quarta-feira, 15 de setembro de 2021

 

Educação em Direitos Humanos para o enfrentamento da criminalização dos Movimentos Sociais do Campo

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

 

Euzamara de Carvalho. Educação em Direitos Humanos para o enfrentamento da criminalização dos Movimentos Sociais do Campo. Dissertação apresentada à Universidade Federal de Goiás, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos – PPGIDH, para obtenção de título de Mestra em Direitos Humanos. Goiânia, 2021, 141 p.

 

Há muitos anos venho acompanhando o percurso político e acadêmico de Euzamara de Carvalho, forte numa epistemologia crítica necessária à práxis (“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”), assim formulado por Marx em sua leitura crítica ao idealismo (Teses contra Feuerbach, 11ª tese).

Assim é que recentemente, pautei um programa de TV difundido como série pelo Blog Expresso61 (TV61), O Direito Achado na Rua, evidentemente uma projeção da linha de pesquisa e do projeto político-epistemológico que coordeno há 30 anos, com uma entrevista de Euzamara: https://www.youtube.com/watch?v=9bVNxq25QosNote-se que o programa foi publicado com o título “Direitos Humanos e a Luta pela Terra. Entrevista com Mara Carvalho”. Não foi ocasional. Já tinha iniciado a leitura de sua Dissertação e considerei pertinente articular o seu trabalho político junto aos movimentos sociais do campo, enquanto um processo que politiza o seu protagonismo, na reivindicação do cumprimento constitucional da promessa da reforma agrária e da função social da propriedade e rejeita a postura das oligarquias colonizadoras, agora em modelagem neoliberal, que querem preservar sua apropriação privada, criminalizando o protesto e a reivindicação de direitos.

Claro que esse percurso não se arreda do posicionamento de apoio político e jurídico para qualificar as posições interpretativas da Constituição e dos direitos, num engajamento orgânico de assessoramento técnico aos sujeitos coletivos inscritos nos movimentos. Euzamara define com precisão seu papel intelectual, tal como o explica em “A Assessoria Jurídica Popular e O Direito Achado na Rua e na Prática do MST”, importante contribuição que ofereceu ao Seminário Internacional 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua: O Direito como Liberdade (2019), e ao volume que dele resultou, editado agora em 2021, com os selos das Editoras da UnB e da OAB Nacional, em edições impressa e digital (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito achado na rua: Introdução crítica ao Direito como liberdade (https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/116).

Esse impulso teórico-político se exalta quando ela o empresta no desiderato da necessária capacitação e formação, em direito e em direitos humanos, contribuindo para abrir na agenda programática das entidades e organizações, a política de educação do campo, que ganhou densidade no Programa Nacional de Educação do Campo (PRONERA), com esse objetivo sobretudo no incentivo às licenciatura de educação do campo e a instalação em universidades públicas de turmas especiais de direito.

Sobre as turmas especiais ver também no Canal YouTube de O Direito Achado na Rua, “a roda de conversa” que ela coordenou com representações de nove turmas concluídas ou ainda em conclusão: https://www.youtube.com/watch?v=S_b-M7gcEM0.  (TV61 – O Direito Achado na Rua: Ocupando o Latifúndio do Saber Jurídico. Turmas Especiais de Direito).

É um alento constatar a força utópica de uma mobilização que mentem programas sociais devolvendo à sociedade civil sua capacidade instituinte a ponto de investir no sistema universitário público a consciência que Darcy Ribeiro designava para a caracterizar, como Universidade Necessária que combina a lealdade com o saber civilizatoriamente acumulado e a lealdade com o povo em compromisso de busca de soluções para seus problemas (Univesidade Para Quê?. Brasília: Editora UnB, 1986).

Nesse processo Euzamara se mostrou simultaneamente protagonista e intérprete. Fez o percurso como aluna da graduação à pós-graduação, profissionalizando-se e qualificando-se para a sua autoreflexividade ativa, como o demonstra esta Dissertação.

Nela, vislumbra-se o projeta pensado e realizado.  Com efeito, Contra os cursos já então em andamento no campus de Goiás Velho e que contava com o apoio do MEC atuando com fundamento no caráter de discriminação positiva da medida, o Ministério Público havia oposto uma leitura guetificadora (alguém até já usou o neologismo guantanamização, referindo-se ao isolamento afinal rejeitado pela Suprema Corte americana relativamente aos prisioneiros americanos do pós 11 de setembro) e absolutamente redutora do sentido transformador da educação. Nos termos insólitos da argumentação do MP: “Sabido é que o habitat do profissional do Direito, em qualquer de suas vertentes, é o meio urbano, pois é nesta localidade em que se encontram os demais operadores da ciência jurídica. Ainda que venha ele a patrocinar pretensão titularizada por cidadão que habite a mais distante área rural, endereçará a sua demanda a órgão do Poder Judiciário, não encontradiço em paragens rurícolas”.

Euzamara marchou em linha oposta. Trouxe pela mediação do processo democrático, a moldura dos direitos humanos, para defender, conforme ela registrou, A Luta pela Terra, Água, Florestas e o Direito. Esse é o título de obra em que é co-organizadora e co-autora. Traz em sua argumentação, o adensamento do projeto de educação do campo, pelo método de institucionalização das turmas especiais, mostrando o quanto se vai ganhando, no campo da educação para os direitos e os direitos humanos, uma densidade que se enriquece com contribuições marcantes que são um dos resultados imediatos dessa importante política. Uma parte desses resultados já está documentada e forma um repositório muito qualificado, pelas monografias e artigos dos estudantes participantes, bastando lembrar, para esse registro, o livro A Luta pela Terra, Água, Florestas e o Direito, organizado pelos professores e professoras Euzamara de Carvalho, Luiz Otávio Ribas e Carla Benitez. Goiânia: Kelps, 2017, 220 p. A obra integra o Programa de Formação Permanente do IPDMS (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais), articulação fundada em 2012 pela Turma de Direito Evandro Lins e Silva, da UFG (Programa Pronera) e nessa edição reúne a participação de quatorze estudantes de diferentes procedências que prepararam trabalhos para o I Encontro das Turmas da Via Campesina e Movimento Sindical, marcando 10 anos da experiência das turmas especiais. Os textos do livro de distribuem nos seguintes temas: educação jurídica, questão agrária, povos e comunidades tradicionais, conflitos socioambientais, teorias críticas, criminologia crítica e sistema de justiça.

A propósito, em Salvador, em 2017, no Seminário de conclusão do Curso da Turma Elizabeth Teixeira, assisti e comentei o painel apresentado por Edlange de Jesus Andrade a partir de seu artigo publicado no livro, pp. 51-82 (retirado de sua monografia): Direito Achado na Rua e Educação do Campo – as Escolas Famílias Agrícolas.

O fato é que, embora, sob consideração teórica, se reconheça como legítimas as formas de ação coletiva de natureza contestadora, solidária e propositiva dos movimentos sociais, a dialeticidade de suas múltiplas práticas sociais, não necessariamente é vista, no plano da política, como compromisso com a coletividade para a construção de esfera pública democrática em cujo âmbito se definem projetos emancipatórios, sensíveis à diversidade cultural e à justiça social. Ao contrário, a expressão conflitiva dessa dialeticidade tem levado, muito em geral, a uma reação despolitizada, da qual não são imunes o Ministério Público e o Judiciário, abrindo-se à tentação de responder de forma pouco solidária e até criminalizadora a essas práticas.

E, enquanto se funcionaliza uma ação, com algum grau de concertação na linha de respostas criminalizadoras, o mesmo não se vê quando se trata de verificar a legalidade e a constitucionalidade dos pleitos possessórios que requeiram a concessão de medidas protetivas em imóveis que descumprem a função social, ou ainda, quando se trata de assistir despejos de famílias sem-terra, para fiscalizar a ação policial, prevenir abusos, fazer cumprir a legislação de proteção a crianças, adolescentes e idosos ou, finalmente, para impedir que qualquer desocupação seja realizada sem a designação de lugar adequado para a remoção dos atingidos.

Trata-se, conforme já sustentei – http://estadodedireito.com.br/o-direito-e-a-educacao-do-campo/ –  ao fim e ao cabo, para além das tensões aqui designadas, de constatar a existência persistente ainda em nosso Pais de uma disputa que envolve, de um lado, a secular manutenção da concentração da terra frente à necessária democratização do acesso à essa terra e ao território; e de outro, a formulação de projetos políticos antagônicos para o campo brasileiro, desafiando a elaboração de agendas para a adoção de estratégias econômicas, sociais, políticas e jurídicas que conforma esse tema.

Tal é o alcance desta dissertação, tão bem orientada pela Professora Algelita Pereira de Lima. Tomo, o seu resumo: “O tema desenvolvido nesta pesquisa é a educação em Direitos Humanos sob a perspectiva dos cursos de formação dos movimentos de luta pela terra. Um dos pressupostos que deram origem a esta dissertação é o de que as práticas de educação não-formal, desenvolvidas pelos coletivos de direitos humanos da Via Campesina Brasil, são práticas de Educação em Direitos Humanos. Ao explorá-las, a partir da análise de um curso especificamente, pode-se afirmar que as respectivas práticas dialogam com os eixos 3 e 4 do PNEDH: Educação Não-formal e Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça. No percurso da pesquisa foram analisadas as práticas metodológicas e teóricas de Educação para os Direitos Humanos presentes na experiência do Curso de Teoria e Prática no Processo Penal, realizado na Escola Nacional Florestan Fernandes – ENFF, no período de 17 a 21 de outubro de 2016. O trabalho se situa no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos (PPGIDH), vinculado ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos (NDH) da Universidade Federal de Goiás (UFG), abarcado na Linha de Pesquisa 3 – Alteridade, Estigma e Educação em Direitos Humanos. O eixo central da análise está voltado à educação não-formal promovida por movimentos sociais do campo. Leva-se em consideração a dialética entre a denúncia dessas violações e a demanda por acesso ao saber jurídico, com o intuito de fomentar ações de enfrentamento à criminalização dos movimentos sociais do campo. A conclusão é de que a educação para os direitos humanos no âmbito dos movimentos da Via Campesina Brasil possibilita o fortalecimento da resistência das populações da terra e do território diante de uma conjuntura perpassada por diversas formas de violência. Sendo assim, os movimentos sociais do campo reivindicam e constituem novas formulações sobre os direitos humanos, englobando processos de educação em direitos humanos”.

O trabalho segue um sumário analítico bem compreensivo:

“1 INTRODUÇÃO

2 DIREITOS HUMANOS E OS MOVIMENTOS SOCIAIS DE LUTA PELA TERRA NO BRASIL

2.1 PRÁXIS E DIREITOS HUMANOS

2.2 COLETIVOS DE DIREITOS HUMANOS E ASSESSORIA JURÍDICA     

2.3 EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS NOS MOVIMENTOS SOCIAIS

3 O CURSO “TEORIA E PRÁTICA NO PROCESSO PENAL”  

3.1 DESENHO E FORMATO DO CURSO – OLHAR DA AÇÃO

3.2 DINÂMICA E MATERIALIZAÇÃO DO CURSO     

3.3 ENFF: ESPAÇO QUE DIALETIZA A AÇÃO DE FORMAÇÃO

4 ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL: PONTOS CONVERGENTES PARA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS      

4.1 ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL PARCEIRAS NA PROPOSTA FORMATIVA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS  

4.1.1 Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)         

4.1.2 Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP)

4.1.3 Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS)       

4.1.4 Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)  

4.2 EXPERIÊNCIAS DE LUTA E DE FORMAÇÃO NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS      

4.3 PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO NÃO FORMAL E SUA MATERIALIDADE        

5 CONCLUSÃO      

REFERÊNCIAS”.    

Para efeito desta Coluna Lido para Você, valho-me dos próprios enunciados da Autora para expor o conteúdo da Dissertação. Diz ela: “No primeiro capítulo, apresento o tema dos direitos humanos a partir de uma perspectiva crítica, que busca situar o lugar dos direitos humanos relacionado à luta concreta dos povos de luta pela terra. Também procuro demonstrar como essas ações têm potencial para contribuir aos projetos formativos de educação em direitos humanos, por meio da atuação dos coletivos de direitos humanos no trabalho de assessoria jurídica a respeito de conflitos e iniciativas de formação (Coletivo de Direitos Humanos do MST e Encontro dos advogados da Via Campesina ). Por fim, apresento algumas perspectivas de educação em direitos humanos formuladas por movimentos sociais do campo, como ações que integram um projeto mais amplo de formação contra-hegemônica que contribui para a luta dos movimentos organizados.

No segundo capítulo, discorro sobre o caminho trilhado para a formulação do curso em análise e a conformação de parcerias para viabilizar sua realização. Também abordo o contexto de violações de direitos humanos agravadas pelo poder judiciário nos conflitos no campo, que provocam assassinatos, ameaças e criminalização de militantes e dos movimentos sociais do campo. Como afirma Ruiz (2012, p. 75) – Autor que adota para fundamentar seu ponto de vista:

‘Os regimes autoritários investiram em narrativas legitimadoras do estado de exceção e da violência cometida. Essas narrativas estão respaldadas por suas respectivas políticas de verdade. Nelas, as vítimas da violência são objetivadas como terroristas, subversivos, criminosos, bandidos, indivíduos perigosos que ameaçavam a sociedade e cuja eliminação se tornou um bem público. Elas são um perigo para a sociedade, e sua perseguição é uma forma de garantir a defesa da sociedade. Suas vidas perigosas ameaçam as vidas das pessoas normais, dos cidadãos de bem. Isso legitima sua morte, desaparecimento e tortura no marco da estratégia biopolítica que controla e aniquila as vidas perigosas para preservar a ordem’.

Em diálogo com o autor, cabe pontuar o exemplo de atos institucionais do Sistema de Justiça que contribuem ao aumento de conflitos e assassinatos no campo, por motivo de despejos forçados de ocupações de terras improdutivas e/ou de luta pela permanência histórica em determinados territórios.

Além disso, problematizo as formas de construção e de ação de formação em direitos humanos. Elas perpassam a realidade concreta dos sujeitos do campo no enfrentamento aos instrumentos jurídicos do sistema criminal brasileiro, que historicamente atua contra os processos organizativos legítimos de luta das populações do campo. A definição operacional que apresento no trabalho acerca do conceito de “conflito” está em acordo com o relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT):

‘Conflitos são as ações de resistência e enfrentamento que acontecem em diferentes contextos sociais no âmbito rural, envolvendo a luta pela terra, água, direitos e pelos meios de trabalho ou produção. Estes conflitos acontecem entre classes sociais, entre os trabalhadores ou por causa da ausência ou má gestão de políticas públicas. (CANUTO et al., 2015, p. 13)’.

Essa delimitação do conceito é importante para a compreensão dos contextos nos quais os atos de violência contra militantes e movimentos populares de luta por reforma agrária ocorrem, bem como para verificar sua relação com o sistema de justiça criminal. Nesse sentido, levo em conta as dinâmicas e a participação do Poder Judiciário, por meio do processo penal, para criminalização dos movimentos sociais, e o consequente o aumento da violência no campo (onde ainda costuma prevalecer um ocultamento dos assassinatos cometidos contra sujeitos que lutam pela reforma agrária).

Na sequência, trato dos esforços conjuntos e a construção de parcerias que deram forma à proposta do curso, bem como do perfil dos participantes, do perfil dos professores/as, das condições materiais para participação do público e dos processos organizativos para o seu desenvolvimento. Também apresento a ação pedagógica do curso, que está alinhada à metodologia da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), que, pela primeira vez recebe este tipo de curso. É válido destacar que os dados revelam uma ausência de elementos importantes na organização do curso, como a garantia de equidade de gênero, a questão racial e as desigualdades regionais.

No terceiro capítulo, discorro sobre a atuação de algumas organizações da sociedade civil que atuam em prol do acesso à justiça e dos direitos humanos. Como veremos, essa atuação se relaciona com o curso analisado e com o conjunto da proposta formativa continuada, realizada em parceria com o coletivo de direitos humanos da Via Campesina Brasil. Nesse sentido, destacam-se o IBCCRIM (parceiro central para realização do Curso “Teoria e Prática no Processo Penal”), a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), o Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Estas organizações desempenham um papel elementar à proposta de educação em direitos humanos realizada pelos movimentos sociais.

Também apresento algumas experiências e ações de formação que se realizam no campo dos direitos humanos, a partir da atuação da sociedade civil popular organizada. Discuto como essas experiências com foco na formação se relacionam com a perspectiva de enfrentamento à criminalização dos movimentos sociais e com o combate às violações dos direitos humanos, a partir da instauração de novas práticas metodológicas de formação e de ações de proteção direta de militantes ameaçados.

Realizo, ainda, uma aproximação entre o curso em análise e os princípios orientadores da educação não formal em direitos humanos previstos no PNEDH. Destaco seu potencial para ser explorado pelos movimentos sociais do campo, para a proposição de processos formativos. Nesse sentido, destaca-se o chamado “humanismo”, evocado por Paulo Freire (2005) como sendo necessário à efetividade das práticas educativas. Por fim, elenco algumas sínteses provenientes do próprio desenvolvimento e aprimoramento do trabalho”.

O arranjo analítico desenvolvido pela Autora, conforta os termos de suas conclusões.

Considera a Autora que o projeto de resistência e de luta pelo território construído cotidianamente pelos movimentos sociais do campo tem como marco importante de suas trajetórias priorizar a questão da formação-educação para contribuir com a elevação do nível de consciência crítica dos sujeitos coletivos que integram os movimentos sociais.

Analisar as dinâmicas de formação para os direitos humanos com a participação dos respectivos sujeitos coletivos possibilita relacionar a ação da luta organizada pelos movimentos que integram a Via Campesina Brasil e as resistências, por meio do acesso ao conhecimento político-jurídico. Isso evidencia a dialética presente na ação de formação. Logo, o direito que é negado no cotidiano é reinventado na práxis da ação-educação, voltada a uma cultura dos direitos humanos.

A análise de Curso Teoria e Prática no Processo Penal permite qualificá-lo como uma ação não formal de educação em direitos humanos. Retomo aqui a perspectiva teórica de Freire (2005) articulada ao longo do estudo para situar a educação como um caminho para prática da liberdade. Logo, os movimentos sociais do campo (organizados pela Via Campesina Brasil) reivindicam e constituem novos direitos humanos, tendo em vista situações de conflito, violência e criminalização. Essa reivindicação ocorre através de ações de educação em direitos humanos.

Em um esforço relacional com o recorte teórico que sustenta a análise e o percurso empírico de atuação junto aos movimentos protagonistas da ação, a conclusão central do trabalho é que os movimentos sociais do campo realizam ações de educação não formal em direitos humanos – embasadas em documentos institucionais (nacionais e internacionais) de direitos humanos, com destaque para o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH).

Nesse sentido, também posso afirmar que a implementação do PNEDH é um processo contínuo, que precisa ser ampliado para que haja um aprimoramento junto aos movimentos sociais. Isso permitiria materializar ações de educação em direitos humanos, a partir de uma perspectiva engajada com as necessidades e as lutas dos movimentos sociais – sendo estes também realizadores de educação em direitos humanos. Por isso, o sentido de ressignificá-los neste trabalho, no esforço de demonstrar as ações realizadas pelos movimentos sociais do campo e situar Curso Teoria e Prática no Processo Penal como ação não formal que se insere em um projeto (nacional e internacional) de educação para os direitos humanos.

O esforço de sistematização da experiência de educação em direitos humanos elaborada e realizada pelos movimentos sociais possibilitou, ainda, a reflexão sobre o acesso à justiça (exemplificado com base nas lutas contra a criminalização e a violência no campo). Como vimos, isso é fundamental para o enfrentamento à impunidade e à dificuldade de acesso à justiça pelas populações que sofrem diversas violações no cotidiano.

O conjunto de reinvenção de práticas existentes nestas experiências possibilita instaurar um marco da educação em direitos humanos e, consequentemente, da formação para defensoras/as de direitos – militantes e advogadas/os populares alinhados às concepções de direitos humanos integrados às suas lutas sociais. Isso implica maior atenção da legitimação das lutas travadas pelos movimentos sociais na formulação e conquista de novos direitos, contribuindo com os princípios democráticos que orientam o Estado Democrático de Direito. Colocando o “Direito, não como ordem estagnada, mas positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social em movimento, onde o Direito, reino da libertação, tenha como limites, apenas a própria liberdade” (SOUSA, 2015, p. 30).

Claro que essas conclusões, bastante eloquentes se mostram aptas a orientar a continuidade de programas de formação e de capacitação. Penso que elas estão bem apoiadas no excelente repertório teórico e político acumulado e exercitado pela Autora. A boa documentação se faz útil para novas aplicações em programas acadêmicos e profissionalizantes.

Entretanto, considero, não obstante, que a Autora poderia galgar novos patamares se articulasse seu esforço analítico-interpretativo-programático, quanto mais aproxime seu estudo do formidável empreendimento corrente, no âmbito universitário – conforme ela própria designa anotando que a sua pesquisa responde aos indicadores epistemológicos da Linha de Pesquisa de sua universidade: “Alteridade, Estigma e Educação em Direitos Humanos”.

É desse empreendimento que deriva, mais que de Planos e Programas de Direitos Humanos e de Educação em e para os Direitos Humanos, ou das institucionalidades intercorrentes tais que o Ministério dos Direitos Humanos ou o Comitê Nacional de Educação para os Direitos Humanos, e as conjunturas mais ou menos favoráveis a seus pressupostos principiológicos e éticos (nesse momento sob forte hostilidade que os esvazia e destitui) de onde ela extrai seus referencias de validação analítica.

Insere-se nesse formidável empreendimento, a nova mobilização derivada da sociedade de civil para preservar o acumulado inclusive teórico desse campo, que já legou a forte onda anterior a 2016, de criação de programas interdisciplinares de direitos humanos nas universidades, a aprovação no Conselho Nacional de Educação, de Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (Resolução nº 1, de 30 de maio de 2012), que não se realizem apenas enquanto modelagem curricular, mas que, tal como estabelece o seu artigo segundo, compreenda  a Educação em Direitos Humanos, como “um dos eixos fundamentais do direito à educação, [que] refere-se ao uso de concepções e práticas educativas fundadas nos Direitos Humanos e em seus processos de promoção, proteção, defesa e aplicação na vida cotidiana e cidadã de sujeitos de direitos e de responsabilidades individuais e coletivas”.

Insere-se também nesse esforço, a mobilização para inscrever a dialogicidade da educação em direitos humanos nas redes de cidadania que precedem e sucedem episódios de governo, assim, atualmente, a mobilização para ativar a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, como articulação de sociedade civil, rede de redes. Veja-se aqui nesse espaço da TV Expresso 61, o Programa da Rede de Educação em Direitos Humanos, como instrumento dessa dialogicidade, constituindo já uma robusta playlist de entrevistas para configurar a história, os protagonismos, as concepções, os achados formando um forte repositório (https://www.youtube.com/watch?v=zcrN-8gG4uw&list=PLuEz7Ct3A0Uivm8GK61hNjgyync9j71xV, entrevistas conduzidas pela Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa:  TV61. Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos. Ver playlist completa).

Visitando esse acervo, é possível constatar, o que pode ser útil à continuidade dos estudos da Autora da Dissertação, o quanto a área se adensou enquanto campo de conhecimento. Em Contribuições da Teoria Crítica dos Direitos Humanos para a Educação em Direitos Humanos, de Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Sinara Pollom Zardo, em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: Inrodução Crítica ao Direito como Liberdade. Vol. 10. Brasília: Editora da UnB/Editora da OAB Nacional, 2021); e, especialmente em SOUSA, Nair Heloisa Bicalho. Retrospectiva Histórica e Concepções da Educação em para os Direitos Humanos. In PULINO, Lúcia Helena Cavasin Zabotto et al (orgs). Educação em e para os Direitos Humanos. Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos, volume II. Brasília: Paralelo 15, 2016, um balanço crítico do campo epistemológico pode ser consultado com proveito e aplicado com pertinência, seja sob a perspectiva histórica propriamente dita; seja para melhor apreender a construção de saberes, práticas pedagógicas  e metodologias participativas de educação em direitos humanos, enquanto modo de conhecer a realidade: “o conhecimento enquanto construção de saberes adota uma diversidade e pluralidade capazes de dar voz aos excluídos e oprimidos, assim como permite a configuração de estratégias de ensino-aprendizagem, que se traduzem em pedagogias críticas e emancipadoras por meio de metodologias ativas e participativas” p. 73-124.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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