Podemos identificar dois desfechos possíveis para a crise
constitucional desencadeada em 2016
Por Cristiano Paixão[1]
Artigo publicado no jornal online Jota, em 03/05/2018.
O presente artigo inicia uma série dedicada aos 30 anos da
Constituição de 1988. Entendemos ser relevante um esforço de reflexão acerca do
legado do texto constitucional e dos desafios que se colocam para a sua
vigência no futuro. Este espaço será compartilhado por professores e
pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa “Percursos, Narrativas,
Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (UnB – Programa de
Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição), por componentes do Centro de
Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e por pesquisadores convidados.
A Constituição está prestes a completar 30 anos de vigência
exatamente num contexto histórico em que o Brasil experimenta sua maior crise
constitucional desde 1988. É necessário, então, compreender as dimensões da
crise, as perspectivas para o futuro e as alternativas disponíveis.
O conceito de crise já perdeu muito de seu componente de
excepcionalidade. A gradativa normalização do conceito – fala-se a todo momento
em crise política, crise econômica, crise de valores, crise da civilização –
tem duas consequências: uma espécie de banalização da ideia de crise e uma
certa opacidade do conceito. Nem sempre é fácil separar o normal do
extraordinário; aumenta o uso da noção de “crise estrutural”, que por si só
desafia a excepcionalidade da situação de crise e permite antever que o mundo
político e institucional moderno contempla essa ideia desde suas primeiras
manifestações. Em outras palavras: viver sob o desenho institucional construído
a partir da modernidade significa estar sujeito a constantes crises. Uma delas
é a crise constitucional.
É natural – e até previsível – que as democracias
contemporâneas vivam, de tempos em tempos, situações de incerteza e
instabilidade. A princípio, as constituições são soluções para
as crises políticas – elas indicam o espaço de atuação dos poderes
constituídos, estabelecem limites e formas de controle entre poderes.
Entretanto, em determinadas circunstâncias, as crises políticas podem levar a
uma crise constitucional.
Isso ocorre quando se manifesta a ampliação do
espaço de deliberação disponível, com base na constituição então vigente,
aos atores e instituições da política e do direito. A crise política assume,
assim, uma dimensão constitucional. Ela inclui uma crise da função da
constituição, ou seja, a crise apresenta-se quando a constituição é colocada à
prova, e os procedimentos ordinariamente disponíveis para o enfrentamento de
impasses e discordâncias não são suficientes para resolver o impasse político.
Ao persistir a situação de conflito, novas possibilidades são cogitadas e
testadas por atores e instituições. Com isso, abre-se o risco de que a solução
proposta atinja o núcleo da constituição da comunidade política, a saber,
alguma das opções fundamentais contidas no documento constitucional.
A crise constitucional em que estamos inseridos, e que ficou
evidenciada cerca de dois anos atrás, ao tempo do procedimento de impeachment
da então presidente da República Dilma Rousseff,tem uma característica distintiva: ela é uma crise desconstituinte.
Desde 2016, algumas ações adotadas pela coalizão política que se formou para
viabilizar o impeachment e sustentar o governo Temer possuem um núcleo comum: a
deliberada desfiguração do quadro de direitos fundamentais que é o núcleo da
Constituição de 1988.
A promulgação da Emenda Constitucional nº 95, que fixa um teto para os gastos públicos, assim como a
aprovação da Lei nº 13.467/2013, a chamada “reforma trabalhista”, são exemplos concretos de um
movimento de reação contra a Constituição de 1988, pois subtraem, de forma
clara e direta, o direito das próximas gerações de deliberar sobre as
modalidades de gasto dos recursos públicos (inviabilizando a concretude de
direitos e garantias estipulados ao longo do texto constitucional), e
flexibilizam ao extremo o núcleo da proteção social ao trabalhador que a
Constituição de 1988 estabeleceu com inegável centralidade.
Podemos identificar, entre várias possibilidades, dois
desfechos possíveis para a crise constitucional desencadeada em 2016. O
primeiro deles é um gradativo esvaziamento da Constituição de 1988 que conduza
a um estado de obsolescência. Se os movimentos desconstituintes persistirem, e
novos ataques forem dirigidos ao núcleo do texto ora vigente, não mais será
possível restaurar um mínimo padrão de estabilidade institucional, e com isso a
história que se iniciou em 5 de outubro de 1988 terá chegado ao seu termo
final.
Esse desfecho, porém, não é inevitável e ainda não se
configurou.
Desde 1988, o Brasil enfrentou algumas crises políticas e
experimentou uma razoável alternância no comando do Poder Executivo federal. A
Constituição de 1988 esteve à altura desses desafios – ela forneceu o quadro
institucional que permitiu, nos anos de 1995-2002 (era FHC), a aprovação de
emendas constitucionais que modificaram elementos da economia e da
administração pública com o objetivo de implementar reformas liberalizantes e
que diminuíram a presença do Estado na economia e na vida social. No período
compreendido entre 2003 e 2014 (era Lula-Dilma), a Constituição absorveu as
modificações relacionadas a políticas sociais inclusivas, como a ampliação de
direitos sociais (EC nº 72) e a política de valorização do salário mínimo.
A Constituição de 1988 possui, portanto, um grau de abertura
suficiente para sustentar o equilíbrio institucional necessário a uma
democracia contemporânea. Não há, assim, um vício de origem no desenho
constitucional de 1988, que justifique a sua redefinição ou a substituição do
texto constitucional. Isso permite afirmar que um segundo desfecho para a atual
crise é possível e desejável. Ele envolve, antes de tudo, a retomada do
compromisso com o sistema de regras e princípios presente na Constituição em
vigor.
As constituições democráticas são marcadas por uma abertura
para o futuro. São documentos constitucionais que devem ser apropriados por
gerações que se sucedem na experiência histórica de uma comunidade política.
Essas gerações são responsáveis pela tarefa de conceder sentido e atualização a
determinados preceitos originais do texto. No caso brasileiro, em que a
Constituição de 1988 afirmou o processo de redemocratização após uma longa
ditadura, e no qual persistem índices alarmantes de desigualdade (que
aumentaram, aliás, na atual crise constitucional), dois daqueles preceitos
originais permanecem atuais: liberdade e igualdade. As gerações sucessivas
terão, contudo, uma tarefa adicional, que é a de restabelecer a ordem
constitucional abalada com a crise que foi desencadeada em 2016. Para isso,
será necessário contrapor uma resistência aos impulsos desconstituintes, sob a
forma de um movimento. Um movimento reconstituinte.
[1]
Professor da Faculdade de Direito da UnB. Procurador Regional do Trabalho em
Brasília. Foi Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio
Teixeira de Memória e Verdade da UnB (2012-2015) e Conselheiro da Comissão de
Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016).
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