segunda-feira, 29 de setembro de 2025

 

Supremo Tribunal Federal, esse desconhecido íntimo

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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O título evoca o livro O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido, de Aliomar Baleeiro, ex-deputado e ministro do STF (nomeado em 1965), publicado em 1968 no Rio de Janeiro pela Forense.

Época, em que o STF era uma instituição com baixa visibilidade social, pouco compreendida pelo público, inclusive por segmentos do meio jurídico. Baleeiro busca justamente mudar isso, expondo o que é o STF, seu papel constitucional, político e histórico.

O autor argumenta que, embora o STF tivesse atribuições elevadas, frequentemente ele era ignorado ou mal compreendido — por cidadãos, imprensa e mesmo por outros poderes do Estado — no que tange à sua missão de guardião da Constituição, controle de constitucionalidade, limite dos poderes públicos, competência originária para julgamentos de ações finais em razão de foro privilegiado.

Baleeiro traça uma retrospectiva do STF, suas origens, evolução, modos como foi lidando com crises políticas, disputas de poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário, reformas constitucionais. Descreve com atenção particular os impedimentos práticos ao exercício pleno de suas atribuições (por exemplo, pressões políticas, omissões de outros poderes, limitações legais ou de composição).

Uma parte importante do livro trata de atribuições e competências pouco visíveis ou exercidas de maneira discreta. Por exemplo, como o STF aplica habeas corpus em casos políticos ou controvérsias constitucionais; o papel dos ministros em ponderar valores constitucionais, não apenas aplicar a lei de modo formal; a importância dos freios e contrapesos constitucionais, do “amortecimento” institucional para evitar abusos de poder.

Na obra, Baleeiro destaca que, apesar das limitações, há casos em que o STF, por meio de seus ministros, se posicionou de modo firme em defesa da Constituição, mesmo sob regimes autoritários, ou diante de pressões. Ele analisa decisões concretas, mostrando como a independência judicial é, muitas vezes, uma arena de embate.

O livro, como o título sugere, também reflete sobre como o STF é percebido fora do círculo jurídico: como é visto pela imprensa, pelos políticos, pelo povo. Baleeiro ressalta que essa percepção baixa contribui para um fraco reconhecimento de sua função, de sua autoridade, inclusive de seus limites constitucionais. Ele aborda não apenas o que é, mas o que poderia ser: reformas institucionais, ampliação de transparência, maior efetividade no controle constitucional, melhor delimitação de poderes, maior responsabilidade institucional dos ministros, etc.

A expressão “esse outro desconhecido” virou referência para refletir sobre como instituições judiciais supremas podem ser simultaneamente centrais e negligenciadas na consciência pública. Uma contradição com a atualidade, quando o STF passa de instituição discreta para protagonista, configurando-se uma paradoxal intimidade, que coloca a instituição e seus membros numa proximidade que representa um ministro ou ministra, como se fossem um vizinho, um companheiro de trabalho, de clube. Do passageiro de coletivo, do torcedor de arquibancada, do irmão na paróquia, que critica, aplaude, torce, apelida – a carminha, o xandão, o decano – ou o que se mobiliza para incidir, nos editoriais dos grandes veículos, com manchetes que parametrizam julgados; ou no plano internacional, condicionando medidas de intervenção político-econômicas, para ajustar a ação judicante e a própria soberania do País, todos idealizando “um supremo tribunal para chamar de seu”.

Também a professora Leda Boechat Rodrigues escreveu uma obra de referência sobre a história da Corte: “História do Supremo Tribunal Federal: análise da jurisprudência”, formando uma coleção que foi publicada em volumes, pelo Senado Federal. A coleção abrange o período de 1891 até 1966, examinando a trajetória do STF por meio de sua jurisprudência e dos contextos políticos que a moldaram.

O trabalho de Leda Boechat é uma leitura institucional e crítica da história do STF, a partir da análise de sua jurisprudência e do contexto político. Ela mostra que o STF sempre oscilou entre momentos de afirmação da independência judicial e momentos de submissão ou acomodação às forças políticas dominantes. É uma narrativa que dá centralidade ao papel do STF na defesa (ou não) dos direitos fundamentais e na mediação dos conflitos federativos. Para ela, a história do STF até 1966 revela uma Corte que procurou afirmar-se como guardiã da Constituição e dos direitos, mas que foi constantemente tensionada pelas conjunturas políticas e pelas pressões dos outros poderes.

Tomando o fio condutor dessas narrativas interpretativas, contrapostas ao arcabouço constitucional, quais afinal, as funções do Supremo Tribunal Federal, suas atribuições e competências, o papel dos ministros e como os casos chegam para julgamento no tribunal?

O Supremo Tribunal Federal (STF) é o órgão de cúpula do Poder Judiciário no Brasil, guardião da Constituição e responsável por assegurar a supremacia da ordem constitucional.  Dessa configuração constitucional decorrem suas funções.

Guardião da Constituição: garante que leis, atos normativos e decisões de órgãos públicos estejam em conformidade com a Constituição Federal (CF/1988, art. 102).

Controle de constitucionalidade: decide sobre a validade de leis e atos normativos federais e estaduais.

Poder moderador institucional: atua como árbitro de conflitos entre União, Estados, Municípios e poderes da República.

Proteção dos direitos fundamentais: por meio do julgamento de recursos e ações específicas, assegura a efetividade dos direitos constitucionais.

As competências do STF estão previstas principalmente no art. 102 da Constituição Federal:

Competência originária (casos que começam no STF). O Supremo julga ações diretas de inconstitucionalidade (ADI), ações declaratórias de constitucionalidade (ADC) e arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

Conflitos federativos (União x Estados, Estados entre si etc.). Decide  habeas corpus, mandados de segurança e habeas data contra atos do Presidente da República, da Mesa da Câmara ou do Senado, do TCU, do PGR e de tribunais superiores.

Crimes comuns cometidos pelo Presidente da República, membros do Congresso Nacional, ministros de Estado e pelos próprios ministros do STF.

Competência recursal.  O STF recebe recursos extraordinários, quandouma decisão de instância inferior contrariar a Constituição;quando houver interpretação divergente da Constituição entre tribunais.

Pode-se ainda dizer que o STF detêm competência consultiva, pois a Constituição prevê que o Tribunal seja ouvido em casos de intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio.

A partir dessas competências e atribuições define-se o papel dos ministros e ministras que compõem o STF. O Tribunal atualmente é composto por 11 ministros, nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado. Entre as funções determinantes destacam-se a de relatar, isto é, conduzir os processos, tomar decisões preliminares, organizar provas e elabora e proferir o voto inicial; e em qualquer caso, participar dos julgamentos e proferir votos. Cada ministro ou ministra tem autonomia em seu gabinete, mas atua de forma colegiada para formar decisões.

Existem diferentes “portas de entrada”, para que as matérias ou casos cheguem ao STF:

Ações de controle concentrado: ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade), ADC (Ação Declaratória de Inconstitucionalidade), ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), ADO (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão), ajuizadas por legitimados específicos (Presidente da República, PGR, partidos políticos com representação no Congresso, entidades de classe de âmbito nacional, governadores, mesas legislativas etc.).

Recursos extraordinários: interpostos contra decisões de tribunais que envolvam questão constitucional relevante.

Habeas corpus e mandados de segurança: impetrados diretamente contra atos de altas autoridades ou de tribunais superiores.

Processos criminais contra autoridades com foro privilegiado.

Para melhor compreender o alcance funcional e a repercussão que podem derivar do exercício das atribuições, competências e funções do STF e seus ministros, alguns exemplos históricos e recentes de casos que se enquadram em cada categoria de competência.

Em sede de Controle Concentrado de Constitucionalidade (competência originária): ADI 1946 (1999) – Lei de Imprensa, na qual o STF declarou inconstitucionais diversos dispositivos da antiga Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67), por afrontarem a liberdade de expressão garantida pela Constituição de 1988; ADI 4277 e ADPF 132 (2011) – União Homoafetiva, ocasião para o STF reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, assegurando-lhes os mesmos direitos de casais heterossexuais;  ADI 3510 (2008) – Lei de Biossegurança, na qual o STF validou pesquisas com células-tronco embrionárias, sob fundamento da liberdade científica e da dignidade da pessoa humana.

Na Proteção de Direitos Fundamentais (ações constitucionais): HC 82.424 (2004) – Caso Ellwanger, importante decisão apta a esclarecer aspectos interpelantes em curso atual no social mas que podem chegar ao Tribunal. Nesse caso paradigmático, o STF negou habeas corpus ao editor condenado por racismo (negacionismo do Holocausto), firmando o entendimento de que a liberdade de expressão não protege discurso de ódio; ADPF 54 (2012) – Aborto em caso de anencefalia, com o STF reconhecendo o direito das gestantes de interromper a gravidez em casos de fetos anencéfalos, entendendo que não se trata de aborto criminalizado; HC 126.292 (2016) – Execução provisória da pena, situação em que o Tribunal permitiu a prisão após condenação em segunda instância (decisão posteriormente revertida em 2019, no HC 152.752, que restabeleceu a presunção de inocência até trânsito em julgado).

Conflitos Federativos: ACO 652 (2017) – Royalties do petróleo, solucionando a disputa em que o STF atuou como árbitro do conflito entre Estados sobre repartição de receitas provenientes da exploração de petróleo; ACO 830 (2020) – Repasses do Fundo Nacional de Saúde, quando Estados questionaram a União sobre a distribuição de recursos do SUS, especialmente no contexto da pandemia de COVID-19.

Processos criminais e foro por prerrogativa de função:  Ação Penal 470 (2012) – “Mensalão”, julgamento de deputados federais, ministros e dirigentes partidários acusados de corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e outros crimes. Marco histórico da responsabilização de autoridades no STF; Inquérito 4781 (2019–2025) – “Inquérito das Fake News”, instaurado de ofício pelo STF para investigar ataques a ministros e à instituição. Desdobrou-se em diversas ações penais, atingindo empresários, políticos e autoridades. E, ainda com impacto internacional, a Ação Penal 1044 (2023–2025) – Atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, desde que o STF está julgando e condenando réus por crimes de golpe de Estado, abolição violenta do Estado democrático de direito e associação criminosa.

Recursos Extraordinários: RE 566471 (2016) – Imunidade tributária das entidades filantrópicas, tendo o STF definido a extensão da imunidade tributária de instituições de assistência social sem fins lucrativos; RE 635659 (2021) – Maconha para uso pessoal (em julgamento), caso paradigmático sobre descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, envolvendo interpretação do art. 28 da Lei de Drogas; RE 576967 (2020) – Pensão por morte para ex-cônjuge, com o STF definindo critérios para extensão de benefícios previdenciários.

Atuação em momentos excepcionais (consultiva/política), na ocorrência de Intervenção Federal no Rio de Janeiro (2018), ocasião em que o STF foi comunicado e acompanhou a execução da medida na segurança pública do estado.

Penso que um singular modo de manifestação do STF é o que se configura como reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional” (ECI). Trata-se de uma técnica de decisão estrutural em que o Tribunal reconhece a existência de um quadro generalizado, persistente e estrutural de violação de direitos fundamentais, que decorre não de um ato isolado, mas de omissões e falhas reiteradas de políticas públicas.

A expressão foi incorporada formalmente em 2015, no julgamento da ADPF 347/DF (rel. Min. Marco Aurélio). A ação foi proposta pelo Partido PSOL para denunciar a situação do sistema penitenciário brasileiro: superlotação, violência, condições desumanas e ausência de políticas públicas adequadas. O STF reconheceu que havia no Brasil um estado de coisas inconstitucional no sistema prisional, por violação massiva dos direitos fundamentais dos presos (art. 5º, XLIX, CF/88), e determinou medidas como a liberação do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN); a adoção de alternativas penais; e a realização de audiências de custódia para configurar situações concretas.

É sabido que o STF adotou da experiência da Corte Constitucional colombiana o conceito de ECI para lidar com violações estruturais e persistentes. E, a partir do caso paradigmático a ADPF 347 (sistema carcerário), a técnica vem sendo aplicada ou inspirando decisões em saúde, meio ambiente, segurança pública e direitos de populações vulnerabilizadas.

O reconhecimento do estado de coisas inconstitucional representa um movimento de judicialização estrutural de políticas públicas, com efeitos sistêmicos e acompanhamento contínuo. Ao declarar esse estado, o STF reconhece a insuficiência de medidas tradicionais de controle de constitucionalidade, afirma a necessidade de atuação interinstitucional (Judiciário, Executivo e Legislativo) para superar a violação e adota ou determina a adoção de providências monitoradas e progressivas, acompanhando a execução.

Há decisões exemplares que adensam o alcance desse instituto. Além da ADPF 347 (marco da adoção do ECI no Brasil), algumas decisões posteriores reafirmaram ou aplicaram a noção de ECI. O HC coletivo 143.641/2018, que concedeu prisão domiciliar a mães e gestantes presas preventivamente); em âmbito de direitos socioambientais e populações vulneráveis, a ADPF 709/DF (de 2020, rel. Min. Luís Roberto Barroso): proteção dos povos indígenas contra a COVID-19 em que o STF reconheceu omissões estatais graves e determinou medidas estruturais (plano de barreiras sanitárias, acesso a saúde) e a ADPF 635/RJ (2020, rel. Min. Edson Fachin) – “ADPF das Favelas”,  pela qual o STF restringiu operações policiais em comunidades do Rio durante a pandemia, reconhecendo um quadro de violações sistemáticas de direitos. Embora o nome ECI não tenha sido usado, a lógica estrutural é próxima.

De minha parte, não posso deixar de registrar a ADPF 186, ajuizada em 2009, que impugnou atos que deram origem ao sistema de reserva de vagas por critério étnico-racial praticado pela Universidade de Brasília (UnB). O partido autor pedia a declaração de inconstitucionalidade dessas políticas. Entretanto, o Plenário do Supremo reconheceu a constitucionalidade da política de cotas étnico-raciais para ingresso em universidades públicas, acompanhando o voto do relator. O julgamento do mérito foi concluído em abril de 2012, com acolhimento do fundamento de que ações afirmativas étnico-raciais são compatíveis com a Constituição como meio de correção de desigualdades históricas.

Acompanhei todo o processo, desde a propositura da ação até o seu julgamento, Reitor que era à época da UnB (a ação foi iniciada em 2009 e julgada em 2012, durante o exercício de meu mandato). Acompanhei, inclusive, todas as sessões da audiência pública convocada pelo Relato (Min. Ricardo Lewandowski), por ele presidida, com mesa para a manifestação de especialistas e representantes de instituições, exposições orais seguidas de perguntas e registro em ata/taquigrafia. A audiência foi registrada em notas taquigráficas acessíveis pela Corte. Foram convocados e compareceram cerca de 40 especialistas e representantes — acadêmicos (antropologia, sociologia, educação), juristas, dirigentes universitários, representantes de movimentos sociais e órgãos públicos (por exemplo, Ministério da Educação, Defensoria). Cada um apresentou estudos, pesquisas estatísticas, argumentos jurídicos e considerações práticas sobre implementação e verificação de cotas.

Ao final, prevaleceu o entendimento unânime do Tribunal sufragando os fundamentos do voto do Relator, firme no sentido de que as políticas de cotas visam a efetivar igualdade substancial (igualdade material), não violando o princípio da isonomia formal; devem ser proporcionais, temporárias e justificadas pela existência de desigualdades sociais e raciais, considerando também que a sua adoção se fez no plano da autonomia universitária.

Desse modo, manteve-se o modelo adotado pela UnB e abriu-se caminho jurisprudencial para validação de outras ações afirmativas semelhantes em universidades federais, uma repercussão importante quando agora, distante do tempo do debate, começa-se a repristinar argumentos hostis e refratários à hermenêutica emancipatória de correção de desigualdades históricas ainda em curso em sociedades originadas da tragédia colonial.

O julgamento da ADPF 186 tornou-se um marco jurisprudencial ao reconhecer a compatibilidade constitucional das políticas de ação afirmativa étnico-raciais no ensino superior brasileiro, dando relevância tanto aos fundamentos históricos e estatísticos da desigualdade quanto a exigência de limites (proporcionalidade, transitoriedade, mecanismos de verificação).

Por último, trago à baila a Ação Penal 2668. A Ação Penal n° 2 668 (AP 2 668), um caso criminal do Supremo Tribunal Federal, que desafia os fundamentos técnico-jurídicos sobre competência e modo de julgar originalmente causas atribuídas ao Supremo Tribunal Federal. Além do que, por circunstancias internacionais de movimentos de alinhamento hegemônico nos planos regional e global, testa os limites da ação política que sustenta a própria soberania do País.

No que concerne à competência originária do STF na AP 2668, já decidida a questão – embora ainda sem trânsito em julgado, esta decorreu do foro por prerrogativa de função / foro especial previsto na Constituição Federal — art. 102, I, alínea “b” (e “c”) da CF/88.

No caso, STF pela Turma julgadora, estabeleceu sua competência para processar e julgar originariamente infrações penais comuns cometidas por certas autoridades com foro: Presidente da República, Vice-Presidente, membros do Congresso Nacional, ministros do STF, Procurador-Geral da República. E também para julgar infrações penais comuns e crimes de responsabilidade de ministros de Estado, comandantes militares, membros de Tribunais Superiores etc. (“c”) alínea.

A regulamentação interna (Regimento Interno do STF, RISTF), especialmente com a recente Emenda Regimental 59/2023, com força de lei, alterou o RISTF para definir que ações penais originárias (e inquéritos) sejam julgadas pelas Turmas do STF, como regra, exceto em certas hipóteses que devam ir ao Plenário. Portanto, a AP 2668 foi recebida no STF com base nesses fundamentos legais: prerrogativa de foro constitucional para o ex-presidente e outras autoridades, conexão com autoridades com foro, e as normas regimentais que disciplinam onde tais casos devem tramitar. A escolha da Turma (no caso a Primeira Turma) para julgar a AP 2668 baseou-se nos fundamentos que conjugando o Regimento Interno do STF com a Emenda Regimental 59/2023, esta emenda determinou que ações penais de competência originária do STF devem tramitar nas Turmas, salvo exceção, não mais indo automaticamente ao Plenário, a menos que a Norma Constitucional, ou outra regra regimental, exija isso.

No que concerne à soberania e à salvaguarda da independência do Judiciário, aqui mesmo neste espaço da Coluna O Direito Achado na Rua, me posicionei, valendo-me inclusive de retaguarda de colegas ex-reitores sobre o tema, para traduzir a perplexidade diante de atitudes extravagantes do mandatário da principal potência global. A propósito, em https://brasilpopular.com/contra-a-truculencia-unilateralista-no-global-e-os-silverios-dos-reis-no-local-preservar-a-soberania-nacional-e-a-opcao-multilateral/ – considerar que “a  perplexidade não se deu apenas pela dimensão econômica internacional incidente na modelagem de trocas, mas também pela condicionante política de vincular a iniciativa a uma exigência de suspensão de jurisdição em face do indiciamento de autores de uma trama golpista, capitaneada por ex-presidente da República contra a democracia e contra a constituição. Essa conexão extravagante, por um ou por outro motivo, logo ativou uma forte reação social, não necessariamente com identidade de fundamentos ou disposição, mas muito consensualmente pela rejeição ao seu duplo pressuposto”.

Por isso que a remissão ao posicionamento em reação de ex-Reitores das Universidades federais públicas brasileiras “reunidos no Grupo Reitores pela Democracia, nos mobilizamos em manifesto à nação brasileira, para conclamar a união contra os ataques a soberania nacional perpetrados pelo Presidente de uma nação estrangeira, que se acha no direito de interferir no andamento de processos do judiciário brasileiro e de ameaçar o país com um injustificável e abusivo aumento das taxas de importação de produtos do nosso país”.

Agora, é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em Nova York, que se apresenta solidário com a postura autônoma do STF, defendeu a independência do Poder Judiciário brasileiro e criticando sanções aplicadas pelo governo dos Estados Unidos ao Supremo Tribunal Federal (STF). Lula afirmou que “a agressão contra a independência do Poder Judiciário é inaceitável e destacou que o Brasil é uma nação independente e soberana, onde a democracia e as instituições são fundamentais. Ao defender enfaticamente a independência do STF, o Presidente Lula criticou as sanções aplicadas pelo governo dos EUA ao STF, afirmando que são inaceitáveis e representam uma ingerência indevida em assuntos internos do Brasil. O presidente enfatizou que o Brasil é uma nação soberana e democrática, onde as instituições são respeitadas e a independência do Judiciário é fundamental”.

Certamente contribui para a disposição prepotente que não hesita em apontar caminhos de interferência, a experiência subordinante ainda praticadas em estados historicamente consolidados, nos quais os sistemas de justiça são hierarquizados administrativamente pelo executivo ou em conselhos de estado. Mas não é o caso do Brasil, por sua história institucional base para a manifestação do Presidente Lula.

Constata-se nessa historicidade uma substantivação da função jurisdicional adensada de modo empírico e teórico. Um exemplo é a tese brasileira do habeas corpus. Em linhas gerais, ela se afirma no alargamento do habeas corpus para além da proteção da liberdade de locomoção, passando a ser usado também como remédio contra ilegalidades e abusos de poder em geral.Um alargamento que ocorreu antes de ter-se, na Constituição de 1934, a previsão do mandado de segurança.Por isso, o habeas corpus operava como uma “ação universal de defesa da liberdade”, alcançando, por exemplo, casos de restrição de direitos políticos, de liberdade de imprensa ou de exercício de cargos públicos.

Deve-se em boa medida à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a funcionalização para essa ampliação. Aliás, considera-se que foi pelo HC 300 (1892, Rel. Pedro Lessa) – garantindo a reintegração de funcionário público ilegalmente demitido, mesmo sem ameaça direta à liberdade de locomoção, o precedente remoto da teoria.

Mas outros casos semelhantes reconheceram o habeas corpus como instrumento para coibir qualquer forma de coação ilegal, ainda que não se tratasse de prisão ou ameaça de prisão. E são esses julgados que vieram a firmar a posição formal do STF de que o habeas corpus teria amplitude muito maior que em outras tradições jurídicas (como a inglesa, onde se restringia ao writ of habeas corpus ad subjiciendum), acabando por traduzir essa ampliação, logo chamada na doutrina de “tese brasileira do habeas corpus”, principalmente como expressão usada, entre outros, por Rui Barbosa, Clóvis Beviláqua e depois por Pontes de Miranda. O STF foi, portanto, o responsável por cristalizar formalmente essa interpretação. A situação mudou em 1934, quando a Constituição previu o mandado de segurança, deslocando para esse novo instrumento a tutela de direitos não ligados à liberdade física. Atualmente, o STF entende que o habeas corpus se limita à proteção da liberdade de locomoção, pois outros instrumentos (mandado de segurança, habeas data, ação civil pública) cumprem as funções que antes recaíam sobre ele.

Porém, é no plano altivo da soberania do País e da independência do Judiciário que vai sobressair a construção histórica da institucionalidade que constitui o Supremo Tribunal Federal, forjada principalmente em conjunturas críticas. Internacionais e nacionais.

Há registros históricos relevantes a partir do institucional e também do biográfico quando os eventos se encarnam nos protagonismos de seus membros, os ministros. Além da bibliografia já referida, a série Memória Jurisprudencial recupera relevantes fatos institucionais e jurídicos do Supremo Tribunal Federal (STF) por meio do resgate da vida e da obra de ministros que marcaram sua história. Da série iniciada em 2006, li mais recentemente, de Noleto, Mauro Almeida. Memória jurisprudencial: Ministro Epitacio Pessôa / Mauro Almeida Noleto. – Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2009. – (Série memória jurisprudencial). Até porque estava preparando resenhas sobre outras contribuições de Mauro, me ex-aluno e orientando na pós-graduação em Direito (https://estadodedireito.com.br/sujeitos-de-direito-ensaios-criticos-de-introducao-ao-direito/; também https://estadodedireito.com.br/silencio-perpetuo-anistia-e-transicao-politica-no-brasil/).

Li também Alves Júnior, Luís Carlos Martins. Memória jurisprudencial : Ministro Evandro Lins / Luís Carlos Martins Alves Júnior. – Brasília : Supremo Tribunal Federal, 2009. – (Série memória jurisprudencial), para recuperar episódio dramático da formação dessa institucionalidade enfibrada.

O episódio se refere aos registros históricos sobre a situação de aposentadoria compulsória dos ministros Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima, todos do STF, no contexto do regime militar, especialmente após o AI-5. Aqui vão os principais dados. O Ato Institucional nº 5 (AI-5), decretado em 13 de dezembro de 1968, marco do endurecimento do regime militar no Brasil, permitira, entre outras medidas autoritárias, a cassação de direitos políticos, suspensão de garantias constitucionais e interferências institucionais.

Em 16 de janeiro de 1969, por força do AI-5, foram aposentados compulsoriamente três ministros do Supremo: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Essa aposentadoria compulsória foi vista como medida de controle político do regime autoritário sobre o Judiciário — para remover ministros que tinham reputação de independência ou que, em decisões ou princípios, se opunham às restrições do regime.

A Corte, além de perder esses ministros, teve sua composição reduzida posteriormente pelo AI-6, que restaurou o número de ministros para 11 (antes havia sido ampliado pelo AI-2 para 16).

No contexto de exacerbação dessa conjuntura, uma frase, atribuída a Ribeiro da Costa no período de seu exercício como Presidente do STF, durante os primeiros anos do regime militar, quando se incrementavam pressões de setores militares para que o Judiciário atuasse como um braço do regime, especialmente em processos envolvendo opositores políticos, uma objeção do ministro como que se marcara na frase “a toga (símbolo da magistratura) não é japona (casaco típico do uniforme militar)”, quis significar que o STF não poderia ser transformado em uma extensão do poder militar.

O gesto foi importante porque mostrou, em meio a um ambiente de forte autoritarismo, que havia no Judiciário quem reafirmasse a separação entre justiça e poder armado. Curioso que não sendo propriamente um magistrado progressista, a crônica do Supremo preserva a frase como um símbolo da dignidade judicial frente a pressões políticas. Ribeiro da Costa saiu por aposentadoria normal, mas dentro de um contexto em que o STF sofria forte pressão do Executivo e perderia parte de sua independência institucional.

Um tanto dessa dignidade é o que nos motivou, a mim e a meus co-autores – Márcia Semer, Juarez Tavares, Marcio Sotelo e Patrick Mariano, em época de indicação de juristas para compor o corpo de ministros do Supremo, a sustentar, na seção Tendências/Debates da Folha de São Paulo –https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/03/o-debate-que-realmente-importa-para-as-escolhas-ao-supremo.shtml – ser “hora, portanto, de a sociedade e a classe jurídica levar o tema a sério. O país clama por uma Justiça que não se isole numa bolha arrogante e prepotente de dramática memória, principalmente se pensarmos em seu papel para interditar, aprisionando um presidente (Lula) praticamente eleito. Afinal, como ilustrou Saramago, temos que “Sair da ilha para ver a ilha”. A Suprema Corte precisa urgentemente de um nome que tenha história, pensamento consolidado e construído publicamente ao longo dos anos maturidade, compromisso histórico e firme contra o arbítrio e extrema sensibilidade social. Não é momento para ensaios ou apostas duvidosas, pois não há margem de erro nesta escolha”.

Em qualquer caso, confrontar o desafio que se coloca para a sociedade na qual se constitui a expressão de soberania popular que deve designar o perfil do Judiciário no desenho da institucionalidade em construção, quando é chamado (o STF), a se definir entre ser porteiro ou guardião da democracia e da constituição (Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil/Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), maio de 2018).

Para Escrivão Filho, autor dessa obra, ao contrário da disposição de fomentar noções de autonomia e independência concebidas como princípios políticos próprios da função judicial diretamente referentes à garantia da sociedade contra a arbitrariedade do Estado, as alianças então construídas sobretudo durante a mediação constituinte (1988), ao invés de forjar requisitos de neutralização do sistema – reconhecimento ontológico da condição política da justiça – deixou que esse se visse permeado pela ideologia da neutralidade – enredando-o em injunções a serviço da reprodução das tradições de uma cultura institucional acostumada e orientada à manutenção do status quo.  (p. 25).

No dia de hoje, 29/9, tomam posse na presidência e vice-presidência do STF os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes. Dois magistrados com perfis definidos para confrontar os desafios de tempos colocados para o STF. Experimentados nesses desafios. No plano institucional e das formas contemporâneas da jurisdição.

Além do que aqui já anotei, penso na condução que o ministro Alexandre de Moraes imprimiu em jugado recente. Sua decisão desde a liminar, quando determinou que os estados, o Distrito Federal e os municípios passem a observar, imediatamente e independentemente de adesão formal, as diretrizes do Decreto Federal 7.053/2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua. A decisão liminar, proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, será submetida a referendo do Plenário.

Na decisão liminar, proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, determinou que os estados, o Distrito Federal e os municípios passem a observar, imediatamente e independentemente de adesão formal, as diretrizes do Decreto Federal 7.053/2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua. O ministro concedeu prazo de 120 dias para que o governo federal elabore um plano de ação e monitoramento para a efetiva implementação da política nacional para a população de rua, com medidas que respeitem as especificidades dos diferentes grupos familiares e evitem sua separação.

Ele também determinou que estados e municípios efetivem medidas que garantam a segurança pessoal e dos bens das pessoas em situação de rua dentro dos abrigos institucionais existentes, inclusive com apoio para seus animais. Além disso, devem proibir o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua e o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra essa população. O ministro concedeu prazo de 120 dias para que o governo federal elabore um plano de ação e monitoramento para a efetiva implementação da política nacional para a população de rua, com medidas que respeitem as especificidades dos diferentes grupos familiares e evitem sua separação.

Ele também determinou que estados e municípios efetivem medidas que garantam a segurança pessoal e dos bens das pessoas em situação de rua dentro dos abrigos institucionais existentes, inclusive com apoio para seus animais. Além disso, devem proibir o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua e o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra essa população (https://brasilpopular.com/o-stf-e-a-acao-consciente-contra-a-aporofobia-oasco-a-pobreza/).

Também o ministro Fachin, nessa disposição de que é preciso avançar em posições constitucionais que realizem a Constituição, abriga o entendimento de que direitos são promessas, mas não podem se tornar promessas vazias, e o apelo democrático do artigo 5o leva a essa consciência, ou seja, a de que é a cidadania protagonista, ativa, insurgente, achada na rua, o núcleo de uma subjetividade coletiva (sujeitos coletivos de direito), em movimento (movimentos sociais emancipatórios), a razão legitimadora do processo político e realizadora contínua do processo de afirmação de direitos já conquistados e de criação de novos direitos. E essa compreensão ficou ainda mais nítida, na relatoria do Ministro Fachin, acolhida com apenas duas defecções, no julgamento concluído no Supremo Tribunal Federal. Conforme consta da página oficial do STF, que traz um bom resumo dos elementos da decisão (https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=514552&ori=1#:~:text=O%20Supremo%20Tribunal%20Federal%20(STF,da%20terra%20por%20essas%20comunidades): “O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou, nesta quinta-feira (21), a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Por 9 votos a 2, o Plenário decidiu que a data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades. A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031)”. Lembrei isso em meu artigo, a convite do ministro, em A constituição da democracia em seus 35 anos / (Orgs) Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Belo Horizonte: Fórum, 2023 (https://estadodedireito.com.br/a-constituicao-da-democracia-em-seus-35-anos/).

Como aponta Leda Boechat em seus escritos históricos, o STF, em face dos desafios atuais parece oscilar de qualquer submissão ou acomodação às forças políticas dominantes para a afirmação da independência judicial que o invista da função de garante da democracia (https://brasilpopular.com/julgar-crimes-contra-o-estado-de-direito-credencia-o-stf-como-garante-da-democracia/).

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

 

Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos. V. 24/25, N. 24/25 (2024/2025)

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos. V. 24/25, N. 24/25 (2024/2025). Fortaleza, Ceará. Instituto Brasileiro de Direitos Humanos (Órgão Consultivo Especial da Nações Unidas), 2024/2025. Anual.

 

 

 

 

 

A Revista tem o status de órgão consultivo especial das Nações Unidas. Os editores desse número – César Barros Leal e Sílvia Maria da Silveira Loureiro – explicam o significado, afirmando que a “aquisição do status consultivo impõe uma série de reptos que o IBDH encara como uma oportunidade única de alargar sua agenda, no plano local, nacional e internacional, contando para isso com o apoio de instituições congêneres como o Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), sediado em San José, Costa Rica, com o qual logrou realizar as oito edições do Curso Brasileiro Interdisciplinar em Direitos Humanos, a cada dois anos, com diferentes temáticas, a saber: os direitos humanos desde a dimensão da pobreza; o acesso à justiça e à segurança cidadã; igualdade e não discriminação; o respeito à dignidade da pessoa humana; o princípio de humanidade; os direitos humanos e o meio ambiente; o desafio dos direitos econômicossociais e culturais; e os direitos humanos dos vulneráveis, marginalizados e excluídos”.

Não bastassem esses pressupostos, veio a ser um relevo ainda maior o poder publicar, juntamente com Raique Lucas de Jesus Correia e José Euclimar Xavier de Menezes                  num espaço que tem o paraninfado, no Conselho Editorial, de Antônio Augusto Cançado Trindade (Presidente de Honra ad eternum), meu colega na UnB, tantas vezes referido em muito de meus escritos por sua enorme contribuição ao tema dos direitos internacionais dos direitos humanos.

Sobre minha relação co-autoral com Raíque e o professor Menezes, ver https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-experiencia-de-humanizacao-protagonismos-sociais-e-emancipacao-do-direito-entrevista-com-o-professor-jose-geraldo-de-sousa-junior/https://estadodedireito.com.br/direito-literatura-sertao-perspectivas-decoloniais-a-partir-do-romance-da-pedra-do-reino-de-ariano-suassuna/https://estadodedireito.com.br/cidadania-e-territorialidade-periferica-a-luta-pelo-direito-a-cidade-no-bairro-do-calabar-em-salvador-ba/.

E ainda, com plasticidade, com a direção de ambos – https://www.youtube.com/watch?v=X6IReFEMKGI&t=126s – o documentário O documentário “Projeto Cienciart V – A Cidade pelo Avesso: Territorialidade e Resistência Cultural nas Favelas de Salvador/Bahia/Brasil”. O áudio-visual é uma iniciativa do Grupo de Pesquisa Políticas e Epistemes da Cidadania (GPPEC/UNIFACS/CNPq), com financiamento público viabilizado por meio da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022), conforme Edital nº PG02/2023 – Produção Audiovisual Web da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SECULT-BA). O objetivo do documentário é lançar luz sobre as histórias e vivências dos territórios periféricos da cidade, explorando suas riquezas culturais, as formas criativas de resistência e as práticas de autodeterminação que emergem desses espaços. São as “cidades invisíveis” que apesar de negligenciadas e excluídas dos processos hegemônicos da produção da cidade dominante, ocupam a maior parte do território habitado, moldando a paisagem urbana e (re)construindo os sentidos que atravessam o asfalto, principalmente por meio de estratégias de resistência política, manifestações simbólicas e criação artística.

Convocando artistas, ativistas, pesquisadores, moradores e outros agentes de transformação, o documentário se propõe a ser um veículo para a mobilização social, cultural e acadêmica em torno dos Direitos Humanos, promovendo um diálogo aberto que envolva as diversas sensibilidades, projetos de vida e trajetórias emancipatórias que fazem do território urbano um espaço vivo, autêntico e heterogêneo. Desafiando as narrativas dominantes sobre o espaço urbano, o documentário visa, fundamentalmente, promover uma maior conscientização pública sobre as favelas, em que se possa pensar a cidade de baixo para cima; em que as vozes e histórias dos marginalizados assumam a centralidade da produção de narrativas desde e sobre este espaço. Esse é o avesso da cidade e essa é a cidade pelo avesso.

 

“O Direito Achado na Rua” (ODAnR) é uma das principais correntes críticas do pensamento jurídico brasileiro, surgida na Universidade de Brasília (UnB) a partir da proposta do “Humanismo Dialético” de Roberto Lyra Filho, que concebe o Direito como expressão histórica das lutas sociais. Superando as dicotomias entre jusnaturalismo e juspositivismo, ODAnR propõe uma abordagem que vincula o Direito à práxis libertadora dos grupos e classes espoliados e oprimidos. Diante disso, o presente trabalho se dedica a explorar a contribuição do programa de “O Direito Achado na Rua” na construção de uma teoria dialética que coloca a historicidade das lutas sociais como eixo central do processo de criação e afirmação de direitos, visando uma compreensão alternativa dos Direitos Humanos desde uma perspectiva crítica e emancipatória, no sentido de apontar caminhos para a superação das limitações do paradigma dominante. Trata-se de visualizar o fenômeno jurídico a partir das manifestações legítimas que emanam das experiências concretas de humanização e libertação das classes e grupos espoliados e oprimidos. Metodologicamente, adota-se uma abordagem crítica e dialética, por meio de pesquisa exploratória e levantamento bibliográfico de obras e artigos que fundamentam a análise teórica

 

Sumário

Ano 24/25, Vol. 24/25, Número 24/25 – 2024/2025

Conselho Consultivo do IBDH

Apresentação

La Nuntempaj Defioj de la Homaj Rajtoj

César Barros Leal

América Latina Frente a la Jornada Laboral: Desafíos para Garantizar el Derecho Humano a un Trabajo Digno

Alberto Antonio Morales Sánchez

Paul Brandon Villalpando Zumaya

Guerras e Justiça em Tempos Sombrios: A Luta do Direito Humanitário Versus Soberania

Ana Caroline S. e S. Garcia

Thayna H. M. Diógenes Queiroz

Aproximações ao Tema dos Direitos da Criança e do Adolescente e aos Impactos que Surgem por Ocasião do Desacolhimento Institucional por Maioridade

Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori

Bruna Balesteiro Garcia

The Social Control of Young Offenders in Central America and, in particular, in Costa Rica, and the Evolution of the Welfare Model Towards the Justice System: An Unfinished and At-risk Model

Douglas Durán Chavarría

Cabo Verde: Vulnerabilidade Climática e os Impactos nos Direitos Humanos

Estefani Fernandes Ramos

Guineverre Alvarez

Fortalecendo os Direitos Humanos no Brasil: Estratégias Educacionais e de Pesquisa para a Promoção da Justiça Social

Jucélia Bispo dos Santos

Derecho Penal, Populismo y Migración: Análisis desde los Derechos Humanos

Julieta Morales Sánchez

Crises Migratórias e Direitos Humanos: Desafios e Respostas da Comunidade Internacional Frente à Situação de Refugiados da

Síria, Sudão do Sul e Venezuela

Lara Vieira da Silveira

Os Serviços Públicos e os Direitos Sociais na Pandemia do Covid-19: Breve Debate sob o Enfoque de Gênero na Emergência Sanitária

Lucyléa Gonçalves França

A Judicialização da Política como Indesejável Efeito do Ativismo Judicial

Magno Gomes de Oliveira

A Violação dos Direitos Humanos na era da Inteligência Artificial: Uma Análise do uso de Deepfakes no Colégio Militar de Salvador

Marco Antônio Dias Barbosa

José Euclimar Xavier de Menezes

Os Direitos Humanos na Perspectiva Crítica de “O Direito Achado na Rua”

Raique Lucas de Jesus Correia

José Geraldo de Sousa Júnior

José Euclimar Xavier de Menezes

Os Atores Privados (Indivíduos e Empresas) no Direito Internacional

Renato Zerbini Ribeiro Leão

Admissão da Pessoa com Deficiência na Carreira Policial Militar

Ricardo Nascimento Fernandes

Ana Paula Gouveia Leite Fernandes

Ordem e Justiça: A Contribuição de Cançado Trindade para a Humanização da Corte Internacional de Justiça

Roberta Cerqueira Reis

Os Familiares das Vítimas Perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos: Um Estudo da Construção Jurisprudencial do Tribunal Interamericano à Luz de suas Primeiras Sentenças e dos Votos do Juiz Antônio Augusto Cançado Trindade

Sílvia Maria da Silveira Loureiro

Mayara Hellen Lima e Silva

O Projeto de lei 420/2022 ante o Direito à Dignidade da Pessoa Humana do(a) Alimentante Autônomo(a) e Hipossuficiente que Deve Prestar Alimentos a seu(a) Filho(a)

Stephany Jacques Magalhães

ANEXOS

Homenajes Rendidos a Personas e/o Instituciones por la Actuación en la Defensa de los Derechos Humanos

Discurso Pronunciado na Solenidade de Abertura do Último Curso (VIII) Brasileiro Interdisciplinar em Direitos Humanos:

Os Direitos Humanos dos Vulneráveis, Marginalizados e Excluídos

(15 a 26 de agosto de 2022, em Fortaleza)

Visita ao Brasil Relatório da Relatora Especial sobre a situação de pessoas defensoras de direitos humanos, Mary Lawlor, em sua visita ao Brasil

Comitê para a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres

Conselho Editorial

 

Como se vê do Sumário, que indica um qualificado repositório de temas para esse número, logrei compartilhar, com a co-autoria e a diligência dos colegas Raique Lucas de Jesus Correia e José Euclimar Xavier de Menezes, que percorreram com muita atenção todos os procedimentos para publicação, o artigo Os Direitos Humanos na Perspectiva Crítica de “O Direito Achado na Rua.

Raíque Correia, em seu perfil no Instagram, conta um pouco o que foi construir essa publicação:

A história desse artigo que acaba de ser publicado no último número da Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos se confunde com a história da minha jornada acadêmica. Até aqui, já tive a oportunidade de publicar alguns textos, mas esse tem um significado especial, diria até de verdadeira “síntese” dessa jornada (que segue inconclusa, por certo).

Destaco, antes de mais nada, a honra de ter este trabalho publicado na Revista do IBDH, órgão consultivo especial da ONU, fundado e dirigido pelo prof. Dr. César Barros Leal, e que tem como presidente emérito o sempre eterno prof. Antônio Augusto Cançado Trindade. Depois, a satisfação de ter como coautores dois grandes mentores fundamentais para a minha formação intelectual, o meu querido orientador prof. Dr. José Menezes e o prof. José Geraldo de Sousa Junior, professor emérito da Universidade de Brasília e um dos criadores, ao lado do saudoso prof. Roberto Lyra Filho, do movimento “O Direito Achado na Rua” (ODAnR).

Conheci ODAnR ainda na Faculdade de Direito, apresentado pela minha eterna orientadora profa. Marta Gama. A partir daquele momento a minha visão sobre o Direito mudou complemente e isso fez com que eu me engajasse na pesquisa buscando alternativas à perspectiva puramente dogmática e asséptica das ciências jurídicas para encontrar o verdadeiro Direito, o Direito autêntico, nos influxos da práxis libertadora; nas lutas sociais concretas no processo de humanização dos sujeitos. Foi aí que me apareceu a gente de Calabar, suas lutas e sujeitos coletivos, tornando-se fonte de novos direitos; um Direito Achado na Favela, nos Becos, nos Morros…

Tudo começou ali na sala de aula da Faculdade de Direito e, anos depois, aqui estou fazendo uma singela contribuição a teoria que me projetou como estudante e que hoje fundamenta meu trabalho como jurista e professor. Quem diria que um dia eu iria assinar um artigo com o prof. José Geraldo de Sousa Junior, que ele faria parte da minha banca de mestrado e que me acolheria como pesquisador do seu grupo. ODAnR me achou e eu achei uma saída para o aprisionamento causado pela dogmática jurídica.

Viva o Direito Achado na Rua!

Viva o Direito como Liberdade!

 

Claro que aqui, neste Lido para Você, remeto ao conjunto de textos da publicação, mas me detenho no artigo que assinei com meus colegas co-autores. Destaco o resumo do artigo:

“O Direito Achado na Rua” (ODAnR) é uma das principais correntes críticas do pensamento jurídico brasileiro, surgida na Universidade de Brasília (UnB) a partir da proposta do “Humanismo Dialético” de Roberto Lyra Filho, que concebe o Direito como expressão histórica das lutas sociais. Superando as dicotomias entre jusnaturalismo e juspositivismo, ODAnR propõe uma abordagem que vincula o Direito à práxis libertadora dos grupos e classes espoliados e oprimidos. Diante disso, o presente trabalho se dedica a explorar a contribuição do programa de “O Direito Achado na Rua” na construção de uma teoria dialética que coloca a historicidade das lutas sociais como eixo central do processo de criação e afirmação de direitos, visando uma compreensão alternativa dos Direitos Humanos desde uma perspectiva crítica e emancipatória, no sentido de apontar caminhos para a superação das limitações do paradigma dominante. Trata-se de visualizar o fenômeno jurídico a partir das manifestações legítimas que emanam das experiências concretas de humanização e libertação das classes e grupos espoliados e oprimidos. Metodologicamente, adota-se uma abordagem crítica e dialética, por meio de pesquisa exploratória e levantamento bibliográfico de obras e artigos que fundamentam a análise teórica

 

O texto, conforme aponta o resumo, apresenta a proposta de O Direito Achado na Rua (ODAnR), surgida na UnB no final dos anos 1980, vinculada à Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), de Roberto Lyra Filho. Essa escola propõe uma dialética social do Direito, superando tanto o jusnaturalismo quanto o positivismo legalista, ambos vistos como reduções ideológicas. Para Lyra Filho, o Direito é histórico, contraditório e fruto das lutas sociais, podendo expressar tanto liberdade quanto opressão, dependendo das forças em disputa.

A perspectiva dialética recusa uma visão estática do Direito, entendendo-o como processo dinâmico ligado às relações de poder, mas também como espaço de resistência e criação de novos direitos. Diferente do marxismo ortodoxo, Lyra não restringe o Direito à superestrutura: ele está presente em todas as relações sociais e pode ser motor revolucionário.

Nesse contexto, surge o programa ODAnR, coordenado após a morte de Lyra Filho por mim, José Geraldo de Sousa Junior, consolidando-se como referência acadêmica e prática contra-hegemônica, com projetos de extensão, assessoria jurídica popular e apoio a movimentos sociais. O programa articula teoria e prática para afirmar direitos historicamente negados e construir uma nova racionalidade jurídica orientada pela emancipação social.

Assim, os Direitos Humanos são concebidos não como normas fixas ou declarações abstratas, mas como lutas sociais concretas em busca de liberdade, justiça e dignidade. Essa visão rompe com perspectivas formalistas ou idealistas, enfatizando a práxis transformadora dos sujeitos coletivos de direito e dos novos movimentos sociais, que criam direitos a partir de suas experiências e identidades.

Na seção O Humanismo Dialético como Fundamento Filosófico, enunciado formulado por Roberto Lyra Filho no âmbito da Nova Escola Jurídica Brasileira, tem-se a base filosófica de O Direito Achado na Rua (ODAnR). Trata-se de uma concepção que entende o Direito não como ordem fixa, mas como processo histórico em constante luta, expressão da liberdade em sua historicidade e vinculado às lutas de emancipação.

Ele recusa tanto o jusnaturalismo estático quanto o positivismo legalista, afirmando que o Direito só é legítimo quando promove a libertação dos oprimidos em contextos históricos concretos. Essa legitimidade é material e histórica, não abstrata, e tem como critério fundamental a emancipação humana.

O humanismo dialético inspira-se em várias tradições — idealismo alemão, marxismo, sociologia crítica, hermenêutica material, o “direito vivo” de Ehrlich — mas as supera de forma crítica, valorizando a práxis social e a pluralidade de fontes jurídicas além do Estado.

Assim, o Direito é visto como processo em devir, que nasce das contradições sociais, fortalece-se nos movimentos de libertação e enfraquece sob opressões, mas dessas mesmas contradições brotam novas conquistas. Sua finalidade última é a construção de uma “legítima organização social da liberdade”, em que liberdade e legitimidade são inseparáveis.

Nessa perspectiva, a função do Direito é afirmar a dignidade humana, possibilitando a emancipação material, existencial e subjetiva, e garantindo o livre desenvolvimento de cada um como condição para o livre desenvolvimento de todos.

O artigo dá ênfase à categoria sujeito coletivo de direito, noção que nasce da experiência dos movimentos populares dos anos 1970-80, descrita por Eder Sader e analisada por Marilena Chauí, como um sujeito novo, fruto da prática social e da luta conjunta, distinto do sujeito individual da tradição burguesa. Ele não é centralizado nem solitário, mas descentralizado e plural, emergindo de ações coletivas de resistência.

A emergência desse sujeito ocorre quando carências sociais são percebidas como negação de direitos e transformadas em mobilização coletiva. Assim, movimentos sociais não apenas reivindicam direitos, mas também redefinem a ordem social e política, fundando novos paradigmas de cidadania.

Essa categoria permite ao pensamento jurídico crítico elaborar o sujeito coletivo de direito, entendido como protagonista das transformações sociais, inscrito em greves, marchas, associações ou comunidades. No projeto O Direito Achado na Rua, tal noção é central, pois desloca o foco do sujeito individual (cartesiano/kantiano) para um sujeito social e histórico, que constrói o direito de forma coletiva e emancipatória.

Na América Latina, autores como Shyrley Peña Aymara ressaltam que o sujeito coletivo expressa subjetividades marcadas pela colonialidade, racismo, patriarcado e capitalismo, mas também por resistências ancestrais e alternativas, articulando o “senti-pensar” e o “co-razonar” dos povos originários. Assim, sua luta vai além da reivindicação de direitos formais, constituindo identidades coletivas que unem sentir e pensar, resistindo e propondo novos modos de vida.

O Direito, nesse sentido, não pode ser reduzido à lei estatal, já que há direito além, fora e contra a lei. Sua legitimidade decorre das lutas sociais e não apenas da legalidade formal. O Direito Achado na Rua propõe reconhecer as práticas sociais como fontes de direitos, valorizando experiências jurídicas alternativas forjadas por comunidades marginalizadas.

Portanto, o sujeito coletivo de direito atualiza-se como categoria fundante para afirmar novas legalidades, descentralizadas e plurais, legitimadas por demandas justas e essenciais. Ele possibilita a composição de identidades coletivas conscientes, auto-organizadas e engajadas na transformação social, constituindo-se como eixo da emancipação e da construção de uma nova organização social da liberdade.

Sobre a noção de sujeito coletivo de direito vale conferir https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/; e também na wikipedia, o verbete com esse título elaborado pelos alunos da disciplina Pesquisa Jurídica que rejo, na Faculdade de Direito da UnB: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito.

E a mais recente publicação do Grupo de Pesquisa (O Direito Achado na Rua) sobre o tema, https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-os-caminhos-do-direito-insurgente-ruas-movimentos-e-horizontes-de-justica/.

No tópico “Os Direitos Humanos como projeto de legítima organização social da liberdade” o artigo traz a perspectiva de O Direito Achado na Rua no que esse campo teórico-prático compreende os Direitos Humanos como processos históricos de emancipação, e não como declarações formais ou essências metafísicas. Eles nascem das lutas concretas de sujeitos coletivos e funcionam como critério de legitimidade do próprio Direito, entendido como positivação da liberdade conquistada socialmente.

São enunciados os três eixos do programa que permitem organizar a reflexão sobre os temas que elege, e que se constituem pela identificação do espaço político das práticas sociais que enunciam direitos; a definição da natureza jurídica do sujeito coletivo de direito; eos achados, vale dizer, a criação de novas categorias jurídicas para estruturar uma sociedade solidária, livre de exploração e opressão.

O artigo remete a Roberto Lyra Filho (O que é Direito? Editora Brasileiense, Coleção Primeiros Passos, 1982), no que mostra que os Direitos Humanos se atualizam historicamente: antes nas revoluções burguesas, depois nas experiências socialistas, e hoje na busca por um socialismo democrático e libertário. Assim, cada declaração oficial reflete apenas parcialmente esse movimento histórico, que segue em aberto.

E também a Alexandre Bernardino Costa, atual co-líder do Grupo de Pesquisa (O Direito Achado na Rua, Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), para quem essa concepção implica: (i) integrar os Direitos Humanos à ideia mesma de Direito; (ii) distingui-los de sua forma declaratória, reconhecendo-os como lutas; e (iii) situá-los para além de um projeto burguês, como motor de emancipação popular contra múltiplas opressões (classe, gênero, raça, sexualidade).

Nessa chave, os Direitos Humanos não são neutros nem universais em abstrato: são conquistas progressivas de grupos em luta. Eles permitem medir o que é emancipatório no presente histórico, constituindo-se como expressão de Justiça Social.

Para Lyra Filho, o Direito é modelo avançado de organização social da liberdade, inseparável da Justiça, que só existe como Justiça Social, resultado vivo das lutas que atualizam a liberdade em cada etapa da história.

Trancrevo a título de ilustração  – amostra e  fecho – as conclusões do artigo:

 

“os direitos humanos são as lutas [sociais] concretas”. Isso não significa, como erroneamente apontam alguns críticos, de forma infundada, que para “O Direito Achado na Rua”, uma Constituição Cidadã como àquela que levantou a sociedade brasileira em 1988 ou as declarações, pactos e normativas internacionais de Direitos Humanos sejam desimportantes. Temos plena consciência que esses documentos exercem peso na história, até mesmo porque grande parte desses direitos declarados como Direitos Fundamentais e Humanos foram gestados na “rua” como derivação de um processo histórico de lutas e reinvindicações que pressionaram e, assim mesmo, garantiram as condições políticas e sociais necessárias para a sua positivação. Em conformidade, pontua Eduardo Xavier Lemos  que o “Humanismo Dialético” de Roberto Lyra Filho, ao inserir o Direito na História, “[…] procura superar a limitação positivista (sem romper com o processo de positivação), pretendendo explicitar que a experiência do Direito é muito mais rica que o mero Direito positivado, também abrangendo os direitos emergentes das classes espoliadas”.

Segundo Sousa Junior , uma das linhas-mestras que embasam os trabalhos de “O Direito Achado na Rua” encontra-se na premissa, muito bem colocada por Marilena Chauí em seu prefácio ao livro A Invenção Democrática, de Claude Lefort, de que a democracia é, antes de tudo, a possibilidade de “criação permanente de direitos”; “porque sendo a marca da democracia a criação social de novos direitos e o confronto com o instituído, a prática democrática não cessa de expor os poderes estabelecidos aos conflitos que os desestabilizam e transformam, numa recriação contínua da política [e, acrescentamos: do direito]” . No caso da Constituição brasileira, recapitula José Geraldo de Sousa Junior , essa abertura fica evidente no Artigo 5º, que, após enumerar uma longa lista de direitos fundamentais, reconhece no §2º a existência de outros direitos decorrentes do “regime democrático” e dos “princípios por ela [a Constituição] adotados”. Ocorre que, quando reduzida a um mero documento jurídico e objeto exclusivo da interpretação técnica e institucionalizada pelo sistema de justiça, “[…] a Constituição se descola do cotidiano social, alienando completamente da sociedade a função – ou seja, o direito em formato de poder-dever – de atribuir ou disputar o significado do texto constitucional” . De “testamento da soberania popular” converte-se em texto amorfo desprovido da sua vitalidade política originária.

Contra essa impostura é que sustenta-se, em sede de Teoria Constitucional, um “Constitucionalismo Achado na Rua” , que nada mais é, em consonância com os princípios democráticos do pluralismo jurídico e com a plataforma emancipatória de ODAnR, “uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular” . Nessa direção, confronta-se a acusação disparatada de que o “Humanismo Dialético” e ODAnR renegam as medidas institucionais que afirmam direitos, sejam aquelas enquadradas dentro do ordenamento jurídico pátrio, ou aquelas que fazem parte de uma ordem jurídica internacional. Pelo contrário: o que se rechaça é a “fetichização” dessas normativas e instrumentos, que os transformam em barreiras à própria renovação democrática e concretização dos Direitos Humanos. O “Humanismo Dialético” de Lyra Filho — e por extensão, “O Direito Achado na Rua” — não nega a importância da positivação, mas recusa sua absolutização. Melhor explica José Geraldo de Sousa Junior  em trecho lapidar da entrevista concedida a Raique Lucas de Jesus Correia e José Euclimar Xavier de Menezes:

O Direito Achado na Rua, com todos esses desdobramentos, não é um direito fixo ou fossilizado em enunciados formais que, sob o pretexto de representá-lo, acabam por isolá-lo no formalismo e no estreitamento legislativo. Por isso que J. J. Gomes Canotilho […] reivindicava que a perspectiva crítica do Direito procurasse os vários modos de designação do Direito que a exigência do justo postula, e que só se representa em teoria de sociedade e teoria de justiça quando você tem a mediação de conhecimento […] inscrita nas práticas sociais, nos usos sociais, ou no “Direito Achado na Rua”, como um movimento que abre o trânsito para essa passagem de um direito que ainda é instituinte, que pode aspirar ser constituído, mas que requer elementos de intercomunicação com as pretensões de judicialidade em diferentes modos de designar o Direito. Por exemplo, a legalidade é um modo, mas as formas compartilhadas de luta por reconhecimento da legitimidade de outros meios de designar o real e o social também o são.

Ou seja, o que o “Humanismo Dialético” e ODAnR propõem é, tão somente, superar as limitações importas pelo “jusnaturalismo abstrato” e pela “ordem positivista reducionista” que, enquanto expressões ideológicas do Direito, assumem uma postura conservadora e reacionária em relação ao próprio processo histórico . Mas uma vez que as lutas sociais não cessam, os direitos também não; os direitos sempre se renovam, porque a “rua” é um espaço que sempre admite o novo: novos atores, novas bandeiras, novas agendas. O processo dialético é contínuo e uma visão dialética do Direito deve predispor essa dinâmica. Assim, como sintetiza Fabio de Sá e Silva : “se, para Lyra Filho, o direito era o produto das lutas sociais pela ampliação das liberdades individuais e sociais, O Direito Achado na Rua debruçou-se por décadas sobre algumas dessas lutas e seu potencial de contribuição para a renovação da dogmática e das instituições jurídicas”.

O Direito não se confunde com a Lei. Não nasce de cima para baixo como uma imposição estatal. Em verdade, a Lei declara direitos, mas existe uma diferença crucial entre “declarar” e “criar”. O direito nasce, se cria, se gesta em outro lugar. Metaforicamente, é dizer: o Direito nasce na Rua. A “rua” traduz o lugar simbólico do acontecimento, do cotidiano, do protesto, da revolta, o lugar ocupado pelo povo e para o povo. Como naqueles versos de Castro Alves ao declarar O Povo ao Poder: “A praça é do povo, como o céu é do condor; é o antro onde a liberdade cria águias em seu calor! Senhor!… pois quereis a praça? Desgraçada a populaça só tem a rua seu…”. A “rua” é que dá materialidade ao próprio Direito, porque na “rua” o Direito se revela não como uma abstração jurídica distante, mas como uma construção social viva, que emerge das demandas populares, dos movimentos sociais e das reivindicações por cidadania e justiça que se manifestam de forma concreta. O Direito, e isso é particularmente verdadeiro em relação aos Direitos Humanos, está, portanto, enraizado na historicidade das lutas sociais e, por essa razão, só pode realizar-se em sua dimensão emancipatória quando se transforma na expressão concreta dessas lutas.

E é precisamente nesta seara de luta por direitos e afirmação dos Direitos Humanos como vetor dialético do processo de libertação dos grupos e classes espoliados e oprimidos, que estão inseridos os movimentos sociais e os “sujeitos coletivos de direito”. Conforme elucida Maria da Glória Gohn , os movimentos sociais representam ações sociopolíticas que emergem da atuação de atores sociais coletivos oriundos de diversas classes e estratos sociais. Esses atores se articulam em contextos específicos da conjuntura socioeconômica e política de um país, dando origem a um campo político de força social na sociedade civil. A estruturação dessas ações ocorre a partir de repertórios elaborados em torno de temas e conflitos vivenciados pelo grupo na sociedade. Essas ações não se limitam a eventos isolados; ao contrário, desenvolvem um processo social, político e cultural que culmina na construção de uma identidade coletiva para o movimento. Essa identidade é forjada pela solidariedade e fundamentada em valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo, predominantemente em espaços coletivos não-institucionalizados.

Assim é que a luta pelos Direitos Humanos, pela efetivação da cidadania e pela superação das estruturas socioeconômicas de opressão e desigualdade envolve, acima de tudo, ação política e mobilização social, e não apenas a formalização de um conjunto de normas abstratas sem qualquer penetração na realidade local e carente dos princípios de legitimidade que advêm da conscientização histórica. Afinal, como nos lembra Roberto Lyra Filho , parafraseando Ernst Bloch, “não há verdadeiro estabelecimento dos Direitos Humanos, sem o fim da exploração; não há fim verdadeiro da exploração, sem o estabelecimento dos Direitos Humanos.