MIGALHAS DE PESO
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O “Direito achado” nas
ruas pela Defensoria Pública precisa fazer parte do STF
Mônica de Melo
Faz-se necessária a
possibilidade tornar visíveis os milhares de vulneráveis, contribuindo para uma
visão crítica e emancipatória do Direito e da Justiça.
30/8/2023
Vai Maria cansada de
apanhar
Não sou pedra, mas
posso endurecer
Vai José se arrastar
pela cidade
Não sou lenha, mas eu
incendeio
(...)
Já sei pra onde vou
Eu vou sentir o calor
da rua
Já sei pra onde vou
Eu vou sentir o calor
da rua
Já sei pra onde vou
Eu vou sentir o calor
da rua
(letra da música Calor
da Rua de Francisco, El Hombre)
No sistema de Justiça
brasileiro são as Defensorias Públicas que “acham o Direito”1 pelas ruas, nas
quebradas, nas comunidades, nas encruzilhadas. Não, não se trata de uma
metáfora. A Defensoria Pública é a instituição responsável por garantir o
direito constitucional fundamental de acesso à Justiça da população vulnerável
brasileira. A Constituição Federal de 1988 optou por um modelo público de
assistência jurídica integral. Desde então as Defensorias Públicas Federais e
estaduais foram sendo instituídas nos moldes constitucionais e buscam seu
fortalecimento e expansão de modo que o direito tenha cobertura universal, como
ocorre com a saúde e a educação, pois são essas instituições que concretizam o direito
de garantir todos os demais direitos. As Defensorias Públicas foram criadas sob
a ótica da assistência jurídica integral, o que significa ir além do acesso ao
Poder Judiciário, para prever, dentre suas atribuições, orientação jurídica,
atendimento extrajudicial, mediação de conflitos, Justiça restaurativa,
educação em direitos, atendimento multidisciplinar, defesa individual e
coletiva de direitos humanos interna e internacionalmente. Essas jovens
instituições do Sistema de Justiça são as mais democráticas, com ouvidorias
externas e forte participação popular em seus planejamentos de atuação.
O II mapa das
Defensorias Públicas Estaduais e Distrital no Brasil2 mostra que em 2019/2020
há presença das Defensorias Públicas em cerca de 42% do total de comarcas no
Brasil, ou seja, presença em menos da metade. Locais em que estão presentes
juízes e promotores, mas não defensores públicos. Segundo a pesquisa há 9.043
cargos existentes e 6.027 providos. Considerando população de baixa renda como
aquela que recebe até 3 salários-mínimos observa-se que praticamente todas as
unidades da federação apresentam déficit de defensores, considerada a proporção
de 1 para cada 10 mil ou 1 para cada 15 mil necessitados. A pesquisa nacional
da defensoria pública 2023 realizada pelo Condege - Conselho Nacional de
Defensoras e Defensores Públicos-Gerais3 corrobora o déficit encontrado, pois
revela que considerando o quantitativo de Defensores (as) Públicos (as), no
Brasil há um defensor(a) público(a) para cada 31.140 habitantes. Levando em
consideração exclusivamente a população economicamente vulnerável, no país há
um defensor(a) público(a) para cada 27.401 habitantes com renda de até três
salários-mínimos. Esses dados se revelam importantes na medida em que
demonstram, ao lado de outros dados de desigualdade social, no Brasil, que a
exclusão social também alcança o acesso à Justiça. É o contato permanente com
essa realidade que faz com que os (as) defensores(as) públicos levem e defendam
no Supremo Tribunal questões que afetam especificamente a população vulnerável.
No HC 208.240,
impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo, em que houve condenação de 7
anos, 11 meses e 8 dias, em regime fechado, por acusação de tráfico de drogas,
discute-se além do princípio da insignificância em razão da quantidade
irrisória de droga apreendida (1,53 gramas), a ilicitude e necessidade de
anulação da prova obtida por tratar-se de mais um caso em que ocorreu o que se
chama de “perfilamento racial”.4 Pesquisas comprovam que o racismo estrutural e
institucional leva a polícia brasileira a abordar, revistar e verificar, de
forma desproporcional, por vezes abusiva, pessoas pretas e pardas. Trata-se da
“pele alva” de um sistema de Justiça majoritariamente branco e masculino
selecionando a “pele alvo” de milhares de jovens negros. Encarceramento em
massa da juventude negra, uma das facetas perversas da “guerra às drogas”. Uma
das formas contemporâneas da escravização que segrega a população negra jovem
nos presídios brasileiros retirando-lhes qualquer perspectiva de futuro. No
caso concreto ambos os policiais, que resolveram abordar e realizar a revista
pessoal, ressaltaram, primeiramente, a cor negra do indivíduo, sem que nenhuma
outra característica pessoal fosse levada em consideração em seus depoimentos.
Não houve ainda o término do julgamento.
Outra discussão
importante no STF, se considerarmos o percentual de pessoas encarceradas em
razão da lei 11.343/06 (lei de drogas), em sua maioria pretas, pobres e de
baixa escolarização, é a que se trava no âmbito do RE 635659, apresentado
também pela Defensoria Pública de São Paulo, ao buscar que seja considerado
inconstitucional o art. 28 da lei 11.343/06 que se refere ao porte de drogas
para consumo próprio. Nesse caso concreto foi encontrado com um preso, no
estabelecimento prisional, 3 gramas de maconha. Os presos por tráfico
representariam cerca de 28% da população carcerária e muitos presos com
pequenas quantidades e classificados como traficantes e não usuários poderiam
ser beneficiados. Mais uma vez os beneficiados seriam as pessoas negras que
constituem a maior parte da população carcerária. Por ora há cinco votos pela
inconstitucionalidade da criminalização do porte de maconha para consumo
próprio e um voto que considera válida a previsão do art. 28 da lei de drogas
(lei 11.343/06).
Decisão histórica foi a
obtida pela Defensoria Pública do Espírito Santo no habeas corpus coletivo
143.988 em favor de adolescentes privados de liberdade em uma unidade
socioeducativa na cidade de Linhares/ES. A superlotação de presídios de adultos
já é algo corrente no Brasil e tido por “um estado de coisas inconstitucional”.
Não podemos compactuar com a mesma situação para pessoas ainda em
desenvolvimento e que por força da Constituição tem prioridade absoluta e proteção
integral. Na decisão se impediu que as unidades funcionem com mais de 100% de
lotação máxima, de modo que para entrar um adolescente no sistema outro
necessariamente tem que sair.
São alguns poucos
exemplos de atuação das Defensorias Públicas, diante de milhares, em prol de
pessoas à margem da sociedade, dos indesejáveis, dos subalternos, daquelas e
daqueles que desafiam diariamente os defensores públicos a repensar o Direito,
os códigos, as leis a partir das dores e sofrimentos dos que não costumam ter voz.
Tampouco há quem os queira ouvir e admitir sua existência. É um Direito à
serviço da existência e resistência de vidas que costuma ser descartadas pela
maioria da sociedade.
A invisibilidade das
populações subalternizadas por um sistema social e econômico que privilegia a
existência das camadas mais privilegiadas da sociedade se reflete nas decisões
tomadas pelo STF e no posicionamento de seus ministros. Caso paradigmático
neste sentido é o que envolve as multas decorrentes de condenações criminais. Desde
1996 houve alteração no art. 51 do CP para que o não pagamento de multa penal
não implicasse em prisão, tornando-a dívida de valor. Disputa de anos em torno
da configuração jurídica das multas penais em torno de sua natureza penal ou de
dívida de valor, da competência para sua cobrança e execução, se do ministério
público ou procuradoria da fazenda e do rito processual a ser seguido tomou
outros contornos a partir de casos criminais notórios de competência originária
do STF como o “mensalão”.
No julgamento da ADI
3150 que teve por foco o pedido de interpretação conforme à Constituição do
art. 51 do CP para reafirmar o caráter penal das multas e a competência do
ministério público para sua execução, observa-se que a decisão que se tomou ali
tinha como preocupação central a chamada “criminalidade econômica”, os “crimes
de colarinho branco”, além da pretensão de “arrumar” o sistema punitivo. Como
disse nos autos um dos ministros, “como tenho sustentado em diversas
manifestações, o sistema punitivo no Brasil encontra-se desarrumado. E cabe ao
Supremo Tribunal Federal, nos limites de sua competência, contribuir para sua
rearrumação. (...). Em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa há
de desempenhar papel proeminente. Mais até do que a pena de prisão – que, nas
condições atuais, é relativamente breve e não é capaz de promover a
ressocialização –, cabe à multa o papel retributivo e preventivo geral da pena,
desestimulando, no próprio infrator ou em infratores potenciais, a conduta
estigmatizada pela legislação penal. Por essa razão, sustentei no julgamento da
Ação Penal 470 que a multa deveria ser fixada com seriedade, em parâmetros
razoáveis, e que seu pagamento fosse efetivamente exigido”.
Ou seja, mirou-se uma
determinada classe social na decisão, não obstante, a eficácia erga omnes das
decisões em controle concentrado, mas os atingidos em cheio pela decisão foram
e estão sendo outros: os do “andar de baixo”. Aqueles que lotam os presídios
brasileiros, aqueles que devem multas altíssimas em face da lei de drogas de
2006, aqueles que devendo, muitas vezes, valores até bem baixos, mas que
passaram a ser executados pelo Ministério Público de forma massiva nas varas de
execução penal, com penhora indiscriminada de valores encontrados em conta
corrente, que por vezes são oriundos do trabalho informal, dos “bicos”, de
auxílios do governo Federal, com consequências que impossibilitam a
documentação dos egressos, pois tem havido implicações na obtenção do título de
eleitor e regularização na Justiça Eleitoral.
Enquanto sociedade
almejamos que os egressos do sistema penal saiam “ressocializados” e procurem
emprego e trabalho lícitos. Mas, ao mesmo tempo impedimos a regularização de
sua documentação pelo não pagamento de multa penal, sendo que já cumpriram a privação
de liberdade. É o que podemos chamar de “pena perpetua de fato”, já que a de
direito estaria vedada pela Constituição Federal de 1988. Há um percentual
substancial de egressos do sistema penal na população em situação de rua, da
qual foi subtraída todos os direitos de condições mínimas de sobrevivência.
Parece que a intenção é que assim continuem ao se colocar mais um obstáculo na
possibilidade, já remota, de conseguirem trabalho.
Começamos falando das
ruas e terminamos nelas. As ruas não costumam ser frequentadas pelas demais
instituições do sistema de Justiça. A inafastabilidade do controle
jurisdicional depende de provocação daquelas e daqueles que tem seus direitos
violados. As Defensorias Públicas têm buscado cumprir seu papel de levar e defender
esse Direito achado nas ruas no STF. Faz-se necessária a possibilidade de lá
estar, compondo a Corte, tornando visíveis os milhares de vulneráveis,
contribuindo para uma visão crítica e emancipatória do Direito e da Justiça.
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1 O “Direito Achado na
Rua” surge em Brasília a partir de projeto idealizado pelos professores Roberto
Lyra Filho, José Geraldo Sousa Junior e Alexandre Bernardino Costa na década de
80. Alia teoria, prática e militância no Direito na busca de emancipação
social. Dialoga diretamente com os problemas enfrentados pelos grupos em
situação de vulnerabilidade.
2 Disponível em ,
acesso em 24 ago. 2023.
3 Disponível em ,
acesso em 24 ago. 2023.
4 Ver a esse respeito
documento do Alto Comissariado das Nações Unidas da ONU: “Prevenindo e
combatendo o perfilamento racial de pessoas afrodescendentes: boas práticas e
desafios”. Disponível em , acesso em 25 ago. 2023.
Mônica de Melo
Mônica de Melo
Defensora Pública do
Estado de São Paulo. Professora Doutora de Direito Constitucional da PUC-SP
onde integra o Grupo de Pesquisa "Direito, Discriminação de Gênero e
Igualdade". Integrante da Coalizão Nacional de Mulheres, da ColetivA
Mulheres Defensoras Públicas do Brasil e do Estado de São Paulo, da Associação
de Mulheres de Carreira Jurídica de São Paulo e do Fórum Justiça.
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