quinta-feira, 16 de abril de 2020

Coronavírus (COVID-19) tome cuidado, parente!


Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Coronavírus (COVID-19) Tome Cuidado, Parente! Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA). Edição e organização Juliana Radler (ISA). Distribuição Impressa e Eletrônica: Equipes de Saúde do DISEI-ARN, Secretaria Municipal de São Gabriel da Cachoeira, Rede Wayuri de Comunicação Indígena, FOIRN e ISA (file:///F:/JG%202020/portugues-2.pdf).
        Para esta Coluna Lido para Você, começo agradecendo a Renata Carolina Corrêa Vieira, da assessoria jurídica do ISA, por me ter dado a conhecer esse precioso material, um exemplo de iniciativa do social que se oferece em aliança com os movimentos sociais, livre da hierarquia subordinante da institucionalidade governamental, quando essa não se deixa arrebatar pelos titulares legítimos do poder político, ou seja, enquanto o estado não se constitui como sugere Boaventura de Sousa Santos, ele próprio um novíssimo movimento social, no interesse do Povo. Na impossibilidade de instalar o tradicional Acampamento Abril Indígena neste ano, o Informativo revela que a luta por direitos em tempos de pandemia pode se dar num espaço virtual crítico e ampliado para defender e ampliar direitos.
        Desde logo uma citação forte. “A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística”… Joseph Stalin. Apesar da autoria, não deixemos que o noticiário, com o anúncio de milhares de mortos pelo coronavírus, nem o descontrole de cúpula na condução das ações de enfrentamento à pandemia, contaminem o nosso humanismo. Mas tenhamos em conta que só seremos fundamente tocados quando os números e as estatísticas forem substituídos pelos rostos humanos, de parentes, amigos, pessoas que nos são familiares. Também não ocultemos que o extermínio de milhões de ameríndios, desde El encubrimiento del outro. Hacia el origen del mito de la modernidad, conforme designa Enrique Dusserl, nos aliene da  compromisso necessário com os povos originários, que são a nossa ancestralidade antropológica e histórica e que são a nossa nossa aliança para um futuro humano possível, em harmonia com o a natureza e o cosmos. E é nosso dever, com esses povos, nesta conjuntura dramática, assisti-los e cooperar com a sua titularidade subjetiva para definir suas estratégias de autoproteção e de autonomia.
        A citação não é trivial se levamos em conta o incremento desde a instalação de um governo ultraneoliberal de ações e eventos graves que têm resultado em graves violações de direitos desses povos e de outros grupos tradicionais, com a afetação da agenda dos órgãos de fiscalização e de proteção (Funai, Fundação Palmares, AGU, Partidos,  militarizados e engajados numa orientação de interesse expropriatório, criminalizadora e leniente a uma tolerância a assassinatos e práticas genocidas. Para aferir essa percepção, basta uma pesquisa ligeira no noticiário, notadamente acerca de mortes de indígenas e de violações de seus territórios. Nos vários aspectos, consulte-se, os meus textos em co-autoria com Renata Carolina Corrêa Vieirahttps://diplomatique.org.br/a-funcao-social-da-propriedade-pedra-angular-da-constituicao-cidada/http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/594845-do-peru-profundo-os-povos-indigenas-trazem-de-suas-lutas-pelo-bem-viver-uma-proposta-de-pacto-para-renaturalizar-os-direitos-humanoshttps://constitucionalismo.com.br/direito-achado-na-rua-como-horizonte-democratico-participativo/https://www.comissaojusticaepazdf.org.br/3518-2/ Democracia e bem viver: semear vida onde só há morte.
        Nesse sentido de compromisso foi elaborado o informativo, tendo como responsáveis pelo Conteúdo: a Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA) com a colaboração de Dulce Meire Mendes Morais, especialista em Saúde Coletiva, mestranda da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), com informações do Ministério da Saúde e Organização Mundial da Saúde (OMS). Os Desenhos são de @o.ribs e a Diagramação de Raquel Uendi.
        O mais importante, os Tradutores nas línguas indígenas: André Fernando (Baniwa), Elizângela da Silva Baré e Edson Gomes Baré (Nheengatu), Justino Sarmento Rezende (Tukano) e Roberto Carlos Sanches (Dâw). Assim como a Adaptação para os povos Naduhup: Américo Socot Hupd’äh, Bruno Marques, Karolin Obert e Patience Epps.
        Primorosa a edição e organização, por: Juliana Radler – Instituto Socioambiental (ISA)
        E, por fim, a Distribuição impressa e eletrônica: Equipes de Saúde do DSEI-ARN, Secretaria municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira, Rede Wayuri de Comunicação Indígena, FOIRN e ISA, que formam praticamente um sala de crise para atuar, a partir do Projeto Rio Negro, no sentido de que Prevenir é melhor que remediar.
        O informativo, aqui indicado por seus links respectivos, além do português,  cujo link está na chamada deste Lido para Você,  pode ser visto nas línguas em foi publicado: file:///F:/JG%202020/tukano-2.pdf, file:///F:/JG%202020/baniwa-2.pdf, file:///F:/JG%202020/daw-2.pdf, file:///F:/JG%202020/hupda-2.pdf e file:///F:/JG%202020/neenhgatu-2.pdf.
        Nos textos, informações importantes, oferecidas numa linguagem de compreensão que apreenda o imaginário dos destinatários, no que eles precisam saber: o que é o coronavírus (COVID-19)?, como pega a doença?, grupo de risco,  o que fazer se sentir os sintomas?, como se proteger?, evitar aglomeração de pessoas ficar em nossas casas e comunidades é o mais importante agora; o que fazer se tiver alguém doente em casa?, cuidado com as notícias falsas.
        O Informativo ajusta a repercussão geral da questão, aos cuidados e à condições próprias do local de vivência das comunidades, principalmente em São Gabriel da Cachoeira e lembra que na região do Médio e Alto Rio Negro não existem UTIs, e os casos graves têm que ser levados para Manaus, na logística do lugar com dias de viagem em barco. Chama a atenção para a necessidade de levar parentes recém-chegados, com ou sem sintomas a exame médico, para adotar os procedimentos recomendados; e orienta conforme os hábitos e usos culturais da Comunidade: “se alimentar bem com alimentos que contêm vitamina C, que ajudam na imunidade (ex. abóbora, cubiu, pupunha, jambu, mastruz, alho e cebola; não produzir o caxiri para não disseminar o vírus”.
        O esforço não é pequeno quando se tem em conta a tremenda dificuldade que é circunscrever a atenção aos interesses indígenas em meio a uma concepção pós-colonial ainda generalizada e inscrita nos discursos assimilacionistas de altas autoridades para as quais indígenas são um pouco mais que pré-históricas mas ainda sub-humanos, como se o Papa Paulo III, em 1537, já não tivesse esclarecido essa questão, reconhecendo, após o Debate de Valladolid, a sua humanidade. Entretanto, lá como agora, essa disputa antropológico-teológica-jurídica, ainda encobre o seu fundo real, avançar sobre terra e território, para sequestrar da visão identitária da pachamama, segundo a qual a natureza é vida, para coisificá-la, privatizá -la e mercadorizá-la.
        Certo que há as leituras de resistência, tal as inscritas nos programas internacionais de formação, conforme os cursos internacionais, interdiciplinares e interculturais que o IIDS – Instituto Internacional Derecho y Sociedad, do Perú organiza, sob a orientação acadêmica e expertise de sua diretora Raquel Yrigoyen Fajardo,  em sede de direitos humanos internacionais e litígio estratégico em direitos humanos, voltados para o conhecimento e a aplicação dos  sistemas jurídicos indígenas no enfoque do Pluralismo Jurídico Igualitário e Descolonização .
        Assim se compreende como, por exemplo, segundo relata Raquel Yrigoyen Fajardo, “na Comunidade Camponesa de Huancas, Chachapoyas, as rondas camponesas fazem com jurisdição autônoma o controle em seu âmbito territorial, para evitar o ingresso de estranhos e a propagação do Covid19, algo que está acontecendo no Perú, hoje. Ainda que, em alguns lugares, a polícia e prefeitos, em vez de coordenar com as autoridades indígenas (nativas, camponesas, de rodadas camponesas ou povos originários), as estejam criminalizando por exercer o controle territorial e a proteção da sua vida e integridade!”.
        Ainda no Perú, embora em geral mobilizado pela atenção à infância (niñez), meu querido amigo Salvador Herencia, do Grupo de Comunicação Salgalu, ajusta a editoria de seu sistema de comunicação para ampliar a sua aliança com as comunidades e povos tradicionais: “La pandemia del coronavirus no conoce fronteras ni barrera que la detenga. Tras las medidas tomadas por el gobierno para frenar la propagación, distintas poblaciones se han visto afectadas no solo por las restricciones (accesos para movilizarse), sino por la falta de insumos sanitarios para prevenir este mal. Ante ello, 9 presidentes de organizaciones indígenas de la Amazonía acordaron declararse en emergencia por el la Covid-19. Estas organizaciones que pertenecen a la Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana (AIDESEP), tomaron esta decisión ante los posibles daños a los que se encuentran expuestos sus comunidades por la pandemia del coronavirus. Así, los líderes indígenas llamaron a todos los pueblos al cierre de sus fronteras como medida de prevención”. (https://www.salgalu.tv/vernoticiatv/326?fbclid=IwAR36ENhXjrLF22mvs5pg9hkXmWSPkUGbT3BhWwpRl3PlHEHqF6YkjB7Oz20).
        Enquanto que aqui, ainda que bem intencionadas, por desconhecerem uma linguagem de mediação entre políticas e usos comunitários, até o que se abre como expectativa de apoio, carrega riscos que têm efeito paradoxal. Um pouco o que se passa na Amazônia neste momento. Mesmo tendo o Governo e o Parlamento editado lei que visa a beneficiar milhões de brasileiros com o programa Bolsa Família, o seu modo de implementação na crise sanitária, pode levar a colapso o sistema social e de saúde. É que os indígenas estão acostumados a se deslocar das comunidades e das aldeias, para a cidade, uma vez por mês. Agora, com o benefício ampliando, haverá um incentivo que aponta para uma catástrofe anunciada.  Só em São Gabriel da Cachoeira já são 8.500 famílias cadastradas para receber esse dinheiro vivo, que na lógica colonialista arrastará os beneficiários com os riscos de contágio para retirar os valores. É preciso encontrar modos de entrega desse dinheiro, num fundo talvez, para que o recebimento desses insumos necessários, não arrastem tantas pessoas para a cidade.
        São medidas que precisam ser tomadas mas que não podem prescindir de consultas aos povos, nos seus diferentes níveis de representação (http://apib.info/2020/03/20/governo-deve-apresentar-plano-de-prevencao-e-atendimento-para-evitar-riscos-de-contaminacao-de-coronavirus-nos-territorios-indigenas/), e necessariamente adotadas, pede a APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil,  seguindo um “Plano de Contingência para Surtos e Epidemias, considerando as especificidades dos nossos povos, o seu modo de vida comunitário, que pode facilitar a programação rápida do Coronavírus, requeremos dos organismos internacionais, principalmente da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) a disponibilização de testes em caráter especial e de urgência para as unidades de saúde indígena”.
        E essas medidas se fazem tanto mais urgentes quanto em nosso País, o desmantelamento atual da infraestrutural social e de saúde das populações indígenas, passou a ser uma opção de política pública de um governo assumidamente disponível para cumprir a agenda neoliberal. Veja-se a esse respeito o informe enviado à ONU e à CIDH pela AIDA, sobre a situação das populações indígenas do Brasil e da Colômbia: “Los indígenas brasileños están aún más expuestos al COVID-19 debido a problemas estructurales en los servicios de salud en Brasil. El desmantelamiento de la Secretaría Especial de Salud Indígena, responsable de la atención de más de 765.000 indígenas en el país, ha sido denunciado desde el año pasado por entidades indígenas. Es probable que el debilitamiento de las instituciones indígenas tenga un impacto dramático en esas poblaciones durante la pandemia” (https://aida-americas.org/es/recurso/informes-a-la-onu-y-cidh-sobre-la-situacion-de-pueblos-indigenas-de-brasil-y-colombia-ante-el-covid?fbclid=IwAR2BT7-n1_jICYqmclPpQd44QGd-rv0BJsrWKC_Tp00VvRyTRgPokA5U9S8).
        Não é pedir nada além do que já se enuncia na Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS), essa notável criação do espírito democrático brasileiro, antes desse surto autoritário que contamina o social em nosso País, conforme a Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013.  Trata-se de ter presente que o PNEPS-SUS reafirma o compromisso com a universalidade, a equidade, a integralidade e a efetiva participação popular no SUS, e propõe uma prática político-pedagógica que perpassa as ações voltadas para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a partir do diálogo entre a diversidade de saberes, valorizando os saberes populares, a ancestralidade, o incentivo à produção individual e coletiva de conhecimentos e a inserção destes no SUS. Embora se pressinta que essa linguagem soe estranha e distante do imaginário turvo dos gestores atuais das políticas sociais, na visão deles, um sub-produto do desempenho prioritário do econômico, ou seja, a subornibação da vida à mercadoria.
        Trata-se também de não perder de vista e descuidar-se na prática os princípios que orientam essa política: o diálogo; a amorosidade; a problematização; a construção compartilhada do conhecimento; a emancipação; e o compromisso com a construção do projeto democrático e popular.
        Ainda conforme essa política, entende-se por diálogo o encontro de conhecimentos construídos histórica e culturalmente por sujeitos, ou seja, o encontro desses sujeitos na intersubjetividade, que acontece quando cada um, de forma respeitosa, coloca o que sabe à disposição para ampliar o conhecimento crítico de ambos acerca da realidade, contribuindo com os processos de transformação e de humanização; por  amorosidade  a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da sensibilidade, propiciando ir além do diálogo baseado apenas em conhecimentos e argumentações logicamente organizadas; por  problematização  a existência de relações dialógicas e propõe a construção de práticas em saúde alicerçadas na leitura e na análise crítica da realidade; e por  construção compartilhada do conhecimento os processos comunicacionais e pedagógicos entre pessoas e grupos de saberes, culturas e inserções sociais diferentes, na perspectiva de compreender e transformar de modo coletivo as ações de saúde desde suas dimensões teóricas, políticas e práticas.
        Tudo isso sem reduzir o alcance que baliza essa política, no que a emancipação é um processo coletivo e compartilhado no qual pessoas e grupos conquistam a superação e a libertação de todas as formas de opressão, exploração, discriminação e violência ainda vigentes na sociedade e que produzem a desumanização e a determinação social do adoecimento; e o compromisso com a construção do projeto democrático e popular é a reafirmação do compromisso com a construção de uma sociedade justa, solidária, democrática, igualitária, soberana e culturalmente diversa que somente será construída por meio da contribuição das lutas sociais e da garantia do direito universal à saúde no Brasil, tendo como protagonistas os sujeitos populares, seus grupos e movimentos, que historicamente foram silenciados e marginalizados.
        Agora, ao final, uma nota sensível. O Informativo se dirige aos parentes: tome cuidado, parente!; repetindo a expressão em sua tradução possível, nas quatro línguas ( baniwa, daw, hupda, neenhgatu, tukano). Segundo o Glossário Adelco (https://adelco.org.br/), “é comum que indígenas de povos distintos tratem uns aos outros pelo termo, mesmo não havendo laço consanguíneo direto. Trata-se de uma categoria nativa, por meio da qual os representantes de diferentes povos reconhecem-se uns aos outros. Nesse Glossário, o temos “não significa que todos os índios sejam iguais e nem semelhantes”. Mas que “compartilham interesses comuns”, apesar da diversidade de povos, culturas, civilizações…e uma multiplicidade de formas de vida”.
        O fato é que o termo tem chamado a atenção e tem desafiado um exercício intercultural de tradução, para expressar percepções de vida, de sociedade e de natureza. Boaventura de Sousa Santos elegeu a expressão para orientar estudos epistemológicos desde o Sul (O Fim do Império Cognitivo. A afirmação das epistemologias do Sul). No Informativo, o uso do termo traduz essa intencionalidade e remete a um chamado para que as ações de cuidado na pandemia, não se emaranhem em distinções que reduzam as expectativas dos povos e as suas exigência de reconhecimento.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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