Lido para Você: A Governamentalidade Comunitária Extrativista no Processo Constitucional Brasileiro e a (Des)Construção do Ideal de Gestão Popular
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Sabrina Cassol. A Governamentalidade Comunitária Extrativista no Processo Constitucional Brasileiro e a (Des)Construção do Ideal de Gestão Popular. Tese defendida e aprovada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Brasília, janeiro de 2025, 219 fls.
A Tese passou pelo crivo dos Professores Alexandre Bernardino Costa, Orientador, da FD/UnB, Presidente, Raimundo Alves Neto, Examinador Externo – Ufac, Vinicius Silva Lemos, Examinador Externo – Ufac, e por mim.
Seu Resumo:
No final do século passado, mais precisamente na década de 1980, o Brasil teve um fato social conflituoso e complexo no Norte do país, o qual ganhou maior expressão e notoriedade, o que fez aumentar a resistência aos conflitos no campo/floresta, a criação das reservas extrativistas pelo Poder Constituinte. Sabe-se que, na Amazônia Brasileira, os conflitos fundiários e os debates ambientais envolvem grandes proprietários de terras, seringueiros, castanheiros, pescadores, indígenas e demais povos. De um lado, a proposta de ocupação e desenvolvimento. De outro, a proteção do bioma amazônico e dos povos locais. Com o discurso de desenvolvimento rápido e lucrativo, o próprio Estado Brasileiro buscou, por meio de políticas públicas, legislações tributárias e fundiárias, incentivar projetos e planos de desenvolvimento na Amazônia que a própria história revelou ineficientes e excludentes. Nesse contexto, a presente pesquisa tem como tema a análise do movimento social extrativista amazônico e sua intersecção com o processo constituinte brasileiro, visando compreender o ideal de governamentalidade institucional na Amazônia desde o início dos Planos Nacionais de Desenvolvimento da floresta brasileira e seu papel de resistência diante do ideal neoliberal de utilizar a floresta amazônica como um instrumento de lucratividade. A partir do movimento social extrativista, no âmbito do processo constituinte brasileiro, analisar-se-á se o ideal de governamentalidade comunitária atingiu seus propósitos a partir de sua institucionalização na Constituição Federal de 1988 e como esse compartilhamento decisório popular vem sendo administrado/gerido frente a proposta neoliberal “sustentável” e as normas infraconstitucionais posteriores, como a Lei Nacional das Unidades de Conservação, n. 9.985, de 18 de julho de 2000 – Lei SNUC. No primeiro capítulo, será abordada a história da Amazônia e sua interlocução com Chico Mendes e a criação das Reservas Extrativistas durante o período em que o Poder Constituinte estava devolvendo a democratização ao Brasil. No segundo momento, será detalhada a realidade da comunidade extrativista no Acre, os documentos constitutivos, a estrutura do poder local e o seu funcionamento a partir da realidade acreana/amazônica. No terceiro tópico, será realizada uma análise dos conflitos entre o poder social e a governamentalidade neoliberal, verificando como o projeto neoliberal avança frente ao povo da floresta, bem como a resistência atua em prol da proteção dessas comunidades e da permanência das decisões populares extrativistas. Para, ao final, indicar caminhos que permitam auxiliar essas comunidades tradicionais a desenvolverem estratégias que as empodere e garanta a gestão democrática comunitária. O método utilizado será o dedutivo.
O Sumário da Tese antecipa os eixos de abrangência das questões que movem o esforço descritivo-explicativo da análise da Autora:
1 INTRODUÇÃO
2 OS DIREITOS DOS POVOS DA FLORESTA E A NOVA ORDEM CONSTITUINTE: A CONSTRUÇÃO NORMATIVA DAS RESERVAS EXTRATIVISTAS
2.1 PLANO DE DESENVOLVIMENTO DA AMAZÔNIA NO REGIME MILITAR E A RESISTÊNCIA DO POVO DA FLORESTA
2.2 A PROTEÇÃO DAS ÁREAS NATURAIS: O CAMINHO PRECURSOR DA DEFESA DO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO E DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
3.2 A ESTRUTURAÇÃO LOCAL E NORMATIVA DAS RESERVAS EXTRATIVISTAS NO ACRE
3.3 A REALIDADE DA GESTÃO COMPARTILHADA DAS RESERVAS EXTRATIVISTAS ACREANAS: UMA VISÃO A PARTIR DO DIREITO ACHADO NA RUA
4.1 O ENFRENTAMENTO DAS INVESTIDAS NEOLIBERAIS DIANTE DA FLORESTA INTOCADA
4.2 A ALTERAÇÃO DAS LEGISLAÇÕES AMBIENTAIS NA BUSCA PELA TOMADA DO PODER NEOLIBERAL
4.3 O DIREITO ACHADO NA RUA E O CONSTITUCIONALISMO ACHADO NA RUA UMA ALTERNATIVA EMANCIPATÓRIA A PARTIR DO PODER CONSTITUINTE: A PROTEÇÃO DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS E A PERMANÊNCIA DAS DECISÕES COLETIVAS
4.4 Os 3 T’s: – TETO, TERRA E TRABALHO: A FORÇA DO MOVIMENTO POPULAR NA GARANTIA DE DIREITOS
5 A REALIDADE (IN) SUSTENTÁVEL DA RESEX CHICO MENDES E OS CAMINHOS E ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO QUE ALICERCEM E PROTEJAM A GESTÃO DEMOCRÁTICA COMUNITÁRIA EXTRATIVISTA
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
7 REFERÊNCIAS
A tese, como se depreende do resumo e do sumário, tem como tema, nas palavras da Autora, “a análise do movimento social extrativista amazônico e sua intersecção com o processo constituinte brasileiro, visando compreender o ideal de governamentalidade institucional na Amazônia desde o início dos Planos Nacionais de Desenvolvimento da floresta brasileira e seu papel de resistência diante do ideal neoliberal de utilizar a floresta amazônica como um instrumento de lucratividade”.
O estudo parte do movimento social extrativista, no âmbito do processo constituinte brasileiro, e analisa, tendo como hipótese, “se o ideal de governamentalidade comunitária atingiu seus propósitos a partir de sua institucionalização na Constituição Federal de 1988 e como esse compartilhamento decisório popular vem sendo administrado/gerido frente à proposta neoliberal supostamente sustentável e às normas infraconstitucionais posteriores, como a Lei Nacional das Unidades de Conservação, n. 9.985, de 18 de julho de 2000 – Lei SNUC”.
O desenvolvimento da tese, conforme os capítulos em que se organiza, começa – primeiro capítulo – com uma breve história da Amazônia e sua relação com Chico Mendes, bem como a criação das Reservas Extrativistas durante o período em que o Poder Constituinte de 1988 promovia a redemocratização do Brasil. Nesse capítulo a Autora descreve “o passado da região amazônica para compreender as peculiaridades de seu povo, de sua cultura e de seus costumes, bem como tangenciar a busca pelo seu desenvolvimento, seja pela visão dos povos tradicionais, seja pela visão capitalista. Sabe-se, desde os tempos mais antigos, que esse território é local de muitas riquezas, mas que ainda permanece obscurecido pelo limitado conhecimento de seus recursos, em razão de estudos e pesquisas insuficientes, o que acaba abrindo portas para desinformações, que, nesse contexto, privilegiam os ataques destrutivos do sistema capitalista”, pondo em relevo o papel que Chico Mendes desempenhou “na defesa dos direitos dos povos da floresta, visto que começou a ganhar voz em âmbito internacional, dando início à propagação de um novo olhar sobre a riqueza da floresta e da ressalva em desenvolvê-la por meio do agronegócio”.
No segundo momento, numa lealdade epistemológica que valoriza o programa interinstitucional desenvolvido entre a UnB e a UFAC (Pós-Graduação em Direito), o centro do estudo é “a realidade da comunidade extrativista no Acre, os documentos constitutivos, a estrutura do poder local e o seu funcionamento a partir da realidade acreana/amazônica”, buscando esclarecer “a estruturação do funcionamento da comunidade, tratando do seu plano de manejo, o contrato de uso, as políticas de comando e controle, além de observar outras legislações pertinentes que evidenciam o papel do Estado e como as instituições jurídicas foram desenvolvidas, formalizadas e instituídas no sistema de formação das reservas extrativistas”, num regime jurídico que “transformou o Estado em único protagonista do gerenciamento da vida social na região”.
No terceiro tópico, a Tese se detêm na “análise dos conflitos entre o poder social e a governamentalidade neoliberal, verificando como o projeto neoliberal avança frente aos povos da floresta, bem como a resistência atua em prol da proteção dessas comunidades e da permanência das decisões populares extrativistas, para, ao final, indicar caminhos que permitam auxiliar essas comunidades tradicionais a desenvolverem estratégias capazes de empoderá-las, a fim de garantir a gestão democrática comunitária”, não ignorando que essas estratégias de empoderamento alavancadas pelo experimento da gestão democrática extrativista calçam um modo de “resistência aos interesses do capital” embora num “processo de conquista de direitos nunca será imune às pretensões de recaídas e retrocessos”.
Logo no item 2 – Os Direitos dos Povos da Floresta e a Nova Ordem Constituinte: a Construção Normativa das Reservas Extrativistas – fazendo jus a epígrafe do trabalho extraída de Chico Mendes (No começo pensei que estivesse lutando para salvar as seringueiras, depois pensei que estava lutando para salvar a Floresta Amazônica. Agora percebo que estou lutando pela humanidade), a Autora recupera a experiência de luta por democracia e cidadania e em seu arranque mobilizador da Assembleia Constituinte a mobilização amazônica conduzida pela Aliança dos Povos da Floresta, com sua singularidade, marcando sentido no conjunto dessas lutas. Resume a Autora valendo-se de enunciados de O Direito Achado na Rua e, no contexto de sua concepção e prática, alguns enunciados que contribui para fixar:
No Brasil, a experiência de luta vivenciada pela construção da cidadania sempre esteve presente como reivindicação de direitos e de liberdades, bem como por instrumentos de organização, representação e participação em estruturas estatais e não estatais que auxiliam no equilíbrio da sociedade. (Sousa Junior, 2008) Neste sentido, a luta pela defesa da Amazônia fundou-se, uma vez que foi a partir de estruturas políticas, sociais e econômicas que o nascedouro da resistência firmou-se. Era preciso alicerçar vínculos organizados que buscavam os mesmos interesses, para que suas reivindicações fossem ouvidas a partir do silêncio da floresta.
Porém, seria em 1987, durante o lançamento da Campanha em defesa da Amazônia, que a Aliança dos Povos da Floresta foi anunciada, com o propósito de fortalecer os vínculos entre os seringueiros e os indígenas, devido a interesses comuns que eram permeados entre a defesa da mata e um modelo de desenvolvimento que respeitasse as peculiaridades da Amazônia, principalmente quanto ao seu modo de vida. (Iea, 2024)
Em agosto de 1988, no Seminário sobre a Amazônia na Constituinte, organizado pelo Instituto de Estudos Amazônicos – IEA no Círculo da Cidadania, em Curitiba, Chico Mendes, Jaime Araújo e Ailton Krenak reafirmaram a Aliança dos Povos da Floresta, convidando ainda organizações indígenas do sul do país para fazer parte do movimento. Em março de 1990, três meses após o assassinato de Chico Mendes, a CNS e a UNI organizaram o II Encontro Nacional dos Seringueiros e o I Encontro dos Povos da Floresta em Rio Branco – Acre.
O ato de organizar-se atingiu coletivamente a chamada Cidadania Coletiva Diferenciada, aqui implementada, na qual há uma diversificação de grupos sociais, que implicam o conceito de cidadania, tornando a negociação com a esfera pública mais efetiva, já que conseguem apontar o real problema do formalismo e do dogmatismo no direito brasileiro, principalmente quanto à omissão de direitos do Povo da Floresta, criando novas fontes de produção de direitos e de leis democráticas que emergiram dos conflitos sociais vivenciados, na busca por uma ordem com maior justiça social. (Sousa Junior, 2008).
Essa forma de configurar a base social de configuração de um tema com tal singularidade, constitui uma corroboração ao que César Claudino Pereira, em Quais as relações entre neoliberalismo, florestania e o agronegócio desenvolvido na Amazônia e no Acre. Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília – UnB, 2025, com outras aproximações, também historia esse importante movimento amazônico no seu alcance político e conceitual.
Acabo de publicar uma recensão sobre a Tese de César Claudino Pereira aqui nesse espaço da Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/quais-as-relacoes-entre-neoliberalismo-florestania-e-o-agronegocio-desenvolvido-na-amazonia-e-no-acre/). No que pertine ao tema de Sabrina Cassol, replico o que então lancei na resenha referida:
Mas, a bem da verdade, histórica, social e politicamente ele associa a categoria, a Chico Mendes, mas de tal modo contextualizado, que não sequestra a noção para a isolá-la, como que concentrada, num esquematismo que se reduza ao formal-operacional. Em Futuro Ancestral, no capítulo Alianças Afetivas, ele esclarece a abertura de sentido trazida por essa noção (p. 75-76): “A palavra cidadania é bem conhecida: está prevista na Declaração Universal dos Direitos do Homem e em várias constituições. Faz parte desse repertório, digamos, branco. Já o enunciado de florestania nasceu em um contexto regional, em um momento muito ativo da luta social dos povos que vivem na floresta. Quando Chico Mendes, seringueiros e indígenas começaram a se articular, perceberam que o que almejavam não se confundia com cidadania – seria um novo campo de reivindicação de direitos (afinal, estes não são uma coisa preexistente, nascem da disposição de uma comunidade em antecipar o entendimento de que algo deveria ser considerado um direito, mas ainda não é)”.
Direito Achado na Floresta, talvez, ou como propõe César Claudino Pereira, atento ao modo empírico de realidade do Acre, Direito Achado nos Varadouros (Tese p. 93): “Ao promover a equidade ambiental e garantir consequentemente a construção de uma governança participativa e inclusiva, o modelo converge com os ideais estudados no “O Direito Achado na Rua”, com um olhar voltado para os “Varadouros”, demonstrando que tudo o que foi idealizado por Roberto Lyra Filho pode ser contextualizado também no interior da Amazônia e que essa concepção teórica está alinhada com um pensar o Direito a partir de comunidades amazônicas. Num mundo mais justo, seria pensar um diálogo entre Roberto Lyra Filho e Chico Mendes sobre suas concepções de Direito, por isso o trocadilho para ‘O Direito Achado nos Varadouros’, um Direito verdadeiramente coletivo e emancipatório para os povos da floresta (Varadouro é como os povos da floresta chamam os caminhos que percorrem dentro da mata)”
Tratar de gestão das Unidades de Conservação, mais precisamente nas reservas extrativistas, é um desafio constante, pois as decisões coletivas desde sua idealização e, posteriormente, sua implementação têm, como pressuposto, assegurar a proteção desses espaços protegidos institucionalmente por meio da participação popular, ou seja, pela democracia participativa.
Logo, compreender que a partir do compartilhamento de decisões, a perfectibilização do desenvolvimento sustentável pode ser alcançada, cumprindo, dessa forma, a exigência formal para a criação desse tipo de “reforma agrária” é real e está sendo praticado no Brasil. Contudo, as dinâmicas sociais e territoriais desses espaços públicos devem ser consideradas, principalmente, dentro do seu universo de relações culturais, identitárias, sociais, políticas, econômicas e ambientais, visto que são esses aspectos que irão definir a dimensão das oportunidades e ameaças na efetividade proposta.
Cabe, ademais, consignar que os resultados satisfatórios nesse tipo de gestão coletiva passam a ser buscados de forma integrada, para tanto, torna-se imprescindível a busca pelo apoio da maioria e a garantia da participação de todos no âmbito da arena de decisões, pois é uma condição sine qua non para sua efetividade. A administração instalada nessas áreas protegidas presume ainda legitimidade, compromisso, transparência, legalidade e eficiência, tornando os fóruns de discussões mais claros, práticos e dinâmicos, resultando na troca de experiências, no bem-estar coletivo e na proteção do meio ambiente.
A pretensão da legislação em criar a participação da comunidade tradicional e da sociedade visava garantir oportunidades e igualdade de condições, respeito às diferenças, mas, principalmente, fazer com que as comunidades pensem em conjunto a favor do compromisso com a floresta e com o desenvolvimento sustentável, que deve ser partilhado com toda humanidade.
Essa gestão compartilhada surgiu do movimento dos seringueiros, ou seja, nasceu de uma ação coletiva, exercida por meio dos ‘empates’ e “se desdobra em um movimento social (ao criar uma entidade representativa e um programa de ação) e se institucionaliza como uma política pública.” (Alegretti, 2002, p. 23) Assim sendo, a identidade dos seringueiros nasceu da coletividade, uma vez que uniu seus membros pelo movimento de resistência, o que acabou por gerar decisões, definindo seus objetivos e marcando seu espaço frente aos demais grupos sociais, o que norteou os processos necessários até sua institucionalização. (Alegretti, 2002)
Portanto, a luta por direitos envolve muito mais que a própria condição de receber as prerrogativas após conquistadas, porque os interesses que estão em jogo fazem com que os sujeitos que dominam as normas utilizem, por exemplo, suas intenções, sejam elas boas ou más, para alterar a interpretação das alternativas construídas pela resistência. Em face disso, lutar pelos direitos sonhados não é apenas alcançar resultados, mas também vencer os discursos de uma classe elitista dominante que sempre criará obstáculos e discursos que inviabilizem a verdadeira inclusão normativa. (Sousa Junior, 2019)
Ademais, sabe-se que o Direito é um caminho de consagração, mas também de exclusão de direitos, pois, assim os oprimidos quando chegam à porta da lei encontram um obstáculo, dificuldade, impedimento ou ameaça, mas o Estado e o Direito continuam afirmando que a porta está aberta, que a lei faz de todos os homens iguais, que as oportunidades, serviços e possibilidades de intervenção do Estado estão sempre presente para todos, de forma isonômica e cega. E a sistemática, usual, crônica injustiça da sociedade é apresentada como exceção, coincidência ou desventura. O Estado e seu Direito não conseguem aceitar as diferenças sociais e as injustiças que elas engendram e na maior parte das vezes as omitem ou mascaram, ajudando em sua perpetuação. (Marés de Souza Filho, 1992, p. 146)
Essa situação só comprova que “é do conhecimento comum que nem sempre a pura aplicação da lei basta para fazerem justiça, o que, com frequência, exige até uma leitura contra a lei”. E isso ocorre principalmente nos países que seguem o direito de tradição romana como o Brasil, que prioriza a lei aos costumes, isto é, na prática, a aplicação da norma brasileira baseia-se muito mais na interpretação literal da lei do que sua adequação à ordem social, ferindo seus princípios de liberdade que garantiriam a evolução da cidadania unindo o Direito e a Sociedade. (Sousa Junior, 2008, p. 25)
Essa realidade não é diferente quando a luta é pelo acesso e a propriedade da terra.
Aos olhos da lei a realidade social é homogênea e na sociedade não convivem diferenças profundas geradas por conflitos de interesse de ordem econômica e social. O Sistema Jurídico os transforma em questões pessoais, isola o problema para tentar resolvê-lo em composição de partes, como se elas não tivessem, por sua vez, ligações profundas com outros interesses geradores e mantenedores dos mesmos conflitos. O Estado, quando legisla, executa políticas ou julga, não trata os conflitos de terra, por exemplo, como o choque de interesses de classes, segmentos sociais ou setores da sociedade, mas como o conflito entre o direito de propriedade do fazendeiro tal contra o direito subjetivo do posseiro qual. Tudo fica reduzido a desafetos pessoais e a Lei, geral e universal em princípio, se concretiza apenas nos conflitos individuais, podendo ser injusta na aplicação, mas mantendo sua aura de Justiça na generalidade. (Marés de Souza, 1992, p. 146)
Vale mencionar que, em um país tão diverso e plural como o Brasil, há muitos grupos étnicos com profundas diferenças sociais e organizacionais. Cada grupo desses possui suas normas, seu “direito próprio, não escrito, mas rigidamente obedecido. Porém, o estado e seu Direito negam a possibilidade de convivência, num mesmo território, de sistemas jurídicos diversos, acreditando que o Direito Estatal seja o único e unipresente.” (Marés de Souza Filho, 1992, p. 147)
Fico bem confortado em constatar o modo muito qualificado e pertinente com que Sabrina vincula seu enquadramento de pesquisa nos parâmetros de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática (v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503; cf. em https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-contribuicoes-para-a-teoria-critica-do-direito/), e mais ainda, no que tange aos fundamentos constitucionais ao que nessa modelagem ao que tem sido configurado como constitucionalismo achado na rua (para mais, além de Sabrina, ver: https://estadodedireito.com.br/constitucionalismo-achado-na-rua-uma-contribuicao-a-teoria-critica-do-direito-e-dos-direitos-humanos-constitucionais/). Sobre o que dispõe Sabrina:
Faz-se relevante ainda ressaltar que o novo constitucionalismo, mais precisamente, o Constitucionalismo Achado na Rua, que está já constituído nas constituições latino-americanas da Bolívia, Equador e Venezuela, consagra a democracia participativa como seu ponto central, não restringindo apenas à defesa do meio ambiente, mas aplicando, de forma ampla e irrestrita, a todos os direitos fundamentais, englobando uma cosmovisão dos Povos da Floresta, que, conforme já expresso, nasceu dos conhecimentos dos povos indígenas e do seu senso de conviver em paz com a natureza, respeitando o planeta terra, que deve ser de todos, inclusive, das futuras gerações.
Dessa forma, o bem viver ou o bem conviver enaltece o planeta terra como um sujeito de direitos coletivos, o qual merece proteção coletiva e individual de cada ser humano. São esses princípios que a Constituição Brasileira precisa inserir de forma mais ampla e expressa, não apenas prevendo os direitos dos Povos da Floresta e criando legislações infraconstitucionais que possuem travas legislativas que obstam sua efetivação. As práticas e políticas ambientais precisam de embasamento teórico alicerçado nessa visão do novo constitucionalismo, mais solidário e justo, abandonando a primazia das valorações econômicas e de suas vantagens capitalistas em detrimento não só dos recursos naturais, mas como também do bem viver e da vida humana.
Para isso, o Brasil precisa investir mais em pesquisas que demonstrem que a viabilização da emancipação e do empoderamento do seu povo fortalecerá a democracia participativa e as decisões em prol da coletividade passarão a primar pelo coletivo, inclusive, garantindo a inclusão desses grupos em uma nova estrutura estatal, que afiance que não apenas os interesses econômicos monopolizem as normas e os direitos. Tudo inicia pelo enfrentamento após esse aflorar do poder popular, já que os debates denunciam os jogos de interesses e obstam os retrocessos normativos e protetivos diante das tendências autoritárias, não apenas na área ambiental como em todas as áreas de direitos.
Outra compreensão necessária como decorrência deste trabalho é que a construção desses direitos, seguindo os preceitos aqui adotados pelo DANR é de que, na prática construtiva, há uma inversão na ordem tradicional na construção do Direito e das normas, pois quem dirige a luta por eles é o povo a partir da rua, ou seja, a representação popular, os movimentos sociais e seus sujeitos coletivos são os protagonistas do processo social e normativo, e não o sendo os juristas e cientistas. Neste sentido, cabe compreender então que “as lutas na rua” buscam construir novos direitos, direitos originários à sua identidade para que um novo projeto político de transformação social seja concretizado.
Dessa forma, há de deixar cristalina a compreensão de que os movimentos sociais são os protagonistas do processo de lutas por direitos para o Direito Achado na Rua, sendo que os seus cientistas e adeptos deixaram de ser compreendidos como intelectuais de vanguarda e passaram a ser intelectuais de retaguarda, cabendo aos últimos análises, tentativas de interpretação e compreensão dessas lutas para, posteriormente, construir proposições teóricas por meio das experiências de luta realizadas nas ruas.
E a partir desse entendimento que o presente estudo visou, mais especificamente, criar uma oportunidade de discussão sobre os direitos de gestão compartilhada das Reservas Extrativistas no Acre, oportunizando ao leitor a percepção da crise existencial entre o direito e a norma brasileira, os interesses que circundam a efetividade desses direitos conquistados e as lutas que transcendem o acesso a terra e seu uso, mais precisamente, que demarcam uma luta conjuntural pela sua identidade, valores e cultura, os quais, diante da opressão e exploração da cultura tradicional colonialista, nunca foram aceitas por completo.
Essas discussões buscaram, a partir das lutas sociais, propor travessias que emergem das ruas para esse momento de crise, mas também visou construir uma direção a um futuro transcendental, baseado na autonomia, na liberdade, na solidariedade, na fraternidade e na paz.
A leitura de Sabrina Cassol, com base em O Direito Achado na Rua e nos fundamentos éticos do pensamento fraterno inserido na perspectiva teológica de denúncia das estruturas de pecado que o capitalismo engendra e que permeia todo o ensino social do Papa Francisco sintetizado na teologia dos três Ts – Terra, Teto e Trabalho, como uma denúncia do caráter neocolonial do neoliberalismo (cf. todo o ítem 4: 4.1 O Enfrentamento das Investidas Neoliberais Diante da Floresta Intocada; 4.2 A Alteração das Legislações Ambientais na Busca pela Tomada do Poder Neoliberal; 4.3 O Direito Achado na Rua e o Constitucionalismo Achado na Rua uma Alternativa Emancipatória a Partir do Poder Constituinte: a Proteção das Comunidades Tradicionais e a Permanência das Decisões Coletivas; 4.4 Os 3 T’s: – Teto, Terra e Trabalho: a Força do Movimento Popular na Garantia de Direitos), vai organizar a tomada de posição da Autora anti-neoliberal e atenta ao desiderato do protagonismo social que ela designa no ítem 5 da Tese: 5 A Realidade (In)sustentável da RESEX Chico Mendes e os Caminhos e Estratégias de Empoderamento que Alicercem e Protejam a Gestão Democrática Comunitária Extrativista.
Penso que está nesse ponto o arremate criativo e inédito da Tese. Segundo a Autora: “Pode-se dizer que os textos assim organizados, trazem para O Direito Achado na Rua contribuições que dotam os sujeitos sociais com um cabedal crítico apto a ampliar seu protagonismo para buscar espaços emancipatórios no social e no político. Nesse viés, a presente obra constitui ambiente propício de potencialização das redes de apoio, organismos e arranjos jurídicos à serviço da sociedade, uma vez que disponibiliza arcabouço fruto da confrontação entre dados do passado e projeções de um futuro ainda permeado de incertezas, ao passo que permite refletir sobre o momento de crise da sociedade brasileira”.
A sua posição antineoliberal já vinha se fortalecendo política e teoricamente nos estudos preparatórios de sua formação no Programa Interinstitucional, especialmente nos espaços constituídos por seu Orientador e por mim, na disciplina O Direito Achado na Rua. Confira-se: O Direito Achado na Rua. Do Local ao Universal – A Proximidade Solidária que Move o Humano para Reagir e Vencer a Peste. Organizadores: Alexandre Bernardino Costa, José Geraldo de Sousa Junior, Sabrina Cassol. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022 (https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-do-local-ao-universal-a-proximidade-solidaria-que-move-o-humano-para-reagir-e-vencer-a-peste/).
Na obra, as questões universais, em A Universalidade do Direito à Saúde: uma Análise do Direito Achado na Rua no Estado do Acre Durante a Pandemia Covid-19 que ela, juntamente com César Claudino Pereira; Rafael Marcos Costa Pimentel (co-autoria), visam a abordar, em contraposição ao neoliberalismo, os efeitos da pandemia em âmbito mundial sem se alienar de seus efeitos locais, no estado do Acre e como a competência para tratar do assunto é distribuída entre os entes, como lidam efetivamente com as dificuldades impostas pela pandemia e possíveis soluções para essas dificuldades na perspectiva do Direito Achado na Rua.
Então, como agora na Tese, a intenção da Autora neste aspecto, ao que me parece, continua a de encontrar propostas a partir de descobertas, buscando desenvolver um direito aberto e emancipatório, trazendo contribuições teóricas e práticas ao Direito Achado na Rua e a necessidade de um Direito Constitucional na Rua que seja entregue aos verdadeiros protagonistas das mudanças sociais, isto é, os sujeitos coletivos, sua legitimidade para que sua participação popular seja instrumentalizada no processo construtivo de novos direitos (sobre essa categoria e sua incidência ativa: https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/). Ao fim e ao cabo, reconhecer aos legítimos autores sociais o seu poder popular de fazer emergir sua autonomia e sua cidadania a partir da rua, do seringal, da Resex, da floresta, do ramal ou do varadouro.
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