Neoliberalização da Justiça no Brasil
Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
NEOLIBERALIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO BRASIL: MODO GOVERNAMENTAL DE SUBJETIVAÇÃO, DISPOSITIVO JURISDICIONAL DE EXCEÇÃO E A CONSTITUIÇÃO COMO UM CUSTO. THIAGO ARRUDA QUEIROZ LIMA. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020, 408 p.
O livro, originado de tese defendida no Programa Interinstitucional de Doutoramento em Direito, desenvolvido pela UnB/Faculdade de Direito, juntamente com a UFERSA, para a formação e titulação de docentes da Universidade Federal Rural do Semiárido, em Mossoró, RN (2019), que acaba de ser publicado, busca verificar a hipótese da neoliberalização da justiça no Brasil.
Estive presente na banca, como arguidor, e a convite do Autor elaborei o prefácio para o livro, de onde extraio os termos para esta Coluna Lido para Você.
Assim que, elaborado, originalmente, como trabalho acadêmico, o texto é forte em seu referencial metodológico, que se apoia no método genealógico desenvolvido por Michel Foucault e pelo conceito de paradigma abordado pelo filósofo italiano contemporâneo Giorgio Agamben. Sem se fechar na linguagem mais restrita do discurso acadêmico, sua origem, a obra apresenta com o cuidado de mover categorias de análise, inicialmente os conceitos de governo e de governamentalidade liberal e neoliberal sob a perspectiva da biopolítica do filósofo Michel Foucault e, em seguida, um conceito preliminar de governamentalização da justiça. Nesse passo, aborda também o conceito de estado de exceção formulado por Agamben, para marcar uma indiscernibilidade entre aquilo que é externo e interno ao direito, correlacionando-o ao conceito foucaultiano de governo.
O objetivo é colocar a possibilidade teórica de se compreender a decisão judicial a partir do conceito de estado de exceção. Assim, explora a teoria da derrotabilidade das regras jurídicas e o tema da guarda da Constituição, correlacionando-os ao conceito de estado de exceção.
Entretanto, esse aporte teórico é organizado para aplicação sobre elementos discursivos de um conjunto de casos, levantados em sua maioria em julgados do Supremo Tribunal Federal, para estabelecer, ao final, que há um processo de neoliberalização da justiça no Brasil, marcado especialmente por um modo governamental de subjetivação e de normalização, por uma concorrencialização da vida, por uma intervenção ambiental sobre uma população, por uma factualização dos problemas jurídicos, por uma alternância estratégica entre regra e exceção e por uma alteração morfológica do discurso jurídico.
Esses referenciais se encontram no resumo preparado para a defesa da tese e podem ser decantados ao longo do sumário indicado no livro, em geral nas grandes linhas em que se expressam, num plano que vai do mais teórico ao empírico, que apresenta nas grandes linhas gerais, o travamento do tema pela armação de seus conceitos e designações estruturantes: Tecnologias de Poder, Governamentalidade Liberal e Neoliberal e a Neoliberalização da Justiça; Soberania, Estado de Exceção, Direito e Fato; Constituição; Justiça-Emprêsa; Sujeito de Direito; Homo Oeconomicus; Jurisdição; Veridição; Ordenamento; Derrotabilidade das Regras; Homo Sacer; Biopolítica; Jurisdição, Guarda e Suspensão da Constituição; Uberização do Direito; Maximização da Eficiência; Proporcionalidade como Teste de Custo e Benefício; o STF como Tribunal de Exceção; Interpretação Constitucional e Governabilidade. Tudo passando por exercícios não necessariamente sutis de aplicação judicial, com o desentranhar de razões que os julgados e seus autores-juízes (ministros) formulam, tendo em permeio um sistema de justiça acessível aos imperativos dos princípios neoliberais, para a garantia do equilíbrio dos negócios, entre movimentos, golpes, tensões reformistas e revolucionárias, num enredo que põe em presença para encontro tenso sujeitos econômicos e expectativas jurídico-governamentais, num emaranhamento em que a economia e suas crises se constituem elementos fático-constitucionalizantes. Ufa! O Sumário é um enredo entre o dramático, vida representada e o mundo, vida vivida.
Escrito num cenário de exceção já delineado, mas sem que se fizesse tão agudo quanto no contexto da pandemia que passou a assolar o mundo, e sem que o trabalho pudesse sequer imaginar tal cenário, o livro se abre, a partir de um conjunto de enunciados oriundos de atores pertencentes ao campo jurídico brasileiro, com a problematização acerca dos influxos que pressionam, hoje, o Poder Judiciário do país.
O Autor admite não ser possível, diante que foi exposto ao longo do trabalho, desprezar ou ignorar o que está em jogo. Discorrendo, em meio a uma guerra epistêmica, e agora em meio a uma crise total, estão a ser, ele diz, definidos os destinos do direito nacional. O que emergirá após o cenário de crise, que já não é só política? Esse é o ponto, e é toda a nossa cultura jurídica que está em questão. A revolução jurídica que se anuncia, indissociável de uma “reforma dos juristas”, tem alcance muito maior do que eventuais mudanças legislativas. Ao se remodelar o comportamento dos que decidem quanto à própria aplicação – ou desaplicação – da lei, altera-se algo muito mais profundo e relevante, que é o modo de produção de verdades jurídicas estabelecido no país.
Para tratar do problema, identifiquei, em diversas passagens, a modernização da justiça como um apelo persuasivo subtextual. Mas a governamentalidade, no fundo, representa uma complexa combinação entre o arcaico e o moderno, tomadas essas expressões em sentido sociológico. Essa afirmação, diz o Autor, “a qual já estava contida nas reflexões sobre penalidade e governo e sobre a relação entre as tecnologias de poder trazidas ao longo da tese, é importante e mesmo indispensável, para que não se tome a razão neoliberal como uma marcha iluminista ao progresso ou como uma produção indefinida de liberdade e liberalização. É sob uma espiral de modernização do arcaico e de arcaização do moderno que a governamentalidade se reproduz através da neoliberalização da justiça. Em outras palavras, é também multiplicando a penalidade, a exceção soberana e o autoritarismo judicial que a racionalidade neoliberal realiza seus pretensamente modernizadores cálculos de eficiência”.
No fundo, me deslocando um tanto para uma outra perspectiva que não aquela focalizada pelo Autor para enquadrar a mesma ordem de problemas, o que está em causa, não é só reivindicar, a modernidade de um sistema, inclusive de acesso à justiça, mas um repensar e reorientar a própria concepção de justiça para a qual ter acesso, o que modifica muito a percepção sobre modernidade e governamentabilidade. E isso não pode ocorrer sem que se abra o tema, não só aos sujeitos econômicos no mundo dos negócios, mas à participação popular porque, como eu próprio já afirmei, as Reformas do Judiciário em curso atingem o núcleo central, funcional, organizativo do sistema de justiça como estrutura de poder mas não o abre à participação social democrática. O tipo de acesso à justiça que tem sido debatido é ainda o “acesso a um sistema de justiça patrimonialista, sexista, patriarcalista, que criminaliza os movimentos sociais”. Uma reforma do judiciário de raiz precisa ser construída pelos movimentos sociais, e, neste sentido, requer abrir espaços de articulação das grandes pautas que envolvem a democratização da justiça (http://www.jusdh.org.br/2014/12/19/reforma-do-judiciario-precisa-de-participacao-popular/).
É nessa linha de interpelação que se localiza, por exemplo, o trabalho Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos, estudo coordenado e redigido por Antonio Escrivão Filho (Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil/Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), maio de 2018).
Com efeito, na mesma linha de sua tese de Doutorado, a que se pode ter acesso pelo Repositório de Teses da UnB – Mobilização social do direito e expansão política da justiça: análise do encontro entre movimento camponês e função judicial. 2017. 315 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017 – Escrivão Filho oferece o resultado de uma pesquisa que tem por objeto o fenômeno de encontro entre o movimento social e a função judicial no Brasil, analisando a experiência do movimento camponês a partir da década de 1980, com foco empírico (primário e secundário) e bibliográfico nos conflitos fundiários e no MST, observando a sua capacidade de reivindicação e mobilização constitutiva (criação) e instituinte (efetivação) de direitos.
Neste cenário, segundo o resumo do trabalho, observa-se um fenômeno de expansão política da sociedade brasileira, e com ela uma dialética de expansão política do direito, no bojo da ativação social dos direitos fundamentais. De modo complementar, neste período observa-se ainda a densificação das funções de controle judicial sobre a sociedade e os entes estatais, o que, por via de consequência, proporciona uma potencial transferência da deliberação de assuntos de elevada intensidade política para a arena judicial – como a relação ‘Estado-sociedade’ inscrita nos direitos fundamentais- culminando, enfim, no fenômeno identificado pela noção de expansão política da justiça. Identifica-se, assim, que a análise da mobilização social do direito realizada pelo movimento camponês, e o respectivo padrão de enfrentamento judicial com proprietários, tanto pode ser melhor analisada sob o enfoque da expansão política da justiça, como fornece elementos para a própria compreensão do fenômeno da expansão judicial no Brasil, a partir do regime de enunciado democrático.
Esse é o mesmo cenário, embora alargado em alcance histórico e político, no qual Escrivão, aqui denominando contexto, instala sua análise sobre o Supremo Tribunal Federal em face dos direitos humanos. Trata-se, diz ele (pp. 5-6) de reconhecer a política como o campo constitutivo (de criação) e instituinte (de efetivação) de direitos, a partir do que antigos e novos movimentos sociais, urbanos e rurais, comunitários e eclesiais, locais e nacionais, de gênero e étnico-raciais entram em cena, primeiro deslocando o lócus da ação política dos espaços institucionais para achá-la na rua, espaço público por excelência, depois, ocupando também os espaços institucionais para então disputar a participação no próprio processo constituinte de 1987-88. Assim que, se não parece Possível afirmar a existência de um regime democrático sem direitos fundamentalmente referidos à cidadania – ou seja, às garantias de dignidade, bem estar social e participação ativa na vida política da sociedade – não soaria lógico conceber um regime de direitos sem identificar que, por detrás da sua conquista, traduzida em reconhecimento jurídico-institucional, estão os sujeitos que irromperam a história, superando violências, exploração e opressões cotidianas para, a cada novo momento, a cada nova emergência em luta social, afirmar novos direitos.
Já para Thiago Arruda Queiroz Lima, de maneira especial, retiro de seu livro, é necessário compreender como uma tensão permanente e constitutiva da governamentalidade – entre jurisdição e veridição – é delineada hoje. Não restam dúvidas de que, ao menos segundo as intuições de Foucault, é impossível entender as táticas de governo sem considerar sua heterogeneidade em relação ao direito. Esse é, certamente, um dos pontos de fissura dos dispositivos de segurança: toma-se o sujeito como um homo economicus ou como um homo juridicus? Não se trata, certamente, de converter um projeto jurídico de sociedade em um substituto do projeto governamental. O que essa tensão certamente sugere são duas interrogações: que outro modo de subjetivação, alternativo ao modo de produção de subjetividade governamental, pode-se opôr, eficazmente, às tecnologias neoliberais? Uma vez que não se pode suprimir o poder, entendido como relação social, que outra forma de conduzir condutas pode ser inventada? E qual o papel do direito, ou melhor, que destino deve-se dar ao direito tanto em meio ao processo de destituição das práticas de governo como na conformação de uma nova programação política, uma nova tecnologia de poder? Pelo que se argumentou, a eficácia é a condição necessária para um novo modo de subjetivação e para a emergência de uma nova tecnologia de poder. Observando-se a crítica foucaultiana à ausência de uma arte socialista da condução de condutas, o que se exige, mais do que uma aderência a um conjunto de textos clássicos, é o desenvolvimento de uma específica arte política não neoliberal ou pós-neoliberal. É necessário reconhecer, então, que, de forma sistemática ela simplesmente não existe. Retornando-se ao direito, há certamente duas vias abertas em termos de crítica contemporânea à governamentalidade. De um lado, haverá aqueles que, recuperando uma razão axiomático-jurídica, oporão ao poder a aplicação devida da legalidade. Trata-se de recuperar o valor e a autonomia do direito positivo como um compromisso democrático perante os juízos de utilidade. De outro lado, pode-se desafiar a ordem governamental por esgarçamento, jogando-se em seu terreno. Pode-se prorrogar ao extremo a inscrição dos fenômenos de população no direito, a ponto de, talvez, fazer com que a governamentalidade opere contra si. Em que medida seria possível operar um curto-circuito nas práticas judiciais de governo a partir de um cálculo utilitário que incluísse novas variáveis e outro modo de calcular a própria função do mercado como regulador social geral? Se a governamentalidade joga o direito contra si, é possível uma contraconduta que jogue a governamentalidade contra si? Ou, de outra forma, seria possível estabelecer um outro tipo de esgarçamento, completamente fora dos quadros da governamentalidade neoliberal e de seus cálculos de utilidade? Seria imaginável um esgarçamento político da jurisdição e do direito, mas enquanto 346 contraconduta, a partir de outra programação, de outra tecnologia de poder, dotada de sua própria eficácia? Mais do que isso: em havendo as duas linhas acima, é necessário optar por uma? Via axiomática ou via de esgarçamento? Elas podem ser unidas em um ou mais pontos?
Certamente, a primeira via é de adoção mais óbvia em um primeiro momento, mas, à medida que avança a neoliberalização da justiça, ela pode tornar-se efetivamente estéril. Os argumentos que levanta, provavelmente, serão esvaziados por uma lógica outra de argumentação jurídica.
Seja sob a perspectiva com que trata o Autor o tema, seja naquela a que remete abordagens quais a de Antonio Escrivão, do que se cuida é conferir a ocorrência de uma expansão política do judiciário em face de sua interação com o sistema político e a sociedade civil. E de modo mais preciso, a necessidade de considerar nesse processo, não bastar compreender a ideologia que compromete a ação individual de juízes sem entender o fluxo de interação ideológica entre tribunais e academia, mídia, grupos sociais organizados e outras instituições políticas.
Não é difícil estimar, adverte Escrivão, um potencial curto-circuito, quando se constata a súbita sobrecarga política sobre uma estrutura destreinada a participar democraticamente da deliberação sobre conflitos de elevada intensidade política, econômica e social, na medida da Formula que alia expansão política e blindagem institucional e em oposição à sua abertura democrática ao dialogo nos termos da participação e controle social.
De certo modo, eu já havia antecipado essa sobrecarga, ao examinar esse tema a partir de uma questão política que me havia sido formulada por um sindicato de servidores do judiciário como tema de um de seus congressos: é possível uma sociedade democrática com um poder judiciário conservador?. Minha resposta, à altura, trilhou a mesma senda que Escrivão Filho percorre agora em seu estudo (Que Judiciário na Democracia?, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008): A resposta, obviamente, é não. Não é Possível uma democratização plena da sociedade se uma de suas instituições essenciais se conserva como modelo instrumental resistente porque ele se tornará obstáculo à própria mudança. Esta é sem dúvida a questão candente hoje, em nosso pais, quando se coloca em causa o problema de sua democratização e se identifica no judiciário a recalcitrância que é social e Teórica para a realização de mudanças sociais, conferindo à regulamentação jurídica das novas instituições o seu máximo potencial de realização das promessas constitucionais de reinvenção democrática (pp. 13-17).
Para Escrivão Filho, voltando ao texto de sua pesquisa, ao contrário da disposição de fomentar noções de autonomia e independência concebidas como princípios políticos próprios da função judicial diretamente referentes à garantia da sociedade contra a arbitrariedade do Estado, as alianças então construídas sobretudo durante a mediação constituinte (1988), ao invés de forjar requisitos de neutralização do sistema – reconhecimento ontológico da condição política da justiça – deixou que esse se visse permeado pela ideologia da neutralidade – enredando-o em injunções a serviço da reprodução das tradições de uma cultura institucional acostumada e orientada à manutenção do status quo. (p. 25).
Eis o tamanho do desafio que se coloca para a sociedade na qual se constitui a expressão de soberania popular que deve designar o perfil do Judiciário no desenho da institucionalidade em construção.
Para esse autor, o sistema de justiça e o Supremo Tribunal Federal restarão em uma promessa completamente vazia se não for vencido esse desafio, algo ainda pouco animador à luz dos registros taquigráficos sobre as PECs em curso nas duas Casas do Congresso Nacional, cf. pp. 26-44): “Desse modo, na nova ordem constitucional, o poder judiciário se vê, assim como toda a institucionalidade estatal e a sociedade, diante de desafios históricos para a reconstrução da sua função social. De notar, portanto, o tamanho do problema no qual nos situamos nesta complexa relação política entre o desenho institucional da justiça, a democracia e os direitos humanos no Brasil: se por um lado atingimos um estágio político e social, no qual se vislumbra confiar ao Poder Judiciário a função de solucionar ou intermediar conflitos sociais de alta intensidade política, como a efetivação ou proteção contra a violação de direitos humanos, de outro é justamente essa hipótese que desperta o alerta e sérias preocupações acerca da legitimidade e capacidade institucional do Poder Judiciário para lidar com tamanho alargamento político das suas funções”.
Para Thiago Lima, lançadas as provocações, com as quais dá motivação à leitura de sua obra, o que ele destaca por considerar decisivo no processo de neoliberalização pelo qual passa a justiça brasileira, se contêm em doze pontos, com os quais encerra o livro e abre um tremendo debate a partir dele: “1) Em primeiro lugar, a neoliberalização da justiça se caracteriza por um modo governamental de subjetivação, que reconhece e produz permanentemente um homo oeconomicus empresário de si, através da multiplicação da empresa como poder enformador da sociedade. 2) Ao fazer com que o governo passe para o lado do homo oeoconomicus para simular racionalmente suas prováveis condutas-investimento, o ator político e, sob a neoliberalização da justiça, os atores jurídicos devem, eles mesmos, pensar e agir como um homo oeconomicus. Isso significa que, ao mesmo tempo em que imagina o que o indivíduo objeto do poder fará, a própria decisão política – e judicial – orienta-se por um permanente cálculo de custos e benefícios e pela eficientização do Estado e da sociedade, mais do que por uma regra jurídica. 3) Com isso, não há, sob o neoliberalismo, apenas um homo oeoconomicus genérico, mas também suas ramificações, por exemplo, profissionais. Os casos revelam que, emerge, sem 347 dúvida, um homo oeoconomicus jurídico-profissional e, mais especificamente, um homo oeoconomicus juiz sob uma razão jurisdicional de governo. Trata-se de um juiz-empresário e uma justiça-empresa que lança um conjunto de decisões-investimento sobre uma população. 4) Heterogêneo e irredutível ao homo oeconomicus, o sujeito de direito é deslocado e empalidecido. Em outras palavras, ao invés de aplicar a regra jurídico-positiva a um sujeito de direito, a justiça-empresa, cada vez mais, aplica um dispositivo de segurança a um sujeito de interesse. 5) Esse dispositivo de segurança consiste em uma intervenção ambiental, ou seja, aquela que atua indiretamente sobre os indivíduos, através das variáveis socionaturais com que se deparam e que assimilam a seus cálculos autointeressados. Estabelece-se, com isso, um modo governamental de normalização da população. 6) Para isso, é necessário factualizar permanentemente os problemas jurídicos, oferecendo-se lugar especial às estatísticas, pois são elas que denotam privilegiadamente os fenômenos de população a governar. 7) Através desse tipo de intervenção, a razão jurisdicional neoliberalizada busca estender o princípio regulador do mercado ao conjunto da sociedade, possibilitando que a concorrência pronuncie permanentemente sua verdade. Trata-se do que foi chamado aqui de concorrencialização da vida. 8) Os dispositivos governamentais, para tanto, precisam estabelecer uma alternância estratégica entre regra e exceção, aplicação e desaplicação do direito positivo. Como resultado, produz-se um conjunto de anomalias jurídico-dogmáticas funcionais ao governo, através de dispositivos jurisdicionais de exceção. 9) O dispositivo jurisdicional de exceção se forma sempre que a decisão judicial derrota uma regra jurídica em nome da conservação ou da boa reprodução da ordem. A partir desse mecanismo, a própria guarda da Constituição se torna indistinguível de sua suspensão, operando-se uma destruição criativa da legalidade. 10) Sob essa lógica, a Constituição deixa de figurar como a deliberação sempre vinculante tomada pela autoridade máxima em uma democracia. Ela é concebida agora como um elemento de realidade entre outros a compor os cálculos de riscos e vantagens do juiz empresário. No limite, a regra constitucional figura como um custo, já que sua aplicação pode ser demasiadamente onerosa sob um teste de ganhos e perdas prováveis. 11) A opinião pública também ingressa nos cálculos utilitários da justiça-empresa, mas não como um efetivo critério decisório. Ela aparece sob duas formas, apresenta uma natureza 348 dúplice: primeiro como elemento de realidade, ou seja, como um dado com o qual se depara o juiz-empresário. Será sempre mais custoso, nesse sentido, decidir a contrapelo da opinião pública, tendo em vista a preservação da legitimidade do tribunal e a própria eficácia social da decisão. Para fazê-lo, deve haver a compensação desse custo por outros tipos de ganhos. Nesse sentido, a opinião pública representa uma variável ao cálculo utilitário. Num segundo sentido, ela é um instrumento, quer dizer, algo que pode ser conformado midiaticamente e utilizado para viabilizar uma decisão-investimento considerada como alocação ótima de recursos escassos. 12) Como saldo, neoliberalização da justiça altera radicalmente a morfologia do direito e do discurso jurídico, no sentido de que se obtém uma juridicidade sem forma definida, sem fronteiras definidas, sem diferenciação entre interno e externo. A alteração morfológica não consiste, portanto, em uma simples nova forma, mas na mutação constante de um direito polimórfico, a partir das táticas sempre móveis de um governo de populações. Não é possível, então, determinar os limites da jurisdição de antemão, justamente porque o direito positivo não lhe é mais um limite. Não há a simples redefinição dos limites dos poderes judiciais, mas sua constante transformação pelos cálculos governamentais. Nesse curso, ao contrário do que poderia parecer, o direito não se fortalece, embora os atores jurisdicionais ampliem, ao menos no curto prazo, seus próprios poderes”.
Tudo isso, numa quadra, nos mostra Talita Rampin (RAMPIN, Talita Tatiana Dias. Estudo sobre a Reforma da Justiça no Brasil e suas Contribuições para uma Análise Geopolítica da Justiça na America Latina. Brasília: Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Direito da UnB, 2018), em que não há consenso sobre o que é justiça, sendo, contemporaneamente, um tema que desafia conhecimento e posicionamento, política e epsitemologicamente, vale dizer, as atenções correntes: A justiça está em disputa: interessa ao mercado, que a incorpora como fator incidente sobre a segurança jurídica dos contratos e a livre circulação de mercadorias; interessa ao Estado de direito, que a incorpora como vetor de orientação política, materializazada em garantias para a realização da cidadania, e como instrumento de resolução de conflitos e reconhecimento de direitos e interesses, tais como o acesso aos bens jurídicos considerados essenciais para a manutenção da vida; e interessa, entre outros, às ciências, que a incorporam como objeto de investigação e buscam explicar o fenômeno desde diferentes perspectivas, metodologias e áreas de conhecimento.
Ou ainda pior, tudo isso ainda com o que estamos assistindo agora em nosso próprio País, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de seus enunciados, como por ocasião do afastamento da Presidenta da República, numa aplicação de retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material; na seletividade de decisões envolvendo lideranças de oposição político-partidária; na tipificação criminal do protesto social; na judicialização da política; tudo levando à configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado de Exceção Democrática, que se vale da lei e da Constituição para esvaziá-las de suas melhores promessas (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Estado Democrático da Direita, in BUENO, Roberto, org., Democracia: da Crise à Ruptura. Jogos de armar: reflexões para a ação. São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, pp. 407-424).
Como eu disse, escrito antes da tremenda virada escatológica que passou a desafiar o mundo com a pandemia terrível que o coronavírus provoca, as condições de discernibilidade ficam muito reduzidas para dar conta desses desafios. O desafio é então dirigido ao pensamento crítico e a sua disponibilidade para apreender a realidade interpelante. Para Boaventura de Sousa Santos (cf. o seu recentíssimo A Cruel Pedagogia do Vírus. Boaventura de Sousa Santos. Coimbra: Edições Almedina, 2020), passamos a nos deparar como que a realidade à solta e a excepcionalidade da excepção, quando a pandemia “confere à realidade uma liberdade caótica, e qualquer tentativa de a aprisionar analiticamente está condenada ao fracasso, dado que a realidade vai sempre adiante do que pensamos ou sentimos sobre ela. Teorizar ou escrever sobre ela é pôr as nossas categorias e a nossa linguagem à beira do abismo”.
Fazendo uma leitura desse livro (cf. Minha Coluna Lido para Você, Jornal Estado de Direito (http://estadodedireito.com.br/a-cruel-pedagogia-do-virus/), não pude deixar de considerar o quanto Boaventura dirige aos intelectuais esse enorme desafio pois, “tal como aconteceu com os políticos, os intelectuais também deixaram, em geral, de mediar entre as ideologias e as necessidades e as aspirações dos cidadãos comuns. Medeiam entre si, entre as suas pequenas-grandes divergências ideológicas. Escrevem sobre o mundo, mas não com o mundo. São poucos os intelectuais públicos, e também estes não escapam ao abismo destes dias. A geração que nasceu ou cresceu depois da Segunda Guerra Mundial habituou-se a ter um pensamento excepcional em tempos normais. Perante a crise pandémica, têm dificuldade em pensar a exceção em tempos excepcionais. O problema é que a prática caótica e esquiva dos dias foge à teorização e exige ser entendida em modo de sub-teorização. Ou seja, como se a claridade da pandemia criasse tanta transparência que nos impedisse de ler e muito menos reescrever o que fôssemos registando no ecrã ou no papel”. Trata-se, diz o autor, de exercitar a função intelectual “atentos às necessidades e às aspirações dos cidadãos comuns e saber partir delas para teorizar”
O livro de Thiago Arruda Queiroz Lima corresponde a esse exercício intelectual necessário ainda que ao risco de teorizar sobre categorias e linguagens que se encontram elas próprias à beira do abismo. Um risco que o Autor confronta enquanto se desloca na borda de um grotão e o atravessa com muita galhardia.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua |
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