Nair Heloisa Bicalho de Sousa
Socióloga, coordenadora do Núcleo
de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos da UnB
José
Geraldo de Sousa Junior
Ex-reitor e professor
da Faculdade de Direito da UnB; coordenador do projeto “O Direito Achado na Rua”
No
seu livro Tudo que é sólido desmancha no
ar, o escritor Marshall Berman utiliza a metáfora da rua para caracterizá-la como a esfera pública na qual, em seus
encontros e desencontros, reivindicando a cidadania e os direitos, a multidão
transeunte se transforma em povo.
A
rua, nessa dimensão simbólica é uma
representação constante no imaginário sociológico e poético brasileiro, ao
captar o espaço de mais intensa comunicação como o lugar do protesto, semente
de um protagonismo transformador. Veja-se, em Castro Alves (O povo ao poder), celebrando a rua como
a arena de luta pela liberdade; ou em Cassiano Ricardo (Sala de espera), reivindicado o
acontecimento para instalar a rua republicana, lugar da reivindicação social.
Por isso é que, atento a um tremendo movimento de repensar o jurídico, se pode
representá-lo como achado na rua
(Roberto Lyra Filho), conceituado como a expressão de legítima organização social da liberdade.
O sociólogo Manuel
Castells, neste momento em visita intelectual ao Brasil para debater seu mais
novo livro Redes de indignação e
esperança, explica a realidade dessa espontaneidade de manifestações
coletivas, movidas pela indignação e pelo protesto, que são a face de um
movimento democrático muito real, sem intermediação ou representação
institucional, repolitizando o pleito de respeito e reconhecimento aos sujeitos
de direitos.
Para
Castells, tudo se resume a uma demanda espontânea de direito à cidade, com a
novidade de que os cidadãos têm agora um instrumento próprio de informação,
auto-organização e automobilização, independentemente de convocação
institucional, partidos ou sindicatos, e que materializa um espaço crítico
instituinte por impulso de uma cidadania ativa, profundamente democrática,
capaz de designar, representar e materializar direitos.
Essas
mobilizações civis de cidadãos indignados com a corrupção dos políticos, a
falta de respeito aos direitos das minorias, os excessivos gastos com
megaeventos versus o orçamento social
insuficiente, somadas à forte repressão policial e os deslocamentos forçados
para higienizar os espaços urbanos, desencadearam a retomada da esfera pública
para garantir o direito à cidade e à cidadania.
A
rua transforma-se em ponto de encontro de indivíduos, grupos
(especialmente jovens) de diversos
matizes, dispostos a pressionar o Estado para ouvir e se manifestar em prol dos
ideais democráticos reconquistados em 1985 e traduzi-los em políticas públicas
centradas nos interesses populares.
A
experiência constituinte que se viveu no Brasil recentemente é um aprendizado
difícil para orientar a transição ainda incompleta da reconstrução democrática
de nosso país. Mas há nessa experiência uma lição fundamental para a passagem
ao novo tempo social e político: saber reconhecer a legitimidade política e
jurídica do protesto e de ser capaz de gerar institucionalidades participativas (conferências, consultas,
audiências públicas, mesas de negociação, fóruns) para o diálogo entre a
sociedade e o Estado, como condição de reeducação da estrutura democrática.
O
pré-requisito desse aprendizado é a recusa à criminalização incompetente do
protesto social para, em seu lugar, proceder ao chamamento e ao exercício
identitário (estudantes, mulheres, afrodescendentes, indígenas, grupos LGBT, articulações
ad hoc de pautas plurais atualizadas
por eventos de conjuntura como a copa ou o aumento de tarifas de transporte
público, segmentos excluídos e grupos marginalizados dentre outros) autônomo e
consciente dos diferentes grupos sociais que reivindicam um espaço público não
contaminado para o resgate da política.
* Artigo publicado no Correio Braziliense, Seção Opinião, pág. 15, edição de 20/06/2013
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