quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

 

Descolonizar: abrindo a história do presente. Boaventura de Sousa Santos

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Descolonizar: abrindo a história do presente. Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Boitempo, 2022, 128 p.

 

                                              

 

A obra ganha também um sentido de confirmação de um pensamento de interpelação, quando se anota a sua edição no mesmo ano em que o Autor recebe a distinção pela Caribean Philosophical Association, do Frantz Fanon Lifetime Achievement Award 2022, uma referência para justificar o seu fundamento: oferecer uma reflexão com o objetivo de “descolonizar o bicentenário”, especificamente do Brasil, mas validamente de outros países latino-americanos, o Peru em 2021.

Por essa razão o lançamento do livro, no Brasil, se fez num ambiente de debate, valendo anotar um dos mais importantes, que aconteceu na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, com a presença do Autor, em novembro, numa agenda qualificada entre Rio e São Paulo. No debate da FFLCH o Autor dialogou com o historiador Lourenço Cardoso e a escritora Helena Silvestre, com mediação da professora Paula Marcelino (DS-FFLCH).

Com Helena Silvestre uma continuidade de trocas e entendimentos fortalecidos pela participação no livro O Sistema e o Antissistema. Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2021. Essa obra reúne três ensaios sobre o tema, com distintas visões de seus autores Boaventura de Sousa Santos, Ailton Krenak e Helena Silvestre. No livro são reunidos textos escritos a partir de diferentes contextos sociais, políticos e culturais, por autores de diferentes gerações, com diferentes identidades e histórias de vida, mas irmanados na mesma luta por uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais respeitadora da diversidade e da diferença.

A propósito, a Editora preparou um debate em plataforma digital, que tive o prazer de mediar. Sobre o debate e o livro, cf. meu Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/).

No texto prefacial Descolonizar Boaventura faz uma abertura problematizante sobre um simbólico presente na história de Portugal e do Brasil, postulando uma irmandade. Ele alude ao retórico desse parentesco questionando na relação o vínculo entre “protagonistas de dois colonialismos”, cuja origem e destino demarcam condições com dramáticas implicações:

A história que nos prende é também a história que nos liberta. O passado só está fechado para quem se beneficia da injustiça ou considera que não há injustiça nas história, mas sim fatalidade e sorte. O passado é uma missão ou uma tarefa para os vencidos inconformados da história e para os descendentes dos vencedores dispostos a reparar as injustiças e as atrocidades em que a história se assenta e as quais oculta. O encontro destas duas vontades constitui o que designo por descolonização do bicentenário.

Abri também essa linha de problematização por ocasião de minha participação, como conferencista no encerramento da 9ª CONFERÊNCIA DO FÓRUM DE GESTÃO DO ENSINO SUPERIOR NOS PAÍSES E REGIÕES DE LÍNGUA PORTUGUESA – FORGES, realizada de 20 a 22 de Novembro – 2019, Brasília, Brasil, na Universidade de Brasília, tendo como tema central “A integração do ensino superior dos países lusófonos para a promoção do desenvolvimento humano”. O título do artigo publicado é o mesma da conferência proferida naquela ocasião: “Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória”, exatamente para ponderar o lugar de Portugal no experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial é também uma condição para que a libertação e a emancipação sejam possíveis (http://estadodedireito.com.br/revista-forges-comemorativo-do-10o-ano/).

Aliás, o fiz valendo-me de um querido amigo, destacado professor de Coimbra, mais precisamente, de sua Faculdade de Direito. Com efeito, presente em Coimbra, na Sala dos Capelos, da vetusta universidade, nos começos da década de 2000, para um Congresso Portugal-Brasil, guardo em mim até hoje o sentimento marcado pela disposição de todos ali presentes, de construir caminhos para a uma história comum: “a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos” (Boletim da Faculdade de Direito –  STVDIA IVRIDICA 48, Colloquia – 6, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999 / 2000).

Estas palavras, ditas pelo, aquela altura, Presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, logo a seguir, seu vice-Reitor, o Professor António José Avelãs Nunes, assinalaram as distinções entre o Portugal português e o Brasil brasileiro, no que tange aos seus caminhos, nas condições daquele congresso. Mas se prestam também, para designar as distinções entre o Portugal português e os países que formam a comunidade de povos de língua portuguesa, presentes nesta 9ª Conferência (Angola, Cabo Verde, Macau, Moçambique e certamente entre os participantes, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste) no que tange aos seus próprios e intercruzáveis caminhos, em que pese, lembra Eduardo Lourenço, “cada povo só o é por se conceber justamente como destino” (Portugal como Destino).

Temos sim, os povos que se expressam em língua portuguesa, essa história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias. Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossos destinos?

Valendo-me de Para Paulo Freire, tão marcante em nossa cultura comum, ao aplicar esses enunciados num outro evento (minha conferência inaugural no XXIII Congresso Internacional de Humanidades, realizado em Brasília, na Universidade de Brasília, em 05/01/2021, com o tema Poder, Conflito e Construção Cultural nos Espaços Latino-Americanos), exercitando uma abordagem que depois apliquei em texto Territórios de Conhecimentos e de Intersubjetividades: um lugar social para a Universidade (Brasília: Editora UnB: Revista Humanidades nº 65, dezembro 2021), sustentei, com ele, que a desumanização não é destino. É “a luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”.

Encontro total conforto no que afirma Boaventura de Sousa Santos em Descolonizar:

Descolonizar o bicentenário é partir de dois pressupostos. O primeiro é que o colonialismo não é uma condição do passado, é uma condição do presente. O colonialismo não terminou com a independência do Brasil; terminou apenas um tipo específico de colonialismo – o colonialismo histórico, de ocupação estrangeira. Com a independência, o colonialismo metamorfoseou-se e continuou sob outras formas, quer sob a forma do colonialismo interno, quer sob a forma de neocolonialismo por parte do ex-colonizador histórico. Ao nível mais profundo e resistente, o colonialismo é toda a degradação ontológica de um grupo humano por parte de outro: um dado grupo humano arriga-se o poder de impunemente considerar outro grupo humano como naturalmente inferior, quase sempre em função da pigmentação da pele (grupo racializado). Por isso a ferida colonial, longe de estar sarada, sangra e dói no quotidiano de muitos corpos e almas. O segundo pressuposto é que o colonialismo é uma cocriação de colonizadores e colonizados. Feito de conflitos e cumplicidades, de violências e convivências, de aprendizagens e desaprendizagens recíprocas, por mais desiguais que as relações tenham sido. E como os criadores são também criaturas, o colonialismo moldou tanto os colonizadores como os colonizados. Isso significa que não é possível descolonizar sem descolonizar simultaneamente o colonizador e o colonizado, duas descolonizações recíprocas que, no entanto, envolvem tarefas muito distintas, tanto no plano simbólico-cultural como no plano das sociabilidades das formas de ser e de saber e no plano da economia política.

 Por ocasião de sua recente visita ao Brasil, inclusive para lançar a obra, o Autor foi claro no esclarecimento desses pressupostos, conforme entrevista para UOL (https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2022/12/06/portugal-ainda-pensa-no-brasil-pra-tirar-vantagem-diz-sociologo-portugues.htm):

Ecoa: De onde vem a ideia de que Brasil e Portugal são países irmãos? Boaventura: Os colonos que se beneficiaram da colonização e aqueles que assumiram a independência para o seu próprio benefício foram irmãos numa empresa de exploração, de submissão, de eliminação dos povos indígenas, dos povos quilombolas, da injustiça toda que o colonialismo gerou. Brasil e Portugal são irmãos por uma causa que não é bonita, e deviam fazer um exame de consciência: que irmandade é esta? Foi essa irmandade que tornou as sociedades excludentes. Até os colonizadores poderiam ser melhores se não tivessem sido eles próprios dominados pelo colonialismo, que criou esta ideia de ver o outro apenas pela riqueza, não conhecer a diversidade, nem ter qualquer interesse cultural, de, sobretudo, estar sempre na busca daquilo que possa roubar, extrair dele.

 

Conforme a nota de edição, uma ação que o Autor tributa “à iniciativa e o incitamento de duas maravilhosas editoras, a Rejane Dias (Autêntica) e a Ivana Jinkings (Boitempo) que souberam transformar este pequeno livro num inovador projeto editorial colaborativo”, a obra tem o intuito de uma leitura reversa que não se esgarce, enquanto registro, no meramente celebratório de uma efeméride.

Com efeito, “no ano do bicentenário da Independência do Brasil, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos apresenta um conjunto de reflexões e tarefas para a “descolonização” real e material do Brasil. Descolonizar: abrindo a história do presente representa, para o escritor português, “um esforço no sentido de clarificar as convergências e divergências entre diferentes correntes que se reclamam de um pensamento pós-colonial”. “Um projeto tão urgente como infinito”, completa o autor no prefácio. Ao longo do século XX, os movimentos de libertação contra o colonialismo europeu e as lutas sociais contra o racismo conduziram à enorme expansão de estudos interdisciplinares pós-coloniais/descoloniais, que resultou em uma multiplicidade labiríntica de designações. Na primeira parte dessa obra Boaventura apresenta as diferenças teóricas entre essas denominações e segue com a apresentação de tarefas primordiais para o Brasil, assumidas por diferentes grupos sociais. Destaque para o fim da expropriação de terras indígenas, reforma agrária e trabalho com direitos, fim do sexismo enquanto degradação ontológica gêmea do racismo e mudança da condição de vítima dos grupos marginalizados à de resistente, e da condição de resistente à condição de protagonista da sua história. O segundo capítulo analisa as teses apresentadas para questionar a narrativa hegemônica e imaginar outros possíveis caminhos, enquanto a terceira parte – “A ferida, a luta e a cura” – aponta as dificuldades nas reparações e os danos quase permanentes da injustiça histórica e persistente de nossa era. No quarto capítulo, intitulado “Ao encontro de outros universos culturais”, o sociólogo identifica os caminhos reais e materiais para a libertação da opressão e dominação colonial e pós-colonial. Embora o passado seja o dos vencedores, existe um passado-presente, o daqueles para quem a luta continua e para os quais existem ainda muitas possibilidades de resistência”.

Como anotam Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, em seu monumental Brasil: uma Biografia (Companhia das Letras, 2015), lembrando que “história não é conta de somar”, a cultura como afinal, “o que faz brasil, Brasil ou do Brazil, Brasil”, isto é, como nos inventamos, para elas, “um processo em que o Brasil, desde que inventou para si um sentido próprio e autônomo como nação, no qual a história do país vem se afirmando, como uma longa narrativa de lutas, violência, reivindicação de autonomia e igualdade, busca por direitos e construção da cidadania”.

 Basta ver Querelas do Brasil, canção de Aldir Blanc e Maurício Tapajós:

 

 O Brazil não conhece o Brasil

O Brasil nunca foi ao Brazil

Tapir, jabuti, iliana, alamanda

Ali, alaúde

Piau, ururau, aqui, ataúde

Piá, carioca, porê, kamekrá

Jobim, akore, jobim açu, uô, uô, uô

Pererê, camará, tororó, olerê

Piriri, ratatá, karatê, olará

O Brazil não merece o Brasil

O Brazil tá matando o Brasil

Gereba, saci, kaandrades, cunhãs, ariranha, aranha

Sertões, guimarães, bachianas, águas

E marionaíma, arira, aribóia

Na aura das mãos de jobim açu, uô, uô

Cererê, sarará, sururu, olerê

Blablablá, bafafá, sururu, olará

Do Brasil S.O.S ao Brasil

Do Brasil S.O.S. ao Brasil

Tinhorão, urutu, sucuri

O Jobim, sabiá, bem-te-vi

Cabuçu, coitovia, caxambi, olerê

Madureira, olaria e bangu, olará

Cascacura, água santa, acari, olerê

Ipanema e nova iguaçu, olará

Do Brasil S.O.S. ao Brasil

Do Brasil S.O.S. ao Brasil

Voltemos, pois, aos temas por propostos entre outros, por Sergio Buarque, Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, Darcy Ribeiro, José Murilo de Carvalho (Os Bestializados: Há Povo no Brasil?), para aferir esses fatores que desafiam a restruturação da cultura democrática, localizando os obstáculos, no plano da cultura: colonialismo e autoritarismo e todos os seus paroxismos (coronelismo, clientelismo, prebendismo, cunhadismo, filhotismo, nepotismo, milicianismo); no pano paradigmático, o positivismo, como limite epistemológico e como ideologia, que no plano do jurídico (cultura legalista), inibe a internalização no direito nacional posto das conquistas internacionais dos direitos humanos (minimamente inscritos nos tratados e nas convenções), enquanto não se dissolvam as falsas noções que a ideologia traz para o ensino e para a aplicação do Direito e o fascismo (Barthes) imponha à língua, inviabilizando, produzindo ausências e contendo emergências (Boaventura de Sousa Santos), que propiciem o livrar-se do favor, até que a cidadania ativa instaure uma verdadeira cultura de direitos (Victor Nunes Leal, Marilena Chauí).

m efeito, abri minha exposição, confiro aqui as minhas notas, citando uma passagem de um livrinho de Marilena Chauí, editado pela Perseu Abramo, em 2000 –Brasil. Mito Fundador e Sociedade Autoritária. Nesse erudito estudo, preparado para marcar o simbólico dos 500 anos do descobrimento, a notável professora da USP, designa os muitos signos ideológicos, suas fontes, as metáforas e apropriações narrativas sobre “o processo histórico de invenção da nação que nos permite compreender um fenômeno significativo, no Brasil, qual seja, a passagem da ideia de ‘caráter nacional’ para a de ‘identidade nacional’, essa tentação totalizante, de designar algo pleno e completo, seja essa plenitude positiva (caso de Afonso Celso, Gilberto Freyre ou Cassiano Ricardo) ou negativa (Silvio Romero, Manoel Bonfim, Paulo Prado), para louvar ou para depreciar isso que seriam os traços coerentes, fechados e sem lacunas do que nos constitui como natureza humana ou cultura determinadas.

Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como ‘cultura senhorial’, a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relações entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividadse nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de ‘parentesco’, isto é, de cumplicidade ou de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assume a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação. Enfim, quando a desigualdade é muito marcada, a relação social assume a forma nua da opressão física ou psíquica. A divisão social das classes é naturalizada por um conjunto de práticas que ocultam a determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a sociedade sob o signo da nação uma e indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divisões reais que a constitui.

Só assim, numa cultura de direitos como correspondência a uma cultura democrática, é que se poderá entender o Direito como modelo de legítima organização social da liberdade, base e projeção paras os estudos e pesquisas que constituem a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua? Um processo que leve a perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho, que o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto de consagração do Direito) [ARAUJO, Doreodó (Org). Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986].

Boaventura de Sousa Santos já ensaiara essa percepção do corte abissal no pensamento ocidental, erigido num sistema de distinções visíveis e invisíveis, em que as invisíveis constituem o fundamento das visíveis, aludindo então à necessidade de descolonizar o Ocidente num movimento teórico-político para além dessa clivagem estabelecida por linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos, o universo deste ‘lado da linha’ e o universo do ‘outro lado da linha’ (cf. Para descolonizar Occidente. Más allá del pensamento abismal. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO; Prometeo Libros, 2010).

Nesse estudo antecedente, no qual aplica categorias analíticas presentes no contexto de sua – notadamente ausências e emergências – designadas pleo movimento contraditório do social, permite uma leitura mais otimista dos direitos humanos para, em perspectiva intercultural, operar versões culturais estreitas e amplas aptas a colmatar completudes e incompletudes, igualdades e diferenças que possibilitem o trânsito social sobre o abissal e a passagem da exclusão à emancipação.

Em Descolonizar, não é que desconsidere os direitos humanos como mediação, mas é forte o seu cuidado, pensando “as lutas contra a dominação”, para o necessário discernimento desenvolvido nas ações coletivas que transformam essas mediações em alternativas de justiça cognitiva para constituir oportunidades de emancipação que dêem conteúdo eficaz a mecanismos do estado de direito, da democracia e dos direitos humanos para que não se contrafaçam em artificialismos enganosos que esvaziem “alternativas positivas geradas por um pensamento alternativo de alternativas e todas as possibilidades epistemológicas, teóricas e metodológicas aptas a realizar a tarefa política de superar a dominação capitalista, colonialista e patriarcal”.

Por isso que vale ler com redobrada atenção o capítulo Teses sobre a descolonziação da história. Eu já o havia feito quando seu texto circulou em separata, em publicação colaborativa da CLACSO e do CES (De Sousa Santos, Boaventura. Tesís sobre la descolonización de la historia. 1ª ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; Coimbra: Centro de Estudos Sociais – CES, 2022). Integrado ao livro o texto ganha novo sentido porque a tarefa da descolonização da história, que deve ser levada a cabo pelos órfãos inconformistas das gerações inaugurais, tal como caracteriza, vai contribuir, entre outras potencialidades, a subtrair as concepções hegemônicas de direitos humanos muitas vezes implementadas como imposições imperiais, para serem usadas como ferramentas contra-hegemônicas de resistência à opressão.  

E é nesse processo, com temporalidades demarcadas pelas experiências de lutas por emancipação que se vai recortar a historicidade das emergências, na continuidade irrupitiva da experiência de humanização:

A história das emergências procede reconstruindo a totalidade dos corpos, as comunidades, os sustentos, as lutas, as resistências, os modos de saber e os modos de ser que a história dominante desfigurou, amputou, silenciou ou produziu como ausentes. Consiste em confrontar cada uma das monoculturas que presidem a desespecificação, para substitui-las por ecologias. As ecologias são os mecanismos de interação mutualmente enriquecedora e autotransformadora entre distintos componentes de realidades complexas, quer se tratem de realidades humanas ou não humanas.

            Um processo, afinal, diz Boaventura de Sousa Santos, cujo “objetivo é interromper a história dominante e irromper como formas de inovação cognitiva e criatividade” num movimento que, “juntas, mostram que não é possível escrever a história da libertação sem libertar a história”.

            Trata-se, ele propõe, de procurar tamponar o que se abriu como ferida colonial, que decorre de uma articulação específica entre capitalismo, colonialismo e patriarcadonuma extensão e intensidade que obriga equivalente intenso e extenso de luta por cura. Um quadro diz Boaventura, que “mostra a dimensão das tarefas necessárias para inverter o movimento conservador dos ciclos e, sobretudo para converter os ciclos em espirais em que vão se consolidando práticas de vida livre, justa, digna para grupos populacionais cada vez mais vastos”.

            O livro é arrematado com um capítulo ordenado entre impulsos contraditórios entre o apocalíptico e o profético gerando bifurcações para desfasamentos e conflitos tão potencialmente destrutivos quanto potencialmente enriquecedores num amálgama de encontros, desencontros e convergências. Num contexto de transformações recíprocas diz Boaventura:

Sem perder de vista a existência de opressores e oprimidos, perpetradores e vítimas, o gesto de identificar, confrontar e tentar sanar, na medida do possível, a ferida colonial em todo o seu enorme tamanho implica um certo tipo de movimentos recíprocos. Sem estes, perder-se-á a possibilidade da partilha e do encontro entre universos culturais transitando em direções opostas no mesmo espaço-tempo.

Volto a minha participação no XXIII Congresso Internacional de Humanidades (convênio entre o Instituto de Letras da UnB e  a Faculdade de História, Geografía e Letras da UMCE (Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación) do Chile .PODER, CONFLITO E CONSTRUÇÃO CULTURAL NOS ESPAÇOS LATINO-AMERICANOS e nele a minha conferência sobre Latinoamericanidade, Lugares Políticos, Reencontro de Humanidades, repondo neste Lido para Você sobre esse Descolonizar proposto por Boaventura de Sousa Santos, a mesma indagação.

Apesar das diferenças de percurso para nos constituirmos um espaço comum latinoamericano social e político, qual a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos ou que podemos ser e na medida em que nos possamos constituir também como povos que se podem conceber como um destino compartilhado?   

Temos sim, os povos que se expressam majoritariamente em línguas muito próximas, notadamente a espanhola e a portuguesa, e se somos cada um povo só o somos povos com vínculos comuns porque temos uma história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias.

Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossa origem e em nossos destinos?

Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.

Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando que para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, para as oligarquias que ela fomenta, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite, que constitui o que entre nós, nos seus estudos sobre o Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro denominou de engenho de moer gentes, na sua voragem de contínua concentração dos rendimentos, cada vez mais acentuada e desigual.

A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de processo econômico, maliciosamente chamado de desenvolvimento, mas que é um processo perverso ou maligno. Porque a exclusão social é a sua consequência mais dramática, que gera os segmentos descartáveis segundo uma lógica de indiferença, que o MST entre nós qualifica de Brasil rejeitado. Falando de exploradores e explorados, há que levar em conta que se os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes, descartáveis conforme os tem denominado o Papa Francisco, ao avaliar as dimensões catastróficas desse processo globalizado.

Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, se movidas pela consciência de que há culturalmente um direito à utopia mesmo que na forma de direito a sonhar.

A aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça ou instigações teológicas, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, enquanto se orienta para projeções que garantam o direito à vida plena, de homens e mulheres de carne e osso sim, porque ideologicamente o nosso percurso colonial separou seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social  os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.

Tem razão Boaventura em buscar abrir a história, sobretudo a história do presente, decolonizando-a, para tamponar a ferida colonial e lutar para a sua cura.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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