sexta-feira, 12 de junho de 2020

Os 30 anos de um direito que combate a injustiça construída pela lei ...

Por Jacques Távora Alfonsin

"Ação organizada e não prorrogada indefinidamente porque, na rua, as reivindicações populares de proteção e defesa de direitos, não depende de processos formais (judiciais, administrativos, burocráticos, protocolares etc...). O permanente desafio de se garantir eficácia aos direitos sociais, por exemplo, tem sido vencido pontualmente pelo direito achado na rua, materialmente por seus efeitos concretos, dos quais a ocupação de terras que não cumprem sua função social é uma das provas desse fato", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

Eis o artigo.

Faculdade de Direito da Universidade de Brasilia sediou, entre 11 e 13 deste dezembro, um Seminário Internacional, para celebrar o 30º aniversário do “Direito achado na rua”, ou, como o próprio convite para a participação de interessadas/os no evento registrou, “O direito como liberdade”. Este é o título de um livro escrito pelo professor e jurista, ex-reitor na UNB, José Geraldo de Sousa Junior, um dos fundadores dessa verdadeira nova escola jurídica, de um direito legítimo, mas nascido e “vigente na rua”, ou seja, em um outro lugar social, desconhecido ou até desprezado pelas instituições públicas.
O público presente neste encontro testemunhou a relevância social que um estudo crítico do “direito legal”, em muitos casos até colocado em oposição direta ao que as leis preveem, como é o do direito achado na rua, continua animado por uma forte mística de proteção e defesa de todo aquele povo pobre que lhe serve de nome, sujeito, sentido, direção e ação.
Nome, porque a rua é um dos lugares onde a coragem popular contrária a opressão e a repressão das leis injustas não tem só a oportunidade de enfrentá-las, mas revelar também e publicamente a hipocrisia e o cinismo que permeia, com muito honrosas exceções, o direito “legal”, “oficial” “positivo”, caloteiro histórico de promessas generosas feitas ao povo pobre e depois descumpridas. A rua, do direito achado nela, pode e deve ser vista, igualmente, como aquela outra via, hostil ao sistema mundo capitalista, aquela que, em vez da globalização dos mercados, prefere a da vida e a da liberdade para todas/os. Não aceita o monopólio da produção do direito e da justiça sob reserva exclusive do Estado. Está fundamentada, se não já numa legitimidade constituída, em outra constituinte e constituível, de acordo com a realidade dos tempos e dos espaços que ela própria assume, se responsabiliza e se encarrega de garantir, por maior que seja a repressão que sofre.
Sujeito protagonista da defesa de direitos devidos porque, na rua, publicamente, as multidões pobres de cada país têm chance de, pelo número e pela consciência coletiva que as constitui, deixar visível a exclusão social a que ficam submetidas por leis onde até a previsão de direitos como os sociais não passam da letra, e cuja aplicação, quando se dá, fica dependente de uma burocracia do tipo processo legal, que ignora urgências necessitadas de atendimento imediato, da espécie alimentação e moradia por exemplo.
Sentido inspirador porque, na rua, esse direito é compartilhado por suas/seus defensoras/es, baseado coletivamente num sentimento ético-político indignado com as injustiças geradas pela reprodução “legal” de desigualdades sociais, discriminatórias, fundadas em “valores” imorais do tipo egoísmo, ganância, corrupção, racismo, preconceito, desrespeito a terra, ao meio ambiente, a pessoas pobres ou miseráveis.
Direção acertada e clara porque, na rua, os objetivos de proteção e defesa da dignidade humana e da cidadania libertam esses direitos da mais do que conhecida e desmoralizada manipulação das leis, quando essas são produzidas, interpretadas e aplicadas, de modo seletivo, sob paradigmas hermenêuticos de favorecimento privilegiado para determinados grupos de poder, seja ele privado ou público, como prova a vergonhosa tradição histórica do Brasil, agora requentada por aqui desde o golpe de 2016.
Ação organizada e não prorrogada indefinidamente porque, na rua, as reivindicações populares de proteção e defesa de direitos, não depende de processos formais (judiciais, administrativos, burocráticos, protocolares etc...). O permanente desafio de se garantir eficácia aos direitos sociais, por exemplo, tem sido vencido pontualmente pelo direito achado na rua, materialmente por seus efeitos concretos, dos quais a ocupação de terras que não cumprem sua função social é uma das provas desse fato.
Quando faltam argumentos para se justificar uma determinada situação de injustiça, um recurso costumeiramente usado para defendê-la é o de acusar os críticos da mudança provada necessária como inspirados, apenas, em “ideologias”. Assim, sobre necessidades humanas vitais da espécie fome, falta de teto, escola, assistência médica e hospitalar, segurança, transporte, trabalho, lazer, enfim todo o direito social de que a lei ouse tratar, ficam impedidas de serem satisfeitas, não só pela pela midiático, doutrinário e, esse sim, ideológico, desenvolvido para desarmar e desautorizar qualquer reivindicação popular sobre questão dessa evidente urgência de solução prioritária.
direito achado na rua não é cúmplice dessa injustiça. Bem ao contrário, faz 30 anos que a combate, o Seminário de Brasília dando mostra de que se encontra muito vivo e forte. José Geraldo de Sousa Junior, em entrevista concedida ao IHU notícias em outubro do ano passado, sintetizou um dos méritos desse direito, inclusive para mostrar que tipo de acesso e a qual tipo de justiça é possível ainda falar-se em solução para a crise vivida pelo Poder Judiciário, ainda exageradamente preso a posições preconceituosas em relação ao povo pobre:
No fundo, o que está em causa não é só reivindicar acesso à justiça, mas um repensar e reorientar a própria concepção de justiça para a qual ter acesso. E isso não pode ocorrer sem que se abra o tema à participação popular porque, como eu próprio já afirmei, as reformas do Judiciário em curso atingem o núcleo central, funcional, organizativo do sistema de Justiça como estrutura de poder, mas não o abre à participação social democrática. O de acesso à Justiça que tem sido debatido é ainda o acesso a um sistema de justiça patrimonialista, sexista, patriarcalista, que criminaliza os movimentos sociais”. Uma reforma do Judiciário de raiz precisa ser construída pelos movimentos sociais, e, neste sentido, requer abrir espaços de articulação das grandes pautas que envolvem a democratização da justiça.
Não há de ser criminalizando os movimentos sociais, então, que o Poder Judiciário brasileiro conseguirá enfrentar e muito menos vencer a injustiça social por força da qual eles não só existem, como podem e devem agir, mesmo que seja por um direito achado na rua.

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