram a semifinal da Copa das
Confederações: eles foram manifestar
em frente ao Congresso
O jovem não é filiado a partido político e se preocupava pouco em fiscalizar os poderes públicos. Com os protestos, ganhou consciência da importância de acompanhar de perto o processo político. “Quem devia fiscalizar também se corrompe. Só resta o povo para cuidar dos próprios interesses. Podemos fazer a diferença. Ainda há muita luta pela frente. Faltam muitos assuntos para discutir: por exemplo, por que temos um dos piores asfaltos do mundo se pagamos tão caro? Por que pagamos caro pela gasolina se temos petróleo?”, avalia.
A frase compartilhada como lema nas redes sociais afirma que “o gigante acordou”. Mas há aqueles que nunca dormiram. Grupos como o Movimento Passe Livre do DF (MPL-DF) e o Fora Arruda e toda máfia (que mesclava militantes de vários movimentos e terminou com o então governador preso por atrapalhar investigações da Polícia Federal sobre corrupção) empenham-se há tempos por melhorias.

Uma vez por ano, cerca de 5 mil mulheres e homens que apoiam as causas feministas lotam o centro da cidade para pedir respeito à autonomia da mulher e políticas de enfretamento ao machismo e à violência, durante a Marcha das Vadias do DF.

A marcha nasceu em 2011, no Canadá, quando um policial aconselhou mulheres a não se vestirem como “vadias” se não quisessem ser estupradas. A declaração sugeria que vítimas eram culpadas pelo abuso sexual. Dezenas de países protestam contra essa mentalidade, desde então.

Durante o ano, as participantes do movimento brasiliense visitam escolas e comunidades onde a violência contra a mulher é frequente, para oferecer oficinas, esclarecer direitos e promover debates.

Manifestantes da Marcha das Vadias protestam uma vez por ano: grupo já ativo no Distrito Federal (Edílson Rodrigues/CB/D.A Press)
Manifestantes da Marcha das Vadias
protestam uma vez por ano: grupo
já ativo no Distrito Federal
Depois dos protestos recentes, representantes da marcha foram convidadas pela Presidência da República a participar de encontro, ao lado da juventude negra militante, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e apoiadores do passe livre, para debater prioridades.
“Chegamos a consensos sobre o que precisa ser feito. Nós, da marcha, pedimos à presidente que o fundamentalismo religioso não influencie as decisões do Estado. Nós nos posicionamos contra o projeto de ‘cura gay’ (recentemente retirado de pauta) e repudiamos o Estatuto do Nascituro (que retira o direito ao aborto legal em caso de estupro e propõe pagamento de um salário mínimo mensal à mulher, para despesas com o filho indesejado, até que ele complete 18 anos, caso o estuprador não seja encontrado para pagar pensão)”, afirma Guaia Monteiro, assistente social, uma das organizadoras da Marcha das Vadias.
Protesto um dia antes da abertura da Copa das Confederações: início da repressões em Brasília (Janine Moraes/CB/DA Press )
Protesto um dia antes da abertura da Copa das Confederações: início da repressões em Brasília

As manifestações atuais reúnem pessoas de crenças e posicionamentos divergentes sobre temas como a presença de partidos políticos nas marchas, aborto, maioridade penal e interferência de igrejas nos direitos civis. O ponto de convergência entre os movimentos é a imposição da soberania popular, que faz dos protestos um retrato plural de Brasília, a cidade dos problemas e das soluções, dos ministérios e dos monumentos, mas, acima de tudo, de quem a habita.
(*) Com Tereza Rodrigues,
Dominique Lima, Matheus Teixeira, Jéssica Germano e Cecília Garcia

 
 

 

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