quarta-feira, 10 de junho de 2020

Cidadania e inclusão

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito



       

Cidadania e Inclusão. Estudos em Homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Flávio Henrique Unes Pereira e Maria Tereza Fonseca Dias. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008,  581 p.
Créditos: PixaBay

     Em coluna anterior, aqui nesse Lido para Você, para acentuar a importância de se incluir no estudo sobre o qual a Coluna versava, chamei a atenção para este livro, indicando toda a obra e especialmente três artigos que se aplicavam diretamente ao texto em causa.
     Ao fazê-lo, como num vislumbre de esclarecimento, rememorei todo o acervo desse livro visceral, em si, uma obra extremamente valiosa em seu arranque, arranjo e competência convocada para estudos em homenagem, conforme logo se verá pelo sumário que vou apresentar, mas por reverenciar o espírito vivo, intelectualmente encarnado, na personalidade emponderada de Miracy Gustin.
     Vejam o que dizem os organizadores do livro e da homenagem, no frontispício do livro: “Vamos imaginar alguém que pudesse contar com um pouquinho de cada ser humano que admiramos. Como se fosse possível pinçar o que há de coragem em um; de bondade em outro; de ousadia em mais um; de… . É possível. Eis Miracy Gustin, nossa querida professora. Não falamos de perfeição, é alma verdadeiramente humana, ‘vida severina’. Essa é uma parte das razões que nos motivou a organizar esta obra. A outra, é sentimento, afinal, ‘sentimento é a coisa mais fina do mundo’ (Adélia Prado). Amor, em Miracy, une os autores do livro”.
     Disseram bem. Outro grande mestre, supervisor de estudos pós-graduados avançados de Miracy, em Barcelona, no livro autor do prefácio, Juan-Ramón Capella, disse mais: “Sabido es que las instituciones jurídicas y el derecho, si se apartan de la democracia, pueden ser instrumentos de opresión social, pero también que com la democracia y con la fortaleza de la ciudadanía El derecho es uma institución colectiva de liberación. El mérito de Miracy Gustin es Haber sabido apostar decididamente, tanto em sus obras teoréticas como em su práctica docente, por el derecho como instrumento de defensa social frente a los abusos, y haberlo hecho de uma manera imaginativa, de imaginación radical que diria C. Castoriadis, modificando em sentido constructivo uma de las condiciones de reproducción del campo jurídico”.
     Conforme mencionei, além do prefácio, da apresentação, de saudações e da biografia escrita pelas filhas Fernanda, Fádua e Ana Isaura de Sousa Gustin, o livro oferece um rico sumário, que é de interlocutores que também amam Miracy, mas que, de algum modo fazem interlocução com ela a partir de seus temas, seus projetos, seus conceitos, sua visão de mundo, sua concepção de Direito.
     Precioso repertório. Confiram:
     A história dos sistemas de pensamento e as condições de possibilidade do discurso dos direitos humanos no Brasil hoje, Adalberto Antonio Batista Arcelo; As origens do Núcleo de Prática Jurídica da UnB, Alexandre Bernardino Costa; Cidadania e inclusão social versus violência, Angela M. Prata Pace Siva Nicácio; Sobre segurança pública, violência, Sherlock Holmes e capitão Nascimento, Beatriz Vargas; Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes, Boaventura de Sousa Santos; O ensino do Direito como base da autonomia da pessoa humana e sua legitimação ética, Brunello Stancioli, Nara Pereira Carvalho; A mediação como exercício de autonomia: entre promessa e efetividade, Camila Silva Nicário, Renata Camilo de Oliveira; Cidadania, democracia e Constituição: o processo de convocação da Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988, Cristiano Paixão, Leonardo Augusto de Andrade Barbosa; As possibilidades da economia solidária enquanto um espaço em construção: re-significando o trabalho para re-significar a vida, Fernanda de Lazari Cardoso, Leonardo Balbino Mascarenhas, Renata Versiani Scott Varella, Roberta Brangioni Fontes; A constitucionalização dos direitos trabalhistas e os reflexos no mercado de trabalho, Gabriela Neves Delgado; Novos desafios dos movimentos sociais, Gilvander Luís Moreira, Delze dos Santos Laureano; Poder judiciário e inclusão social: considerações acerca do papel do controle judicial das políticas para a efetividade dos direitos sociais, Heloisa Helena Nascimento Rocha, Luciana Moraes Raso Sardinha Pinto; Poder Judiciário e instituições participativas: reflexões sobre limites, riscos e potencialidades dessa relação para a efetividade dos direitos sociais no Brasil, Jacqueline Passos da Silveira; De Jürgen à Jorge Habermas: por uma filosofia do direito e da democracia à brasileira, José Eduardo Elias Romão; Uma construção histórica para a interpretação constitucional, José Luiz Quadros de Magalhães; Ius  e potestas: o debate sobre a pobreza franciscana e a aproximação semântica e estrutural de Direito e Política no tardo-medievo; Juliana Neuenschwander Magalhães; Repensando a exploração sexual infanto-juvenil sob o enfoque do gênero, Larissa Guimarães Baptista, Mariana Prandini Fraga Assis; Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a variação da participação no Brasil democrático, Leonardo Avritzer; Justiça e poder: uma proposta de interpretação para Prometeu acorrentado, Lucas de Alvarenga Gontijo, Thiago Lopes Decat; Direito e política na proteção da criança e do adolescente, Luciana de Freitas Guerra Lages; Cidadania e república no Brasil: história, desafios e projeção do futuro, Lucília de Almeida Neves delgado; A comunicação em redes de desenvolvimento comunitário: reflexões a partir do caso do Conjunto Jardim Felicidade, Luiza Farnese Lana Sarayed-Din; Segurança pública e violência: visões da sociedade civil, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira; A dimensão coletiva da mediação e o desafio da construção de redes sociais, Márcio Simeone Henriques; Os não-lugares do Direito: uma pesquisa em classe com trabalhadores de rua, Márcio Túlio Viana; A função social no direito urbanístico e na política urbana: uma nova ordem de sustentabilidade das cidades, Maria Coeli Simões Pires; O nome da rosa e o nome da lei: barreiras e pontes no espaço urbano, Maria Elisa Braz Barbosa; Uma leitura do discurso da exclusão socioespacial no Brasil: o cortiço, o quarto de despejo, a cidade de Deus – espaços vazios que transbordam, Maria Elisa Braz Barbosa, Maria Coeli Simões Pires; Ciência, ética e inclusão social em América Latina, Maria Fernanda Salcedo Repolês; Rumo ao direito administrativo da cidadania e da inclusão social, Maria Tereza Fonseca Dias; A concessão de uso especial para fins de moradia como instrumento para regularização fundiária, Marilda de Paula Silveira, Flávio Henrique Unes Pereira; Direito do Trabalho e inclusão social: o desafio brasileiro, Maurício Godinho Delgado; Os 20 anos da Constituição de 1988 e os horizontes da extensão universitária, Menelick de Carvalho Netto, Guilerme Scotti; Janelas, mesas, feijões e mulheres que catam sonhos, Mônica Sette Lopes; Educação em direitos humanos: um plano, muitos desafios e uma missão, Nilmário Miranda, Egidia Maria de Almeida Aiexe; Atividade tributária, processo administrativo-tributário e administração pública participativa, Rafhael Frattari; Subcidadania e subintegração das minorias identitárias no Brasil: uma introdução à discussão sociológica da historiografia brasileira, Renato Almeida de Moraes, Caroline Scofield Amaral; Programa Pólos: um caso cumprido de cidadania, Sielen Barreto Caldas; O direito à singularidade dos portadores de sofrimento mental e a permanentes inconstitucionalidade das medidas de segurança, Virgílio de Mattos, Janaína L. Penalva da Silva.
     Também estou presente na obra, com um texto Universidade Popular e educação jurídica emancipatória, que em seus desdobramentos: Ensino do Direito e assessoria jurídica, A reforma Universitária e o requisito de responsabilidade social, Núcleos de Prática Jurídica, assessoria jurídica comunitária e responsabilidade social dos estudantes de Direito, Nova cultura nas faculdades de Direito, O Direito Achado na Rua: uma experiência prospectiva carregada de compromisso social, O Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da UnB: antecedentes de sua experiência de institucionalização, (Re)pensando a universidade e o ensino jurídico na atualidade (p. 203-246), dialoga com os temas, autores e autoras de pelo menos quatro gerações, suas irradiações nacionais e internacionais a partir da UFMG e das lutas por cidadania e direitos, em Belo Horizonte, Minas Gerais e Brasil, alguns em contexto de reflexão doméstico-institucional como os Neves Delgado, pensam e realizam o Direito e a emancipação.
     Com efeito, em meu texto procuro estabelecer vínculos objetivos e subjetivos com Miracy, nas esferas teórico-epistemológicas, político-institucionais e jurídico-pedagógicas. A começar pelo aporte do Direito como emancipação, direito achado na rua, conforme o enunciado de Roberto Lyra Filho, segundo o qual o direito não é norma, mas a enunciação da legítima organização social da liberdade. Não custa lembrar que o Programa Pólos de Cidadania, o premiado projeto de extensão que saltou da universidade para a polis, surgiu com a denominação de direito achado na rua, pensando o jurídico como criação do social, de sujeitos coletivos de direito inscritos nos movimentos sociais, fazendo emergir enquanto pluralidade tensa (Boaventura de Sousa Santos) um jurídico que se realize como direito emancipatório.
     De toda sorte, no livro que organizei juntamente com a professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa e com os colegas Alayde Avelar Freire Sant’Anna, José Eduardo Elias Romão (que é autor no livro de homenagem), Marilson dos Santos Snatna e Sara da Nova Quadros Côrtes – Educando para os Direitos Humanos. Pautas pedagógicas para a cidadania na universidade. Porto Alegre/Brasília: NEP/Faculdade de Direito da UnB/Editora Síntese, 2004 – a própria Miracy, no módulo que aborda a educação para os direitos humanos, explica o alcance do projeto polos reprodutores de cidadania, em um bem estrurado texto – (Re)pensando a inserção da universidade na sociedade brasileira atual (observe-se que não é casual o sub-título do derradeiro item de meu texto no livro ora Lido para Você). O texto de Miracy pode ser conferido entre páginas 55 e 78 de Educando... .
     Os elementos desse artigo de Miracy Gustin foram atualizados e re-enquadrados no artigo que ela elaborou a meu convite para o livro que organizei como uma espécie de balanço crítico de meu reitorado na UnB, entre 2008-2012, (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de de (Org). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012). O precioso artigo de Miracy, respondendo às questões que lhe propus para atender ao projeto da edição, p.163-186, fecha magistralmente o livro e eu o tenho utilizado como leitura obrigatório de meus cursos na graduação e na pós-graduação em Direito e em Direitos Humanos e Cidadania na UnB. Com o título Uma Universidade para a Inclusão e a Emancipação: Reflexões, ela traça Os antecedentes da Universidade Emancipatória no Brasil, situa esse percurso no contexto da Universidade Emancipatória e Inclusiva: conceitos e diretrizes básicas, entre os quais anota o ensino universitário e a integração de suas funções básicas como condição emancipatória, os conceitos que devem fundamentar uma universidade inclusiva e os conceitos que devem fundamentar uma universidade emancipatória. Os alunos e as alunas revelam razão e sensibilidade no mergulho que fazem nesse texto.
     Meu diálogo com Miracy Gustin ganhou culminância quando convidada a participar da banca de progressão para a função de Professor Titular, presidida pelo encantado professor Roberto Armando Ramos de Aguiar e com a participação dos professores Antonio Carlos Wolkmer e João Maurício Leitão Adeodato (suplentes Miroslav Milosevic e Marília Muricy Machado Pinto), não pôde comparecer mas enviou seu parecer e voto desde a cama de hospital em razão de acidente. Aqui reproduzo o parecer, não por vaidade, mas porque a peça permanece inédita, salvo pela audiência na sessão, que lhe ouviram a leitura, num 10 de dezembro (dia internacional dos direitos humanos) e porque esse ineditismo permite resgatar os pontos de ligação da interlocução que venho procurando por a descoberto neste Lido para Você:
     “Prezados integrantes da Banca para Progressão ao Cargo de Professor Titular do ilustre candidato Professor Doutor José Geraldo de Sousa Junior. Senhores e senhoras presentes,
     Em um dos trechos do Memorial em questão, o ilustre candidato ao cargo de Professor Titular desta insigne instituição acadêmica afirma que dado ao fato que sua experiência impôs “a obrigação de prestar contas intelectuais diante das expectativas que fomentou”.
     Prestar contas intelectuais? Justamente esse emérito professor e mestre conhecido e reconhecido por sua postura frente a um direito que não só acadêmico é justamente aquele que provém e é pensado a partir de uma normatividade que está em nossa sociedade e que se origina da fala e do pensamento de nossa gente?
     Prestar contas intelectuais? Especialmente em momento que se expande em nossas escolas de direito a noção de que a visão dialética do Direito, em contraposição a uma visão pretensamente fixa e dogmática, é aquela que não apenas provém, mas que conforma uma construção racional discursiva que não se silencia frente a estudos e críticas que desconhecem a origem primeira de nossas normas e princípios?
     Prestar contas intelectuais? Justamente em momento nacional que os sentidos normativos e institucionais são desrespeitados de forma afrontosa e lastimável?
     Prezados amigos desta Banca, por essas razões é que afirmo, com vigor e muito respeito, ser o candidato o detentor de uma tradição do Direito que, como bem diz “emerge de sua fonte material – o povo – e de seu protagonismo a partir da rua”. Há quem possa discordar de fato tão evidente e inequívoco? Há aqueles que duvidam de tamanha obviedade, mas de onde então proviriam os conteúdos do direito? Afirmam alguns que da norma. Mas, não seria esta uma contraditoriedade? Como aquilo que está inserido poderia, paralelamente, inserir? Como abrigar e, ao mesmo tempo, ser abrigado? Haveria possibilidade de refutar-se aquilo que revela uma veracidade epistemológica?
     Não desejo destinar louvores ao candidato, pois todos o conhecem por seus méritos acadêmico-científicos e de administração educacional. Devo me voltar à análise de trechos selecionados de seu memorial, peça que sustenta a possibilidade de progressão ao cargo de Professor Titular desta egrégia Faculdade de Direito.
     Para minha desventura, como professora de cursos de direito, não conheci Roberto Lyra Filho. E talvez tenha sido benéfico que assim tenha ocorrido, pois não desejo aqui soçobrar nas categorias da amizade ou da afeição. Tenho, contudo, alguma proximidade à produção por ele deixada que, não resta dúvida, deu origem a uma nova forma de se conhecer e de se ministrar os conceitos jurídicos mais importantes e básicos.
     Pode-se afirmar que a crise da lei que António Manuel Botelho Hespanha tão bem descreve não possa ser atribuída apenas à técnica legislativa, mas primordialmente às formas como ela é divulgada e ensinada em nossas faculdades. Daí, a importância da formação da chamada Nova Escola Jurídica Brasileira que veio sistematizar questões até então esparsas. Em nosso entender há mais uma incompreensão das mudanças históricas do ensino do Direito do que uma verdadeira crise da lei.
     Qual de nossos alunos não conhece o pequeno opúsculo “O que é o Direito” que inúmeras vezes os levaram a escolher o Direito e não qualquer outra área de conhecimento? Inúmeros deles compareceram às nossas aulas reiterando os conceitos ali encontrados. Dirão, por certo, mas esta é uma obra de pouca capacidade acadêmico-científica e desse fato seu valor. É uma obra de quem não se importa com uma linguagem rebuscada, mas com o estímulo ao conhecimento do direito e de sua aplicação. Esta é a importância de Lyra Filho, a sua visão sempre crítica do Direito e de nossas faculdades.
     Em razão de uma queda e a fratura de duas vértebras estou impedida de comparecer à Banca de José Geraldo de Sousa Júnior para a qual fui honrosamente convidada e do que me ressinto imensamente. Gostaria de estar dentre vocês caros amigos avaliadores do memorial encaminhado, porém impossibilitada por orientação médica, deixo o meu parecer pela aprovação do currículo enviado e do memorial tão bem exposto e com redação esmerada por ser justa e meticulosamente pensada, após a leitura detida de seu conteúdo.
     Por ser verdade e de justiça e não tendo mais condições físicas de dar maiores explicações de minha posição, voto pela aprovação da progressão do candidato ao cargo de Professor Titular dessa emérita Universidade.
     Coloco-me à disposição da Banca e da Universidade para informações que se fizerem necessárias”.
     Concluo me valendo do fecho de comentário que a professora Misabel Abreu Machado Derzi trouxe para a obra: “somos profundamente devedores, todos nós, mineiros e brasileiros – também os estrangeiros –, dessa obra extraordinária, edificada pela Professora Miracy Gustin, que constrói a justiça e a liberdade constitucionaliza o cotidiano
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55
           

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