quinta-feira, 16 de abril de 2020

CARTAS DA QUARENTENA


Cartas da Quarentena (Com a suspensão do semestre letivo 1/2020, na UnB, como medida sanitária em face da pandemia – coronavírus – a disciplina Pesquisa Jurídica, turma B, foi convertida em atividade livre, conversível em atividades complementares voluntárias, apropriáveis no histórico escolar). Na nota aos estudantes com essa orientação/proposta, o grupo de monitores explicou: “Conforme todos sabem, o calendário acadêmico foi suspenso devido a quarentena contra o coronavirus. Todavia, as atividades de Pesquisa Jurídica continuarão ativas a fim de proporcioná-los a oportunidade de não só manter a mente ativa durante o isolamento, como também de adiantar as dinâmicas da matéria. Ou seja, tanto o moodle quanto o classroom continuarão ativos e seguindo a programação inicial; aquele com as resenhas e esse com as vídeo aulas, os textos e as atividades. Mas, respeitando a suspensão, todas essas atividades serão facultativas, quem optar por fazer as dinâmicas ganhará horas complementares.
As atividades aqui no classroom serão sem prazo e toda a monitoria se dispõe para ajudá-los no que precisarem. Atenciosamente,Equipe de monitoria de Pesquisa Jurídica. 
Uma das atividades propostas consistiu em pedir que os participantes escrevessem Cartas da Quarentena, não só para exercitarem suas angústias sem sucumbir a elas, como para refletirem sobre as exigências éticas e solidárias de reconstrução social após a superação da pandemia.
A seguir, algumas Cartas chamaram a atenção da equipe de monitoria, publicadas neste espaço, com a autorização de seus autores e autoras:

Carta de Daniela Rocha

Brasília, 30 de março de 2020.
Prezada comunidade,
É sabido por todos que o momento atual não é nada reconfortante. Correm soltas notícias de pandemia, crises econômicas, transmissões em massa, e tantos outros infortúnios por aí. Apesar de ser um direito, nem todos podem ficar reclusos na segurança de seu lar e acabam tendo que sair às ruas diariamente, sem saber ao certo se voltarão plenamente saudáveis ao fim do dia. E é a partir dessa perspectiva que desejo iniciar minha carta aos senhores e senhoras. A partir da perspectiva daqueles que não tem garantidos os Direitos que são seus por definição. A partir da triste realidade da desigualdade presente não só no contexto brasileiro, mas também no contexto internacional. É o momento ideal para pensar numa reestruturação ética e social da realidade que nos cerca.
Precisamos, desse modo, idealizar projetos de reconstrução do sistema de valores já há muito arraigados no imaginário social. Inicialmente, julgo ser necessário olhar para o nosso passado social e entender como nossa estrutura foi construída, analisando qual herança foi deixada por cada período histórico. Logicamente, estudar toda a trajetória da humanidade é trabalho impossível para apenas uma mera estudante de direito, por isso, deixarei a cargo de cada leitor para que faça sua própria análise. Ainda sim, acho importante ressaltar a necessidade de estudar os fenômenos do neocolonialismo, imperialismo cultural, sistema escravocrata, formação dos papéis de gênero, e similares para entendermos como os grupos não-dominantes resistiram a todos esses processos que tentaram tanto invizibilizar sua existência, resistência e luta. Do mesmo modo, julgo ser igualmente importante estudar os movimentos que tentaram resistir a esse apagamento, sendo eles o movimento negro, o movimento estudantil, o feminismo etc., entre outros. Julgo importante o estudo de tais movimentos para a compreensão não apenas de suas conclusões e teses, mas também do por quê tais grupos reivindicaram o que reivindicaram e do por quê lutaram como lutaram.
Após o estudo básico dos temas acima citados, creio que fique clara a conclusão de que existe uma estrutura social hierárquica, isto é, existe uma relação entre grupos dominantes/dominados, um pano de fundo ideológico para a forma que a sociedade se estrutura. Não estou falando de uma “pirâmide social” bem definida e imutável, como existiu, por exemplo, durante a Idade Média. Na realidade, me refiro a um complexo sistema de privilégios e desvantagens que se fazem presentes nas mais diversas esferas dos atributos humanos. Por exemplo: existem pessoas privilegiadas no sentido da renda, que tem um poder aquisitivo maior que outros e, consequentemente, tem um privilégio em relação a esses. Ao contrário, existem pessoas que tem um poder aquisitivo inferior – quantitativamente falando –, e, por consequência tem desvantagens em relação a outros, tal qual lugar de moradia, acesso a algum plano de saúde, acesso ao lazer, entre outros. Isso se estende a características como raça, gênero, orientação sexual, e vários outros. Assim, cada indivíduo carrega consigo diferentes privilégios e desvantagens sociais. Cabe, portanto, a cada um, fazer uma autoanálise e reconhecer quais são seus privilégios para, dessa forma, pensar em meios de usá-los para subverter e transformar a sociedade e dar espaço e voz ao silenciados.
No entanto, essa é uma visão extremamente utópica e, apesar de me considerar uma mulher um tanto quanto optimista quanto à possibilidade de transformação, é ingênuo pensar que todos os detentores do poder, após uma reflexão, lutarão junto aos dominados a fim de acabar com o sistema de dominação social. Desse modo, outra abordagem (uma mais realista) é fundamental. Para mim, o investimento que mais faz sentido e que mais traz resultados é a educação de qualidade. Não me refiro a educação de matemática ou física ou geografia, me refiro a uma visão mais ampla dela: sua democratização. Acredito profundamente no poder emancipador que vem a partir da democratização do acesso à educação e da informação de forma geral. Essa é uma luta que felizmente tem avançado consideravelmente nos últimos tempos, com entusiastas da educação. Ainda sim, ainda há muito o que ser feito. Essa deve ser uma luta de todos, não somente dos indivíduos inseridos no meio acadêmico. Esse é um setor multifacetado que necessita de investimentos pesados e abordagens versáteis, a fim de levar a todos uma educação crítica, transformadora, gratuita e de qualidade. Logicamente, a reestruturação do esqueleto social não é da noite para o dia, mas creio que, com o desenvolvimento de um caráter crítico no processo da aprendizagem, os princípios retrógrados, utilizados para a dominação de povos invizibilizados, sejam gradualmente descontruídos.
Por último, acredito também na força de uma militância prática, que efetivamente se ponha a dispor da sociedade a tirar dúvidas, debater e construir um conhecimento coletivo que emana do povo. Projetos sociais e de inclusão, nesse contexto, são notáveis pela sua eficácia e sua importância, tal qual o curso pré-vestibular Galt, idealizado por quatro estudantes da Universidade de Brasília, que é gratuito e atua no auxílio educacional e psicológico a jovens de baixa renda. Outro exemplo é o projeto clínico Cravinas, um projeto de extensão da Universidade de Brasília, que atua no auxílio jurídico e psicológico de mulheres, focadas em Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos. Nesse contexto, cabe também relembrar e celebrar a força da Universidade Pública que, com ensino de qualidade, projetos de extensão, desenvolvimento de pesquisas e muito mais, contribui, como demonstrado acima, na reestruturação social e na construção de um mundo mais justo.
Finalmente, concluo que, nesse momento de isolamento social, é quase um dever reconhecermos nossos privilégios e revermos nossos ideais, torcendo e lutando por aqueles que não tem as mesmas vantagens e possibilidades que nós. Como disse Francis Scott Key Fitzgerald, “Sempre que tiver vontade de criticar alguém, lembre-se de que nem todo mundo teve as oportunidades que você teve”. Novamente, uma reestruturação de uma ordem construída durante séculos não ocorre repentinamente, mas sim com projetos de curto, médio e longo prazo, com planejamento, com visão de coletividade e com aplicação de políticas públicas inovadoras e adaptáveis. No mais, reforço as recomendações da Organização Mundial da Saúde: fiquem em casa, respeitem a quarentena, lavem as mãos e permaneçam em segurança!
Respeitosamente,
Daniela Rocha.

Carta de Lucas Nascimento
 Brasília, 30 de março de 2020
Querida sociedade,
           
            Começo esta carta com os mais sinceros votos de saúde e esperança de tempos melhores para todos.
            Vivemos hoje tempos difíceis, um vírus, um simples organismo microscópico, que nem sabemos ainda ser vivo ou não, ao qual nunca nos demos o trabalho de nos preocupar, assola e aterroriza o mundo inteiro, causando dor, sofrimento e estragos financeiros e emocionais por onde passa.
            Vejo muitos, neste momento tão terrível, procurando encontrar culpados ou responsáveis para esta grande crise, mas devemos parar de encontrar indivíduos ou nações que sejam culpadas e começar a refletir qual é a nossa culpa nessa história toda. Se a culpa do surgimento da epidemia foi teoricamente a cultura de uma nação de se alimentar de animais exóticos, devemos nos questionar primeiro em de onde surgiu essa cultura? A grande fome como é chamada a grave crise enfrentada pela China entre 1958 e 1962 matou dezenas de milhões de pessoas de fome no país, as pessoas não tinham o que comer e passaram a se alimentar do que encontravam, podemos hoje responsabiliza-las por tentar sobreviver?
Devemos passar a nos perceber não mais como indivíduos isolados, mas como membros de uma sociedade viva, onde cada uma de nossas ações refletem não só em nós mesmos, mas também nos próximos, no mundo inteiro. Hábitos simples de higiene podem evitar do vírus se espalhar para outras pessoas, então como explicamos que um vírus saído da China conseguiu se espalhar por todo o mundo, matar milhões e destruir a economia de vários países? Não há respostas, não há o que fazer para mudar o que já aconteceu.
Vamos olhar para o futuro de agora em diante, lembrando sempre daqueles que partiram e desejando para que onde estiverem, estejam em um bom lugar, pois como disse o famoso personagem Alvo Dumbledore “Não tenha pena dos mortos, tenha pena dos vivos, e acima de tudo, daqueles que vivem sem amor” (ROWLING, J.K, Harry Potter e as relíquias da morte, 2007, p.525).
Nossa maior preocupação neste momento deve ser qual atitude devemos tomar, qual mudança devemos fazer para que essa situação melhore e as nossas vidas possam voltar a seguir. Lavem as mãos, usem álcool em gel, cuidem da saúde, melhorem a alimentação, cuidem da higiene e pensem sempre no próximo, parem de ter atitudes egoístas e percebam que tudo que fazemos afeta aos outros e nos afeta, direta ou indiretamente.
Passemos a olhar para o futuro com mais responsabilidade, vamos trilhar novos caminhos para que nossa sociedade evolua como um todo a partir dessa grave crise, que os exemplos de generosidade enxergados por todo o mundo se multipliquem para além dos momentos de crise e que passemos a nos preocupar com aqueles que necessitam de ajuda mesmo quando estamos com nossas vidas em ordem. Façamos da empatia um sentimento diário, um exercício de humanidade para o resto de nossas vidas, pois como já dito pelo filósofo Zygmunt Bauman “Não são as crises que mudam o mundo e sim nossa reação a elas”.
            Lavem as mãos e fiquem em casa.
            Muito atenciosamente,
Lucas N.
Carta de João Guilherme Bezerra da Silva Oliveira
Brasília, 27 de março de 2020
Caros colegas e professores,
A ideia de escrever uma carta me parece bem interessante no presente momento, uma vez que para escrever é necessário pensar, e para pensar é preciso refletir sobre a situação que vivemos, e não simplesmente aceitá-la e conviver com ela.
A maior lição que o coronavírus ensinou a todos foi a importância da solidariedade social entre as pessoas. Afinal, o que seria do mundo agora se todos que estão em casa agora tivessem ignorado as recomendações da OMS e quisessem continuar com suas vidas normalmente? O quadro clínico, que já não é favorável, com certeza estaria muito pior.
Por outro lado, creio que as seria um pouco idealista da minha parte falar sobre solidariedade sem mencionar o impacto que essa crise trouxe sobre alguns aspectos da nossa vida, como a economia e a atuação do Estado.
A questão econômica é preocupante, mas não por causa de afirmações absurdas como a de que Brasil vai quebrar se todo mundo ficar em casa, mas sim pelo fato de que nossa economia ser tão frágil ao ponto de termos que escolher entre vidas e crescimento econômico. Por um lado, devemos priorizar as vidas e evitar a todo custo sair de casa, mas por outro, vemos a insegurança de comerciantes e micro empresários, por que as grandes companhias podem facilmente aguentar um período sem funcionar e ainda pagar os salários aos trabalhadores, mas os pequenos negócios não tem esse luxo.
E é nesse ponto que eu quero dissertar sobre o papel do Estado nisso tudo. Porque afinal, do que adianta pagar impostos se quando a gente precisa, o governo não dá o amparo devido ao microempreendedor? Ao trabalhador? Até mesmo quem não paga impostos, como trabalhador informal, deveria ter ao menos uma garantia de que pode ficar em casa sem se preocupar se vai ter o que comer a noite. Que tipo de ideia estamos deixando para as crianças ao dizer que algumas mortes são inevitáveis, mas é melhor isso do que prejudicar a economia? É esse o país que queremos?
Quero deixar então essa minha última reflexão nessa carta: É muito fácil para algumas pessoas criticar alguns patrões sobre a decisão de querer que seus funcionários continuem trabalhando. Contudo,não podemos por todos eles no mesmo saco, porque enquanto realmente existem empresários que só se importam com o lucro, existem aqueles que precisam continuar funcionando para que não quebrem. Nesse caso, devemos adotar o conceito marxiano de justiça, que consiste em dar a cada um de acordo com a sua necessidade. O Estado deve então atuar para  oferecer uma ajuda para o trabalhador, de modo que o microempresário não corra o risco de quebrar e o trabalhador tenha sua renda garantida.
Considero essa carta como encerrada por aqui e agradeço pela oportunidade de expressar meus pensamentos de forma tão sucinta.

Atenciosamente,
João Guilherme Bezerra da Silva Oliveira

Carta de Saulo Henrique Dias Oliveira

Brasília, 14 de abril de 2020. 

Olá, caríssimos e caríssimas!
Desejo profundamente que estejam bem. Infelizmente, nosso último encontro presencial da disciplina de Pesquisa Jurídica foi há 34 dias e imagino que, assim como para mim, este processo de isolamento social não esteja sendo fácil para vocês. Sei que é bastante assustador não termos certeza de como as coisas ocorrerão daqui para frente, mas espero que logo tudo se estabilize e possamos nos reencontrar novamente. Hoje, estou a escrever-lhes a fim de trazer duas ideias para a reconstrução ética e social a partir da crise que estamos vivendo.
A primeira consiste em sempre buscar colocar os interesses coletivos acima dos individuais. Nesse sentido, dado o contexto atual, esta atitude mostrou-se mais necessária do que nunca. Isso pode ser exemplificado por um caso que eu imagino ser do conhecimento de todos vocês: o do esposo da primeira paciente diagnosticada com coronavírus no Distrito Federal, que devendo ficar recluso em sua residência e passar por exames para  a averiguação de contaminação pelo vírus, fez o contrário e, pensando somente em si mesmo, circulou pela cidade – podendo transmitir a covid-19 - até que uma decisão judicial o impediu com base no entendimento de que o direito individual de livre locomoção não se sobrepõe a uma questão de saúde pública, o que ratifica a importância dessa ideia de que o bem comum deve se sobrepor ao individual.
A segunda, por sua vez, corresponde ao aumento da empatia entre os membros do tecido social. Acerca disso, convém salientar que a predisposição do homem alienado de não se compadecer com as ânsias ou sofrimentos alheios - denominada pelo sociólogo Hebert Marcuse como “Mecânica do Conformismo” - era quase que regra na sociedade contemporânea. Contudo, a existência de um vírus que ceifa vidas, independente de classe, raça, sexo, cor ou idade, evidenciou a vulnerabilidade humana, fazendo com que parte dos indivíduos voltassem a possuir a capacidade de se colocar no lugar do outro e, por conseguinte, expandissem seus laços de solidariedade. Assim, vejo que, para uma reconstrução ética e social, é indispensável que este aumento continue a ocorrer também após término da crise causada pela covid-19, com o fito de que aliado à primeira ideia, possa tornar a sociedade mais coesa.
Enfim, meus queridos, torço para que minhas ideias possam levá-los a refletir um pouco, com o intuito de que ao fim desta pandemia estejamos melhores ética e socialmente. Cuidem-se e até junho... espero eu!

Grande abraço,
Saulo Dias.


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