A urgência e a poética do abraço*
por Boaventura de Sousa
Santos
Publicado 21/09/2021 às
19:47 - Atualizado 21/09/2021 às 20:13
No
passado dia 28 de Agosto de 2021 às 16h30 dei o primeiro abraço a alguém fora
do círculo das poucas pessoas íntimas que convivem comigo diariamente,
quinhentos e vinte cinco dias depois de me ter isolado na minha aldeia a 30km
de Coimbra devido à pandemia. O que senti não tem descrição possível. Foi um
ato incondicional, uma presença demasiado forte para poder ser objeto de
planejamento ou representação. Sentir as minhas mãos deslizar e apertar outro
corpo contra o meu, era algo tão familiar quanto estranho. O prazer de outro
corpo contra o meu era mais que erótico. Era a verdade carnal da existência,
uma prova de ser. Depois veio medo, mas seria medo ou punição pelo prazer? Terá
sido um ato impensado e desnecessariamente arriscado? Seria preciso retreinar
os sentidos e reaprender a lidar com as emoções do contato físico e com o
conforto desafiador que delas deriva? Teria eu estado sujeito a uma prolongada
privação do toque e do tato de outros seres vivos que não os estritamente
familiares, entre humanos, gatos e cães? Porque não me ocorrera durante a longa
privação pandêmica abraçar árvores, como fazem muitos ecologistas para sentirem
a energia desses maravilhosos seres vivos que ligam de modo tão natural a
profundeza da terra e a altura do céu, algo que é tão difícil para os humanos
treinados na cultura ocidental? Por que é que abraçar as árvores (e tantas
tenho no meu quintal), que eu poderia abraçar sem ter medo de ser por elas contaminado
pelo coronavírus, não me daria a mesma indescritível emoção que me invadiu ao
abraçar e sentir o corpo quente de um ser humano amigo? Por que é que esta
verdade carnal da vibração incontida de um abraço escapa à reflexão e só como
surpresa invade a consciência como uma avalanche solta e “irracional”, de modo
menos previsível que um tsunami ou um terremoto? Sendo certo que em certas
culturas há quem não possa ser tocado, quer por ser demasiado superior quer por
ser demasiado inferior, como funcionará a vibração dos corpos sem toque?
Esta
verdade carnal dos corpos e das relações humanas é o dia-a-dia de todos os
seres humanos que não fazem do corpo (próprio ou alheio) e das relações humanas
um instrumento de diagnóstico científico, um objeto de lucro ou um motivo de
especulação filosófica, mas raramente ocorre ou se impõe a intelectuais e
filósofos. Quando isso ocorre, o que é muito raro, faz deles seres muito
especiais. Lembro-me de Michel de Montaigne que, nos seus Essais, escritos por
volta de 1570, escreve sobre o que verdadeiramente conhece, o seu corpo e as
surpresas e contradições das relações humanas. Por isso, dedica um ensaio à
arte de conversar e da confrontação oral e discorre sobre o prazer de comer
ostras, mesmo tendo de sofrer as cólicas que elas podem vir a causar. Mas o
caso mais notável é o de Albert Camus e a sua incessante luta contra as ideias
abstratas, a que contrapõe a verdade carnal da morte e do sofrimento concretos.
Numa sessão na Universidade de Estocolmo, por ocasião da entrega do Prêmio
Nobel da Literatura em 1957, quando interpelado agressivamente por um ativista
islâmico sobre a independência de Argélia e a questão da violência, Camus
respondeu: “terrorismo nas ruas de Argel… poderia matar a minha mãe ou a minha
família. Eu creio na justiça, mas defenderei a minha mãe acima da justiça”. A
sua mãe valia mais para ele do que qualquer ideia abstrata.
O abraço e a cultura
A
verdade carnal do abraço depois de tanto desuso e a emoção com que me abalou
fez-me refletir sobre o abraço. Os poetas desde sempre contemplaram as
ambiguidades do abraço. Florbela Espanca canta, num dos sonetos, o “lânguido e
doce” abraço de “Dona Morte”. Pablo Neruda dedica-lhe um poema de amor: “Em teu
abraço eu abraço o que existe / a areia, o tempo, a árvore da chuva / E tudo
vive para que eu viva: / sem ir tão longe posso vê-lo todo: / veio em tua vida
todo o vivente.” António Ramos Rosa recusa-se a adiá-lo, e ao amor: “Não posso
adiar este abraço / que é uma arma de dois gumes / amor e ódio”. E Ana Luísa
Amaral canta rupestres saudades de “fresco e doloroso abraço”. Já Shakespeare
tinha mostrado um derrotado Henrique VI a não ter escolha senão “abraçar o
amargo infortúnio”. Por sua vez, o grande poeta, matemático, astrônomo e
filósofo persa do século XI, Omar Khayyam, ousou perguntar-se pelo maternal,
derradeiro abraço que tudo apazigua. Muitos séculos mais tarde, o grande poeta
turco, Nâzim Hakmet, haveria de cantar o desejo do seu povo – “honesto,
trabalhador, valente, meio saciado, meio faminto, meio escravo…” – de abraçar
tudo o que fosse “moderno, belo e bom”.
Entretanto,
descobri que psicólogos, etólogos, antropólogos e estudiosos da cultura têm
dedicado longas páginas ao estudo de tão simples fenómeno, tão comum entre
humanos como entre animais, mas com tantas variações e tão diferentes
significados. O termo vem do latim, “bracchia collo circundare”, pôr os braços
à volta do pescoço. É um ato que transmite afabilidade, simpatia, ausência de
hostilidade, um gesto que entre humanos tanto ocorre no início de um encontro
como na despedida. Os animais também se abraçam mas, ao contrário dos humanos,
abraçam-se de frente e de costas, e, pelo menos os animais domésticos, não
parecem abraçar-se nunca à despedida. A fenomenologia do abraço é muito
complexa e tem sido objeto de minucioso estudo: os movimentos de aproximação,
as expressões corporais, a fixação do olhar, a duração, a maior ou menor
pressão dos corpos apertados no abraço, o contato ou não de zonas tabu no
encontro de corpos de sexo diferente, o toque na cabeça ou na cara, o âmbito do
deslizar das mãos nas costas ou nos ombros do parceiro sem causar desconforto.
O contacto corporal é fundamental para os recém-nascidos e o abraço da mãe é
rapidamente identificado com sentimentos de alegria, conforto e confiança, que
são depois reproduzidos quando abraçam bonecos ou brinquedos. Por outro lado,
há um ramo do conhecimento, a proxêmica, dedicado a estudar a relativa
distância que as pessoas em diferentes culturas ou com diferentes
características psicológicas consideram ser necessário manter entre si e outra
pessoa, numa interação normal, sem sentirem desconforto. Por exemplo, pessoas
extrovertidas exigem menos distância que as introvertidas ou com distúrbios
psicológicos. A zona de distância entre os corpos no abraço é considerada a
zona íntima, entre 0 e 15 cm. Considera-se hoje que essa distância está
relacionada com fatores genéticos, ambientais, práticas culturais, papéis
sociais, infância, religião. No mundo ocidental (sobretudo anglo-saxônico), os
homens tendem a preferir o aperto de mão ao abraço, enquanto as mulheres entre
si preferem o abraço. Tudo isto me parece fascinante, embora nada me diga sobre
o que senti quando abracei o visitante bem-vindo e de quem tinha tantas
saudades. E também não me explica por que razão, nesse preciso momento, um
simples aperto de mão (sobretudo se seguido de desinfecção), longe de ser um
ato afetivo, significaria distância, desconforto e até hostilidade. A ciência
do abraço não ensina a abraçar, nem é esse o seu propósito. Mas não deixa de
ser interessante conhecer os diferentes significados culturais que esse ato tão
vulgar pode ter. Afinal, o abraço só deixou de ser vulgar quando a pandemia o
tornou problemático, e foi então que, perante a sua perda, passamos a
apreciá-lo verdadeiramente.
O
significado do abraço está inscrito em muitas culturas. Na Bíblia, é pelo
abraço que se dá a reconciliação entre Esaú e Jacó: “Então Esaú correu-lhe ao
encontro, e abraçou-o, e lançou-se sobre o seu pescoço e beijou-o; e choraram”.
É sabido que os povos latinos e africanos têm uma maior necessidade ou uma
maior disponibilidade para se abraçar e de o fazer mais efusivamente, ainda que
nos países africanos de cultura islâmica, os abraços ocorram apenas entre
humanos do mesmo sexo. A duração do abraço está sempre relacionada com a
intensidade da emoção, que tanto pode estar relacionada com felicitações como
com condolências. Enquanto na Rússia, na França e em certas regiões da Europa
de Leste o abraço entre homens seguido de beijo na face é comum, tal não
acontece noutros países. Mas enquanto na Europa do Sul o abraço é uma saudação
comum, na Europa do Norte a saudação comum é o aperto de mão. Nas diferentes
culturas islâmicas, o contacto corporal entre homens e mulheres no espaço
público é mais raro, a distância na interação tende a ser maior, e o abraço
pode mesmo ser proscrito.
A
população branca dos EUA é tão pouco atreita a abraçar-se, pelo menos em
público, que Kevin Zaborney propôs em 1989 que o dia 21 de Janeiro passasse a
ser dia nacional do abraço para desenvolver sentimentos de confiança e de
segurança entre familiares e entre amigos. Não surpreende que os sessenta
milhões de latinos que vivem nos EUA, que tão gostosamente mostram a sua
diferença em relação à população branca ao abraçar-se profusamente entre si,
tenham sofrido tanta privação psicológica durante a pandemia. Segundo alguns
relatos, a propagação da infecção entre latinos esteve relacionada, entre
muitos outros fatores, com os abraços e a proximidade corporal, de tal modo
entranhados na cultura, que não puderam ser dispensados, apesar dos riscos.
O abraço e a saúde
São
hoje conhecidos os benefícios do abraço para a saúde. Já referi atrás que Kevin
Zaborney propôs o dia nacional do abraço para melhorar a comunicação humana e
diminuir os níveis de stress e de hostilidade. Curiosamente, o Brasil também
celebra o dia anual do abraço, mas a 22 de Maio, e não é porque faltem abraços
nas relações entre os brasileiros e as brasileiras. É apenas para celebrar a
magia do contato corporal da amizade e da afetividade e do apoio mútuo, tão
necessária nos momentos que correm. Os mais conhecidos efeitos físicos do
abraço são a produção da ocitocina, considerada o hormônio do amor pelo seu papel
na diminuição da ansiedade, na melhoria do humor e no aumento da afetividade.
Também diminui a agressividade do humano masculino, tornando-o mais amável,
generoso e social. O abraço baixa a tensão arterial e, segundo alguns
especialistas, aumenta a imunidade do corpo, o que não deixa de ser irônico e
mesmo cruel em tempos de pandemia: quanto mais necessidade teríamos de nos
abraçar, mais perigoso isso se torna em razão da possibilidade de contágio. O
ser humano em pleno labirinto da sua potência e limitação. A inconformidade
prometeica com tal contradição levou à engenharia do abraço a nós próprios como
se fôssemos outrem. Refiro-me à invenção do Sense Roid, o manequim coberto de
sensores tácteis, vestuário táctil com motores de vibração e músculos artificiais
que recriam a sensação do abraço. O Sense-Roid foi criado pela Universidade de
Electrocomunicações do Japão e pode ser comprado na Amazon. À primeira vista,
parece estarmos na fronteira da distopia pós-humana. Mas, afinal, a estranheza
que nos causa será diferente da que causaram no início da sua comercialização
os vibradores sexuais, considerados hoje um acessório comum? Contra este fix
tecnológico, que torna o solitário em espelho perverso do solidário, parece
crescer entre os jovens o hábito de se abraçarem para se sentirem mais
apoiados, mais íntimos e mais afetuosos. Em tempos de pandemia, talvez corram
riscos, mas o risco maior não será viver como se morre? Só.
Boaventura de Sousa
Santos
Doutorado em Sociologia
do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório
Permanente da Justiça Portuguesa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário