Sociologia do novo constitucionalismo latino-americano: debates e desafios contemporâneos
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Sociologia do novo constitucionalismo latino-americano: debates e desafios contemporâneos / [Organizadores], Gustavo Menon, Maurício Palma, Douglas Zaidan. –São Paulo: Edições EACH, 2022.1 ebook ISBN 978-65-88503-38-6 (recurso eletrônico) DOI 10.11606/97865885033861 Acesso: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/939/851/3088.
Recebi de meu colega, amigo e co-autor em muitas incidências editoriais o PDF da obra objeto deste Lido para Você. Na nota noticiosa diz Gladstone Leonel da Silva Junior: “A destituição do presidente Castillo no Peru e a crise gerada nos permite refletir sobre uma Constituição peruana que inviabiliza um governo sem maioria no Congresso. Esta conjuntura e o debate recente ressalta a importância da obra que aqui apresento: “Sociologia do Novo Constitucionalismo Latino-americano”, organizada pelos professores @douglaszaidan , Gustavo Menon e Maurício Palma e publicada pelo Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina da USP. Tive a satisfação de escrever com o grande parceiro e professor @josegeraldosousajr , o artigo que abre essa obra e traz reflexões realizadas há alguns anos cujo título é: CONSTITUCIONALISMO ACHADO NA RUA A PARTIR DA AMÉRICA LATINA: ELEMENTOS INICIAIS. Existem vários outros artigos importantes e consistentes ao debate proposto. O acesso ao livro é integral e gratuito, disponível no link na Bio nos stories”.
Gladstone vai ao ponto em sua nota. Em toda a América Latina vivemos tempos interpelantes, tensos, no embate entre o horizonte histórico de descolonização e as recrudescências autoritárias do processo capitalista de acumulação, que em sua exacerbação neoliberal, fomenta a emergência de radicalismos políticos ao extremo da direita ideológica.
No Brasil, felizmente, e em método democrático movido pelo sufrágio, estamos agora na transição para o resgate da democracia e dos direitos humanos ao impulso utópico da emancipação. Na Argentina, que mais cedo encaminhou-se para esse movimento, há ainda sobressaltos e a vice-presidente Cristina Kirchner acaba de ser sentenciada com o acréscimo de “inabilitação perpétua” de seus direitos políticos, em outra extravagância do lawfare, que embora desmascarado em sua ocorrência no Brasil para impedir o Presidente Lula de participar de eleições, ainda produz consequências graves.
Gladstone anota o que se passa nesse instante no Peru. Ainda que a comunicação corporativa e muitos analistas, entre eles progressistas, convirjam para uma interpretação que desabona Castillo, caracterizando-o como protagonista de um auto-golpe, na América Latina há vozes que identificam mais um movimento da direita para arrancar da governança um dirigente de extração popular. A acadêmica peruana, quéchua, Shyrley Peña (aliás, minha orientanda no doutoramento em Direitos Humanos e Cidadania da UnB), considera ter havido uma ação destituinte contra a esquerda latinoamerica (https://youtu.be/nVmqTUDURFM). “Pedro Castillo foi vítima de um contra-golpe da extrema-direita, ela afirma em depoimento apara o canal Expresso 61.
Nesse mesmo diapasão a manifestação do presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador que vê na crise política do Peru “los intereses de las élites económicas y políticas” que, desde el inicio del Gobierno de Pedro Castillo, han mantenido “un ambiente de confrontación y hostilidad” en su contra” (https://elpais.com/mexico/2022-12-07/lopez-obrador-achaca-la-crisis-en-peru-a-los-intereses-de-las-elites-economicas-y-politicas.html).
Assim que, pondo sob suspeição uma difundida convergência de posicionamentos que se associaram para afastar o presidente, numa orquestração de hostilidades que nunca disfarçou a rejeição das elites de la Costa, contra a gente de la Selva y de la Sierra (campesinos e indígenas), já começam a crescer las protestas en Perú que piden disolver el Congreso y liberar a Pedro Castillo (https://actualidad.rt.com/actualidad/451329-crecen-protestas-peru-piden-disolver-congreso-liberar-castillo):
Los seguidores de Castillo demandan que lo liberen y lo restituyen en la Presidencia, que Dina Boluarte salga de la jefatura de Estado tras su designación como mandataria por el Parlamento, que el Congreso sea disuelto, que se convoque a una Asamblea Nacional Constituyente para reformar el país y se realicen elecciones generales.
Dadas as características da obra replico o texto da Apresentação assinada pelos Organizadores Gustavo Menon, Maurício Palma e Douglas Zaidan, que a explicam e sumariam o conteúdo de cada texto e respectiva autoria ou co-autoria:
A partir das décadas de 1980 e 1990, com os movimentos de redemocratização, o constitucionalismo latino-americano observou a promulgação de constituições em diferentes países em que novas demandas se expressaram para a afirmação do princípio da dignidade humana e a materialização de direitos fundamentais, afastando-se de experiências ditatoriais. Por outro lado, as formações do mais recente constitucionalismo latino-americano merecem uma análise sociologicamente distinta. Com efeito, elas parecem ser fruto de um processo de engajamento da
Sociedade civil e da articulação de diferentes classes sociais, havendo a proposição de novas categorias de direitos constitucionais e de tentativa de se romper com dinâmicas imperialistas. Ao lado disso, em determinados Estados da região, crescem forças conservadoras políticas e jurídicas de oposição aos novos horizontes oriundos de constituições e organizações de movimentos sociais. Nesse diapasão, influenciadas por categorias europeias, as constituições latino-americanas surgidas a partir dos anos 1980 podem ser compreendidas como expressões do processo de redemocratização, disputas e rearranjos entre as frações de classes dominantes e reproduziram, em grande medida, “compromissos institucionais e respostas jurídicas forjadas a partir de problemas formatados pelo discurso jurídico europeu, reeditando na América Latina uma ideologia constitucional que apresenta dificuldades quanto à realização de suas promessas. Exemplos são os constitucionalismos brasileiro de 1988, o guatemalteco de 1985 e o argentino, nos termos de sua reforma constitucional de 1994. Com a ascensão de governos de esquerda na América do Sul, diante do contexto da virada do milênio, novas cartas constitucionais foram promulgadas a partir de processos com notória participação popular. As atuais constituições da Venezuela(1999), Equador(2008), Bolívia(2009) e, mais recentemente, de Cuba(2019), buscam apresentar perspectivas inéditas para o constitucionalismo da região, objetivando romper com o legado e a herança do constitucionalismo europeu. Impulsionadas por demandas populares, as novas constituições e os debates constituintes levam em consideração elementos de multiculturalidade, plurinacionalidade e, ao mesmo tempo, tentam superar as dinâmicas entre países ricos e pobres (BARBOSA, Maria Lúcia; TEIXEIRA, João Paulo Allain. Neoconstitucionalismo e Novo Constitucionalismo Latino-Americano: dois olhares sobre igualdade, diferença e participação. Revista Direito e Práxis [online]. 2017, v. 8, n. 2 [acessado: 01 de fevereiro de 2022],pp. 1113-1142. Disponível em: <https://doi.org/10.12957/dep.2017.23083>.
No Chilee no Peru, respeitando-se as particularidades de cada país, amplos setores de esquerda defendem uma nova formação constitucional que consiga romper com as teses neoliberais, uma vez que as atuais constituições foram celebradas em um contexto de forte violência política e social e que, sobretudo, inviabilizam a formulação de políticas públicas mais amplas. A proposta constituinte chilena, a qual até mesmo reconheceria o Chile como nação plurinacional e assentaria direitos constitucionais de inéditas dimensões, em termos mundiais, foi rejeitada no referendo de 04 de setembro de 2022, sendo que as consequências de tal evento ainda devem ser debatidas. Pode-se aduzir que a experiência constitucional latino-americana mais recente, ainda, observa um cenário de cruzamento de crises, em que os efeitos da pandemia de COVID-19 acentuaram as contradições socioeconômicas dos países do sul global. Políticas de austeridade, violações de direitos humanos e a emergência de novos atores, redes e organizações, pautando os direitos civis, políticos e sociais, emergem como fenômenos transversais para se pensar os limites, dilemas e contradições que são apresentados no horizonte do novo constitucionalismo. Assim, Estados nacionais e instituições constitucionais lidam corriqueiramente com pressões oriundas de entidades empresariais, elites políticas locais, outros Estados, atores e redes transnacionais de movimentos sociais, cada qual com suas demandas, que podem incluir o desmoronamento dos edifícios constitucionais ou a ampliação da participação política e da democracia. Tendo esse complexo contexto como pano de fundo, este livro articula investigações sociológicas que tenham como ponto fulcral a análise da democracia e do constitucionalismo na região, a fim de realçar elementos de especificidades, contradições, divergências e convergências, bilaterais ou multilaterais, para se pensar as singulares experiências do constitucionalismo na América Latina. Passemos, assim, a explorar brevemente as treze contribuições desta obra, a fim de aguçar o interesse da leitora ou do leitor. Leonel da Silva Júnior e José Geraldo de Sousa Júnior iniciam o livro trazendo uma reflexão sobre o constitucionalismo latino-americano à luz da corrente do Direito Achado na Rua, um “Constitucionalismo Achado na Rua”, como propõem. Realizam tal tarefa por meio de uma ampla reconstrução teórica, sociológica e histórica, iniciando com uma revisão da própria noção de Direito Achado na Rua, esta entendida como espaço de criatividade democrática, jurídica e política. O Constitucionalismo Achado na Rua parte da tensão entre democracia e constituição e alça a pluralidade de sujeitos ao patamar de poder constituinte. O novo constitucionalismo latino-americano, enquanto popular, é colocado ao lado de experiências revolucionárias históricas, como a Constituição de 1976 que se seguiu à Revolução dos Cravos. Para os autores, deve a constituição prover sentido político ao direito, garantindo legitimidade a sujeitos subalternos inseridos na luta de classes, num processo de construção e modificação social do direito posto, o que poderia culminar, inclusive, em uma “constituinte achada na rua”. De qualquer maneira, o constitucionalismo latino-americano deve decolonizar-se, garantindo espaço constitucional a movimentos ligados a lutas políticas populares. Passam os autores, a partir do texto de Fajardo (2015), a analisar experiências do constitucionalismo latino-americano desde a década de 1980, concordando que o mais recente movimento na região formou atores constituintes concretos vindo debaixo, especialmente se analisadas as constituições equatoriana, boliviana e venezuelana. O caso brasileiro passa a ser enfocado. Neste, a constituição encontrar-se-ia aberta a certos sujeitos populares, devendo a luta social ser reconhecida, academicamente, como a constituir a soberania popular: “O constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho do retorno à sua função social em um primeiro momento, para quem sabe constituir força para extravasá-la”. Para os autores, após o “soluço” de 2016 a 2019, o Brasil deveria retomar os rumos do constitucionalismo achado na rua, e o constitucionalismo latino-americano estar “a serviço” da população subalterna. O segundo capítulo de Caneparo dos Anjos aborda graves violações de direitos humanos direcionadas às minorias. Segundo a autora, eventos do século XX propulsionaram a formação de um aparato internacional de proteção às minorias e incentivo à proteção da autodeterminação dos povos, discutindo o aparente conflito entre autodeterminação e o direito dos Estados, concebendo tal princípio como sendo dos povos, i.e., não estatal, exemplar na Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos. A autodeterminação é apresentada como substrato concretizador dos direitos humanos. O artigo, para tanto, expõe o surgimento do direito dos povos, trazendo à baila o Pluralismo de Rawls. A autodeterminação é apresentada como princípio jurídico de direito internacional Público desde quando agasalhado pela Liga das Nações, tendo sido realçado a partir da Carta da ONU e de importantes Resoluções de sua Assembleia. A autodeterminação dos povos, nessa esteira, é apresentada como parte da luta anticolonialista e até mesmo como parte do jus cogens. Trabalha a espinhosa noção de minoria, discutindo como o termo foi tratado por acadêmicos como Toscano e Wagley e Harris, bem como por diferentes tratados internacionais, incluindo o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, está sendo entendida como soft law.
Na sequência, Fernanda Ravazzano Lopes Baqueiro realiza um trabalho de sociologia constitucional ao abordar as mudanças político-sociais da América Latina e seus reflexos em reformas no campo do Direito Processual Penal, propondo “um direito “da” e “para” a América Latina”. Reflete, nesse diapasão, de maneira crítica, sobre categorias jurídicas importadas de países ricos e defende, com Choukr, uma “refundação” do sistema. Ao tratar sobre a investigação defensiva enquanto conexa às dinâmicas latino-americanas, a estratégia da autora mostra-se decolonial, pois, aborda particularidades regionais, como a exploração dos povos originários e de suas terras, a pobreza extrema, movimentos imperialistas e capitalistas, bem como movimentos de redemocratização e, por outro lado, vozes autoritárias. Apresenta, por fim, relações específicas entre a Corte Interamericana dos Direitos Humanos, a Constituição Federal brasileira e o Supremo Tribunal Federal acerca da figura da investigação defensiva, aduzindo não bastar mudanças legislativas desacompanhadas de mudanças de “mentalidade”, o que, no caso brasileiro, pode-se provar pela suspensão, pelo STF, da vigência de mecanismos normativos ligados a um sistema penal acusatório já existentes em lei regularmente aprovada e sancionada nas competentes searas do processo legislativo. Pinheiro, ao seu turno, no quarto capítulo, reflete amplamente sobre a formação do chavismo e do constitucionalismo venezuelano, focando seu texto na explicação da noção de democracia protagónica e fazendo considerações sobre tal experiência. Anota ser a promulgação da constituição venezuelana bolivariana um produto típico do chavismo, marcado pela ascensão popular contra políticas neoliberais. Observa que a América do Sul experimentou diferentes respostas a tais políticas, tendo Bolívia, Equador e Venezuela promulgado novas Constituições à época. Mais especificamente, a constituição venezuelana teria como linha a ideia da democracia participativa protagónica, a qual estaria entre os tipos democráticos representativo e participativo, com prevalência, para o autor, desse último tipo. Para tanto, expõe a forma do Estado comunal, apresentando inclusive uma ilustração para explanar a descentralidade da participação, no qual o Poder Público e o Poder Popular devem seguir o princípio da corresponsabilidade. Apresenta o processo e a constituição venezuelana como uma tentativa de transição ao socialismo. Na conclusão, o autor aponta déficits da democracia protagónica, como problemas jurídicos que impedem o desenvolvimento dos conselhos comunais, exemplificados em prevalências institucionais do Poder Público no financiamento dos conselhos comunais. Finaliza seu texto equiparando a experiência venezuelana com outros clássicos episódios históricos de modificação da soberania popular por classes populares, como a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Russa de 1917, vislumbrando-a, portanto, como um m arco no desenvolvimento constitucional mundial no que tange a participação popular. O texto de Ñunez Santamaria e Valle Franco narra trajetórias da relação entre Executivo e Corte Constitucional no Equador. Apontam que o Estado conta com vinte textos constitucionais em sua história, mas que nem todos previram o controle concentrado de constitucionalidade, sendo que apenas nos de 1998 e 2008 haveria a possibilidade de expulsão de normas do ordenamento jurídico por parte do Judiciário. A questão central do artigo diz respeito ao grau de impacto do aumento das faculdades do Judiciário por meio do instituto do controle concentrado para a democracia equatoriana, tendo, como pano de fundo, movimentações do Executivo. Para tanto, o trabalho realiza revisão da literatura sobre a tensão existente na relação entre democracia e constitucionalismo, trazendo abordagens clássicas como as de Kelsen e Ferrajoli, bem como a noção de “Abusive Judicial Review” de Landau. Tem-se que, abstratamente, o ativismo judiciário poderia ou não ser deletério à democracia, devendo-se observar casos concretos. Num segundo momento, os autores analisam o impacto ao legislativo do arcabouço normativo do controle de constitucionalidade, demonstrando como era delicada a questão do controle difuso no texto constitucional de 1998, e expondo as dinâmicas do sistema atual, um híbrido de controle difuso e concentrado, a partir de leis como a Orgánica de Garantías Jurisdiccionales y Control Constitucional, a qual parece guardar a prevalência do que foi legislado, atentando os autores para possíveis autoritarismos por parte dos juízes da Corte Constitucional do país advindos do desenho normativo. Ainda no Equador, Gustavo Menon trata dos direitos da natureza na atual Constituição de Montecristi, enfocando atores sociais conectados à causa e a importância na ressignificação da relação ser humano e natureza. Traça, para tanto, caminhos da academia, de movimentos sociais e a atuação do sistema ONU na elaboração de tratados internacionais sobre o tema. Em particular, aborda como foi versada a questão dos direitos da natureza na tradição liberal anglo-saxã, com referências a clássicos como Locke, Montesquieu e Tocqueville, Bentham e Thoreau. Menon, em contrapartida, aduz que o princípio do Buen Vivir, consagrado na constituição equatoriana, representaria a recuperação de uma cosmovisão ancestral, advinda do sul global, capaz de ressignificar a relação humana com a natureza, contra o eurocentrismo moderno e os legados do neoliberalismo na região. Os movimentos indígenas, com efeito, colocariam o ser humano como parte do ambiente natural, não sendo a natureza uma coisa externa; toda a natureza, portanto não reificada, seria vista como um ser vivo que se entrelaça com a socialização humana, voltando a ser compreendida como “mãe” da humanidade. “Plenitude” (sumak) e “viver” (kawsay), de origem indígena, representaria a relação harmoniosa a ser vivida. Especificamente sobre a Constituição equatoriana de 2008, sustenta ter sido plasmada com ampla participação de movimentos sociais, possuindo mecanismos constitucionais que representaram a cosmovisão indígena. O movimento constitucional equatoriano é apresentado como não eurocêntrico, uma vez que agasalha manifestações culturais indígenas, reconhece línguas indígenas como oficiais, confere participação popular e, nos termos dos artigos 71 a 74, há reconhecimento da natureza como sujeito de direitos. O autor coloca o debate sobre se, enquanto sujeito de direitos, haveria deveres para a natureza, mas entende que esta os cumpre, devendo haver curatela estatal para sua preservação, nos termos dos artigos 395 e 400 da Constituição. No desfecho do texto, Menon apresenta a grande contradição equatoriana, isto é, as tensões entre normas e fato: ainda que o Estado reconheça a natureza como sujeito de direitos e preveja mecanismos constitucionais e institucionais, há a dependência profunda do país dos recursos oriundos da exploração de petróleo, sendo que mecanismos legais, já em 2013, garantiam inclusive a exploração de petróleo em regiões de povos indígenas, como ocorreu no caso do Parque Yasuní. Os dilemas do Equador, em um cenário de dupla dependência (petróleo e dólar), assim, são apresentados diante de um flagrante descompasso entre o regime do buen viver e as políticas econômicas equatorianas, intimamente acopladas na lógica da exploração e exportação de produtos primários. A história do caso chileno é analisada por Paloma Pitre no sétimo capítulo. Para a autora há uma série de contradições em curso no processo da Convenção Constituinte. O estalido social de 2019 apontou uma série de críticas ao modelo pinochetista herdado da ditadura. No entanto, o rechaço da proposta do texto constitucional em 04 de setembro de 2022 demonstrou as fraquezas, dilemas e impasses do recente governo de Gabriel Boric. Em seguida, Carlos F. Domínguez Avila & Hugo Cárdenas Vera aprofundam a análise da experiência chilena sinalizando para as debilidades, ameaças e oportunidades desse processo insólito. Apontam para a correlação de forças e, ao mesmo tempo, concluem que a ideologia neoliberal ainda se faz fortemente presente nas relações sociais daquele país. Projeta-se um futuro em aberto nas grandes alamedas chilenas. Ainda na região andina, Henry Durante Machado aponta para os principais avanços da nova Constituição boliviana, positivada a partir de intensas lutas sociais dos povos indígenas daquele país. Sob uma perspectiva decolonial, o autor sinaliza para os desafios da construção de um Estado Plurinacional na Bolívia e do fomento da cosmovisão indígena do Suma Qamaña.
Em El Salvador, Douglas Zaidan e Maurício Palma apresentam as intervenções do governo Nayib Bukele na Suprema Corte salvadorenha. Neste sentido, o estudo aponta para medidas autoritárias e “populistas” do mandatário em meio a um cenário de desalinhamento dos poderes constituídos. Regatando a recente história política das últimas décadas, a investigação examina a crescente onda de debilidade institucional e, simultaneamente, o contexto de erosão democrática do país centro americano, sublinhando a presidência de Bukele e suas ofensivas diante do frágil e incipiente sistema de justiça salvadorenho. Moura de Oliveira, Wanderley Gomes e Duarte Lima de Barros apresentam o décimo primeiro capítulo visando comparar, institucionalmente, a figura constitucional do foro privilegiado, que traduzem como “jurisdictional privilege”, em 24 Estados latino-americanos, entre os quais Bolívia, Guatemala, Venezuela, Argentina, Chile, México, Perue Uruguai. A comparação tem como premissa considerações sobre o caso brasileiro: o texto parte, com efeito, das conclusões de Gomes Neto e Carvalho (2021), segundo as quais o instituto, no Brasil, serviria como escudo de punição para políticos importantes, amparando-se, ainda, no trabalho de O’Donnell (1996) no que tange o conceito de instituição e sua afirmação de que, na América Latina, as instituições informais devem ser também observadas. Trata-se de um interessante trabalho de sociologia constitucional, uma vez que revolve sob a questão dos fatores que exercem influência para a existência de referido instituto, utilizando-se, para tanto, de métodos quantitativos e qualitativos ao analisar os designs constitucionais da região. Os autores afirmam que a transição democrática criou na região instituições desconhecidas de outras realidades estatais – nesse diapasão, o texto aduz ser inadequada a compreensão de fenômenos do Sul global utilizando-se de ferramental teórico lastreado no Norte global. As realidades expostas acentuam a presença de um Judiciário forte na região, mais provavelmente em função das necessidades de legitimidade e transparência advindas de transições Num segundo momento, é explorada a ideia de que a transição incompleta à democracia afeta a “qualidade institucional” nos países latino-americanos, representada, mais especificamente, pelo mecanismo do foro privilegiado (“jurisdictional privilege”). Num terceiro passo, após tais descrições e explorações, são apresentadas as conclusões a partir do método de pesquisa. Mesclando-se os dados e a pesquisa qualitativa, tem-se que quanto mais caem os indicadores de qualidade institucional, mais aumenta o número de autoridades protegidas pelo foro privilegiado na região (uma correlação negativa, portanto).O capítulo de Isabel dos Anjos, a partir de leituras críticas, aponta para a formação histórica social e econômica do Brasil e da Colômbia. Para a autora, precisamos observar nosso passado colonial com intuito de perceber as relações de exploração que marcam os dias de hoje. Partindo de um estudo comparado, Isabel aponta em seu texto para ousadias e esperanças encabeçadas pelo movimento negro brasileiro e na atuação das mobilizações afro-colombianas. Destaca como as políticas de cotas e o engajamento desses setores são cruciais para democratização d o campo jurídico e, sobretudo, no avanço da cidadania na região. Por fim, o último capítulo do livro, de Guilherme Roman Borges, livre-docente em direito pela USP e professor de Direito na Universidade Católica de Brasília (UCB), sinaliza para a emergência dos estudos descoloniais diante da realidade brasileira. Resgatando a historicidade das ciências jurídicas, o autor aponta para a necessidade de olhar para as vozes subalternas na construção de normas e, sobretudo, para o aprofundamento da recente e tardia democracia brasileira. Assim, esse livro reúne pesquisas, discussões e formulações embrionárias iniciadas a partir da realização do 45º Encontro Anual da ANPOCS, realizado de 19 a 27 de outubro de 2021. Na oportunidade, tivemos o privilégio de debater as primeiras investigações no Simpósio de Pesquisas Pós-Graduadas de Sociologia do constitucionalismo latino-americano (SP40), coordenado Gustavo Menon (USP e UCB) e Carina Rodrigues (UFPE). Neste sentido, agradecemos à ANPOCS pelo apoio na realização de tal Simpósio. Ao mesmo tempo, essa obra converge com as produções da linha I do Programa de Pós-graduação em Integração da América Latinada Universidade de São Paulo (PROLAM-USP) e, de modo concomitante, com a produção acadêmica de excelência que está sendo realizada pelos docentes e discentes do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPG-DIR) da Universidade Católica de Brasília (UCB). Assim, agradecemos aos coordenadores destes programas, Prof. Dr. Júlio Cesar Suzuki (PROLAM-USP) e Prof. Dr.Maurício Dalri Timm do Valle (PPG-DIR/UCB) pelo apoio e condução de pesquisas interdisciplinares sobre nosso lugar no mundo: a América Latina. Além disso, estendemos os agradecimentos ao Editorial EACH/USP que, a partir da atuação de sua editora-chefe, Profa. Dra. Isabel Italiano, promoveu a publicação da presente obra. Registramos aqui, dessa forma, também, nossas saudações aos grupos de pesquisa envolvidos na produção e fomento desse e-book, tal como o DECLEN –Decolonizing and Comparing Legal Experiences Network (Rede de Descolonização e Comparação de Experiências Jurídicas)e o Grupo de Estudos de História, Direito, Democracia e Estado na América Latina (GEHDDEAL), ambos alocados no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UCB. Em síntese, estamos diante de uma contribuição formulada em rede e a partir da atuação de pesquisadoras e pesquisadores de diferentes partes do Brasil, contando também com docentes que atuam nos Estados Unidos, Equador e Chile. Observadas as investigações em conjunto e feitos os devidos agradecimentos, há que se referir que os capítulos, neste livro, perfazem reflexões sobre eventos muito recentes. Novos acontecimentos devem ampliar os limites, contradições e possibilidades nos artigos e os autores podem, futuramente, modificar suas próprias concepções ao refletir sobre os eventos aqui abordados. Justamente por tal motivo, a presente obra, que cobre fenômenos sociológicos distintos e complexos, pode ser encarada como marco para o desenvolvimento de novos estudos sobre o constitucionalismo latino-americano e como convite ao leitor para reflexões sobre nossa Pátria Grande. A transversalidade de questões ambientais, de direitos humanos, da qualidade e natureza da democracia na região, tal qual apresentadas nos textos, com efeito, abrem, de fato, dilemas a serem analisados por outros desenvolvimentos acadêmicos no que tange, fundamentalmente, a compreensão das correlações de forças políticas e econômicas e o papel das instituições e movimentos estatais e não estatais para a realização ordinária das constituições atuais e para o constitucionalismo do futuro. A presente obra, desse modo, deve ser encarada como um convite para que o constitucionalismo latino-americano possa ser encarado com a profundidade que sua complexidade exige – e longe de preconcepções rasas oriundas do norte global.
O livro traz todas as referência para qualificar os organizadores e as autoras e autores, numa síntese biobliográfica. Ao final há registros fotográficos dos organizadores-autores para completa identificação. E para os pesquisadores um índice remissivo, minimalista, com alguns dos termos que os organizadores consideraram atribuir relevância.
Fiquei muito contente de ter um texto meu em co-autoria com Gladstone Leonel da Silva Junior. Ele abre a edição afinado com o recorte sociológico que foi o seu fio condutor. Os Organizadores se empenharam na Apresentação em atribuir relevo ao nosso enfoque, reconhecendo a consistência que O Direito Achado na Rua já logrou estabelecer, a partir da fortuna crítica de suas contribuições para a teoria do direito em 30 anos de construção de formulação teórico-política.
Não é emulativa essa distinção. Agora ao final de 2022 a Revista de Direito do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UnB lançou edição especial inteiramente dedicada a O Direito Achado na Rua e sua Contribuição para a Teoria Crítica do Direito – (v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503). Sobre essa edição conferir em Jornal estado de Direito: http://estadodedireito.com.br/30425-2/.
Nesse e em outros trabalhos vai transparecer que muito da fortuna crítica dessa proposta teórica se concentra no cuidado de perceber os “achados” que têm permitido a atualização de suas linhas de pesquisa. O Constitucionalismo Achado na Rua pode ser considerado um desses achados.
Na edição comemorativa da Revista Insurgência 8 n. 2 (2022): Dossiê: “IPDMS, 10 anos de história e desafios”. Julho a dezembro de 2022. Organização do dossiê: Carla Benitez Martins, Diego Augusto Diehl, Luiz Otávio Ribas e Ricardo Prestes Pazello. DOI: https://doi.org/10.26512/revistainsurgncia.v8i2. Publicado: 31.07.2022 (http://estadodedireito.com.br/dossie-ipdms-10-anos-de-historia-e-desafios/) tive o ensejo, a propósito dessa designação, de alinhar os pontos que foram demarcando sua origem e desenvolvimento.
A partir da publicação, no Dossiê, do artigo de Leura Dalla Riva (p. 406-421), doutoranda em Diritto Comparato e Processi di Integrazione pela Università degli Studi della Campania Luigi Vanvitelli, Italia. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Direito Ambiental e Sustentabilidade pela Faculdade Educacional da Lapa (FAEL). Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Pesquisadora do CONSTINTER-FURB e da REDEMARX, que tem como título Bem viver e o “Constitucionalismo Achado na Rua”: um olhar a partir da teoria da ruptura metabólica, fui fazendo o alinhavo desse percurso, inteiramente aberto. Meus alunos de graduação na UnB, da disciplina Pesquisa Jurídica, neste semestre 2/2022, estão preparando para a wikipedia o verbete Constitucionalismo Achado na Rua (assim como seus colegas de semestres anteriores já editaram os verbetes Direito Achado na Rua, Roberto Aguiar e Sujeito Coletivo de Direito. Na mesma agenda programática os alunos de pós-graduação (Mestrado e Doutorado), da disciplina O Direito Achado na Rua, da Faculdade de Direito e do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, da UnB, estão preparando o volume 7 da Coleção Direito Vivo, da Editora Lumen Juris, cuja retranca é O Direito Achado na Rua (o vol. 2 da Coleção é O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática; o vol. 5 O Direito Achado na Rua: Emergências, Revisitações e Travessias; o 7, em edição O Direito Achado na Rua: Sujeitos Coletivos de Dirteito; o 7º O Direito Achado na Rua: Constitucionalismo Achado na Rua.
Voltando ao meu ensaio de recensão sobre o Dossiê do IPDMS, tomo o Resumo do artigo de Leura Dalla Riva. Assim, temos que a Autora parte de uma análise da crise ecológica hodierna como resultado da ruptura metabólica existente entre seres humanos e natureza e suas consequências, este artigo focaliza o desenvolvimento do novo constitucionalismo latino-americano como um movimento “achado na rua”. A pesquisa tem como problema de pesquisa: em que medida o novo constitucionalismo latino-americano abre caminhos para a superação da ruptura metabólica ao consagrar a ideia de Bem Viver? Para tanto, utiliza-se abordagem dedutiva. Primeiramente, aborda-se a categoria “ruptura metabólica” com especial foco na exploração da natureza na América Latina, o que envolve a abordagem de questões como capitalismo dependente no continente e o histórico extrativismo. Num segundo momento, analisa-se qual o papel das constituições da Bolívia e do Equador como construtoras de um constitucionalismo achado na rua e apresentam-se as origens, conceitos e aspectos principais da ideia de “Bem Viver” a partir dos povos latino-americanos. Por fim, aborda-se em que aspectos essas constituições apontam para a superação da ruptura metabólica em prol da ideia de Bem Viver.
Esse texto vem se agregar a um bem constituído modo de pensar o constitucionalismo, enquanto constitucionalismo achado na rua, tal como temos os pesquisadores do Grupo de Pesquisa com a mesma denominação – O Direito Achado na Ria (certificado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), tal como o mais atualizado, até aqui, percurso dos estudos com essa concepção, conforme descrito a seguir.
Desde logo, uma mais estendida e circunstanciada aproximação entre O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, foi apresentada pelo professor De la Torre Rangel, durante o Seminário Internacional O Direito como Liberdade 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, em sua contundente comunicação Constitucionalismo Achado na Rua en México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno (De la TORRE RANGEL, 2021).
As experiências registradas no México, tendo como base as lutas sociais por emancipação, têm o caráter de uma revisão crítica da historiografia do país, na percepção da insurgência e do processo instituinte de direitos, repondo o tema do constitucionalismo desde baixo, nas anotações de planos e acordos estabelecidos nos embates para estabelecer projetos de sociedade. Relevo para os acordos de San Andrés, pela conformação constitucional que os caracterizam.
Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo (YRIGOYEN, 2011), aferindo as experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.
Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo (YRIGOYEN, 2021), sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.
Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico, desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, (WOLKMER; WOLKMER, 2020), se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido:
Outro claro ejemplo de racionalidade jurídica diferente, resulta em palavras de Yrigoyen, la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente al robo y el abigeato se traduce finalmente, en prácticas sociales de auto administración de justicia” (SONZA, Bettina. 1993).
Tal como dissemos eu e meu colega Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019), mais que reconhecimento de direitos, tais ciclos tratam do grau de abertura à efetiva participação constituinte das distintas identidades, aliado à efetiva incorporação de seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais não apenas no ordenamento jurídico, mas no desempenho institucional dos poderes, entes e entidades públicas e sociais.
Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, com as novidades trazidas pela proposta de Constituição do Chile, aprofundam-se temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial, que para Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad Libre, 2022.
A novidade agora vem do Chile, e aponta para o que Wolkmer identifica como propostas de um constitucionalismo crítico na ótica do sul global referida a aportes do constitucionalismo transformador de que fala Boaventura de Sousa Santos, do constitucionalismo andino, pluralista, horizontal decolonial, comunitário da alteridade, ladino-amefricano e, ainda, do constitucionalismo achado na rua.
É a partir dessa perspectiva, algo que deixo como sugestão ao autor para suas pesquisas futuras considerando que o que vou dizer não se colocava quando o trabalho foi publicado. Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, aprofundar temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial.
Disso cuida Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad
Para Wolkmer, “la propuesta de un constitucionalismo crítico bajo la óptica del sur global puede ser contemplada en los aportes innovadores de la propuesta del consti tucionalismo transformador de Sousa Santos, B. de y de las variaciones presentes que tienen en cuenta las epistemologías del sur y, más directamente, del constitucionalismo andino, ya sea en la vertiente del constitucionalismo pluralista (Yrigoyen Fajardo, 2011; Wolkmer, 2013, p. 29; Brandão, 2015), del constitucionalismo horizontal descolonial (Médici, 2012), constitucionalismo comunitario de la alteridad (Radaelli, 2017), constitucionalismo crítico de la liberación (Fagundes, 2020), constitucionalismo ladino-amefricano (Pires, 2019) o aún del constitucionalismo hallado en la calle (Leonel Júnior, 2018)”.
Realmente Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado – Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, (SILVA JUNIOR, 2018).
Na segunda edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bolívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Editora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate “O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então, o Constitucionalismo Achado na Rua.
O livro, aliás, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa dimensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional na UFF. O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.ly/2NqaABn.
Resenhei esse percurso em http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.
Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone and GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.
Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.
Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisitações e travessias (SOUSA JUNIOR, 2021), um capítulo é dedicado ao tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os temas A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo, Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.
É sempre estimulante poder construir com os compromissos de engajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.
É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos níveis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, o texto de Antonio Carlos Bigonha (Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua:
A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica.
Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo achado na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carvalho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito” (Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras), também extraem consequências dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.
É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, realizado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma seção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos: Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descolonização desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, de Jesús Antonio de la Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucionalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques (SOUSA JUNIOR, 2021).
É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz de bate”.
Para o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (CANOTILHO, 2008a).
Ao final uma nota para novas aproximações a partir do diálogo que a instigante reflexão do professor Jesús Antonio de la Torre Rangel provoca, considerando que a sua obra atual, em ser uma continuidade adensadora de pressupostos epistemológicos para a crítica jurídica, é um completo catálogo de experiências confirmadoras do direito alternativo, do uso alternativo do Direito, do pluralismo jurídico e, ao fim e ao cabo, do direito insurgente, que surge do povo, pela emergência de sujeitos coletivos de direitos (SOUSA JUNIOR, 1990), que se inscrevem nos movimentos sociais, protagonistas de sua própria experiência de humanização e de emancipação, já que o humano é projeto, experiência na história (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019a): “El derecho insurgente, del que trata este libro, forma parte de um processo de liberación de la alienación u opresión; se opone a la legalidade de la injusticia. Em el texto hemos destacado, sobre todo, las luchas indígenas y campesinas, por la autonomia y la defensa del território, como uma práctica jurídico-política de pueblos índios y campesinos; práctica en que [se materializa] el derecho que nace del pueblo como derecho insurgente”.
Minha colaboração com Gladstone Silva Junior portanto, vem de antes e recorta algumas das direções que dão densidade ao conceito. O nosso capítulo em Sociologia do novo constitucionalismo latino-americano: debates e desafios contemporâneos, não é nem a última, nem a única palavra nesse tema.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua |
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