domingo, 27 de agosto de 2023

 

Participação Popular Consultiva no Conselho de Defensoria Pública

  •  em 



Chama a atenção no debate público hoje no Brasil, a intensa mobilização de opinião pública para discutir critérios, perfis e mentalidades que venham a constituir a composição dos órgãos e instituições que formam o sistema de justiça brasileiro. Nesse momento, o debate se concentra na mobilização para vaga no STF em face de aposentadoria próxima de uma de suas duas ministras.

 

 

É natural esse debate tendo em vista o momento de retomada democrática, depois de um surto desdemocrático e desconstituinte, de feição fascista (o termo alargado conforme Umberto Eco que fala de fascismo eterno em seguida a caracterizar essa forma de exercício autoritário de governo e eu diria, de organização social, na modelagem, conforme Boaventura de Sousa Santos de fascismo societal), durante o qual, por conta de uma intervenção desastrosa do aparato jurídico, se generalizou a expressão lawfare, para designar o uso jurídico do sistema de justiça numa ação política para conter e vencer inimigos.

 

 

Ocorre que esse debate, até quando se dá por meio de mobilizações progressistas, democráticas, civilizadas, se reveste, no Brasil, ainda enredado nas recalcitrâncias decoloniais, em meio as injunções racistas, patriarcais e patrimonialistas que afetam a nossa formação econômico-social-política e jurídica.

 

 

Por isso é ainda um debate embalado em questões de classe, de raça, de gênero, corporativas, alusivo a elementos corporativos, seccionais, estamentais. Pode até ser avançado sobre orientar as escolhas de gênero, raça, ou de classe; elaborar critérios sociais de desempenho, biografias marcadas por lealdade a temas emancipatórios, socialmente relevantes, porém, fundamentalmente à luz de um debate conduzido por representações de elites intelectuais, profissionais, funcionais e políticas no sentido liberal dos termos.

 

 

Não há ressonância para um debate aberto no espaço público do social no sentido do protagonismo participativo que foi desenhado pelo esforço constituinte que levou à elaboração da Constituição Cidadã, a partir de 1988, que remete à participação plena da sociedade aberta e horizontalmente ativa.

 

 

Nesse espaço sistêmico da Justiça, apenas a Defensoria Pública pensada nos termos da Constituição de 1988, é a instituição que mais avançou nessa direção, teórica, política e funcionalmente.

 

 

Em entrevista que concedi ao Boletim Forum DPU da Escola Superior da Defensoria Pública, visando a incutir esse fundamento na formação dos quadros da instituição, como projeto e como programa, acentuei esse carisma (Defensoria Pública e Acesso à Justiça – Forum DPU V.3 N.11 ISSN: 2526-9828 Ano: 2017 – https://www.dpu.def.br/enadpu/forumdpu/edicao-11)

 

 

À pergunta sobre o potencial da DPU como instituição voltada para a garantia do acesso à justiça e quais os principais desafios a serem enfrentados pela DPU para a concretização deste potencial? Respondi não ser por acaso que, nas mobilizações para a institucionalização de defensorias, o social organizado tenha sido um fator determinante para a sua criação. Pense-se, por exemplo, o caso da Defensoria de Sâo Paulo para cuja institucionalização muito contribuiu a mobilização da sociedade civil. Por isso mesmo, em sua estrutura, é muito pertinente a atividade de sua Ouvidoria Externa, eleita, que traduz de alguma maneira o sentido de participação que nesse sistema o princípio democrático alcançou. Veja-se a esse respeito, a belíssima tese de doutoramento de Élida Lauris dos Santos, defendida em Coimbra, sob orientação de Boaventura de Sousa Santos (tive o privilégio de aprendizado ao participar da banca): “Acesso para quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece: dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas do acesso à justiça no Brasil e em Portugal. Coimbra: [s.n.], 2013 ”.

 

 

Logo, na sequência, a questão sobre o potencial do processo de coletivização judicial para a garantia do acesso à justiça e quais riscos este processo pode apresentar? Minha resposta: já não se trata de potencial, mas de constatação de seu valor para a ampliação de acessos à Justiça se considerarmos as formas coletivas de abreviar esse acesso e de coletivizar as pretensões. Pense-se nas estratégias ampliadas de subjetivação ativa das ações de inconstitucionalidade, na formação de juízos de convencimento a partir da dinâmica de audiências públicas, de admissibilidade de terceiros não diretamente parte em causas (amicuscuriae), nas gestões para construção de ajustes de conduta e outras modalidades de pactuação para constituir obrigações e responsabilidades mediadas pela estrutura administrativo-judicial. O risco é o da judicialização da política e do ativismo decisionista, não confundidos com a competência alargada de aplicação construtiva de soluções judiciais, situações que têm revelado uma indevida substituição de razões do mediador (juízes, cortes judiciais, órgãos do sistema de justiça e do ministério público) em lugar das disposições legítimas de entendimentos razoáveis construídos pela participação ativa de coletividades e sujeitos coletivos (mecanismos de consulta prévia e informada, expertises sociais etc).

 

 

Assim, considero que a institucionalização das ouvidorias externas no corpo das defensorias é uma resposta contundente na direção da democratização do acesso à justiça e do debate que não pode ficar restrito corporativamente aos juristas. Por isso deve ser saudada a Lei Federal de 2009 que determina este formato de Ouvidoria Externa de Defensoria, mas só 17 das 27 defensorias cumprem a lei, que são: Acre, Rondônia, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco, Paraíba, Bahia, Mato Grosso, Distrito Federal, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

 

 

Tratei em argumentos largos sobre esse processo ao participar da edição do livro “Defensoria Pública e a Tutela Estratégica dos Coletivamente Vulnerabilizados. (Orgs): Lucas Diz Simões, Flávia Marcelle Torres Ferreira de Morais, Diego Escobar Francisquini. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019” (sobre esse trabalho ver a minha recensão em http://estadodedireito.com.br/defensoria-publica-e-a-tutela-estrategica-dos-coletivamente-vulnerabilizados/.

 

 

Numa síntese apertada, o que sustento é que como uma espécie de apanhado histórico entre as estratégias de luta social e a opacidade da institucionalidade de justiça, sobretudo em relação às violações e à agenda política de direitos carregada e instituída na práxis dos movimentos sociais populares, surge no Brasil o que viria a ser reconhecida como a assessoria jurídica e advocacia popular, uma espécie de subcampo político-jurídico no interior da advocacia brasileira, orientado por princípios humanitários, pedagógicos e políticos de compromisso e o diálogo com comunidades e movimentos de base organizados em torno da luta por direitos (como sindicatos, comunidades e movimentos de luta pela terra), e incumbidos de uma tarefa histórica de tradução jurídica da luta política por direitos .

 

 

Quando se analisa o desenho institucional conferido à Defensoria, verifica-se a presença de fortes elementos democratizantes, que aproximam a instituição e sua prática a esse subcampo político-jurídico. Presença esta que é notada desde a constitucionalização de sua função essencial à justiça, passando pela natureza dos direitos e sujeitos que tutela e serve, até alcançar a sua arquitetura institucional.

 

 

A Defensoria Pública é uma instituição que figura como um dos principais atores para o alargamento e a democratização do acesso à justiça no Brasil. Comumente associada ao exercício de uma de suas funções constitucionais, a saber, a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (CF/88, artigo 5º, inciso LXXIV) – ou, atualmente, na tutela de grupos socialmente vulneráveis –, suas funções institucionais não se reduzem à dimensão da assistência judicial, mas, antes, a projetam como ator qualificado para a democratização da justiça no Brasil.

 

 

Isso advém, principalmente, do processo de institucionalização do órgão, que inova ao ser introduzido em texto constitucional – atuação de constituinte originário que, posteriormente, será agregada por diversos outros países latino-americanos  – como “verdadeiro modelo organizacional” a ser “assumido efetivamente pelo Estado”, prestigiando uma concepção ampla de acesso à justiça, que situa seus esforços na diminuição das desigualdades sociais, concretizadas em contundentes e rotineiras violações interpenetrantes de estruturas monetárias, raciais, sexuais, locais, identitárias, culturais, enfim, de um complexo de variantes discriminatórios que, na realidade fática, complexificam as dificuldades de efetivar acesso à proteção de direitos essenciais para o exercício básico da cidadania.

 

 

Por isso é notável a iniciativa da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, por promoção de sua Ouvidora Externa Marina Ramos Dermann – (o Ouvidor atual Rodrigo de Medeiros, originado dos quadros da advocacia popular de movimentos sociais, foi nomeado depois de escrutínio do Conselho do órgão, avalisado pornota de apoio de 155 professores/as e acadêmicos/as de todo o país, carta de apoio de movimentos e entidades com 183 movimentos/entidades sendo mais de 120 do RS https://mst.org.br/wp-content/uploads/2023/03/Carta-Aberta-Apoio-a-Rodrigo-de-Medeiros-Para-Ouvidoria-da-DPE_RS-3.pdf, traduzindo a melhor forma de corresponder a um dever funcional tão democraticamente legitimado) – de constituição de um Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, como já realizado por outras Defensorias Públicas no País (SP, PR, BA e AC) e Defensoria Pública da União.

 

 

A promoção, que precisa ainda ser pautada para deliberação – já com alguma demora – do Conselho Superior da Defensoria, corresponde às expectativas de inúmeras expressões do social que já enviaram apoio, no sentido de que“a criação de um conselho consultivo pela ouvidoria da DPE/RS semostra como um importante espaço de interlocução permanente entre a referidainstituição e a sociedade civil, sobretudo nas temáticas envolvendo o campo da saúde, assistência, educação edireitos humanos”.

 

 

Do que se trata, em suma, é tornar possível a aproximação do direito à realidade social, proporcionando o apoio à efetivação dos direitos dos grupos subalternizados, seja através de mecanismos institucionais, judiciais ou por mecanismos extrajudiciais, políticos e de conscientização. A aposta ultrapassa aspectos formais, do repertório jurídico tradicional e tenta compreender a realidade diante de sua complexidade, buscando, assim, ofertar respostas também complexas e abrangentes.

 

 

Conforme os pressupostos de O Direito Achado na Rua, a Defensoria Pública, em sua expressão popular, torna-se estratégia importante para garantir o acesso ao direito e à justiça das cidadãs e dos cidadãos, especialmente os subalternizados, na medida em que atua para que estes conheçam seus direitos e não se resignem em relação às suas violações, bem como tenham condições de superar os obstáculos econômicos, sociais e culturais a esse acesso.

 

 

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

Nenhum comentário:

Postar um comentário