Fabio
de Sa e Silva (*)
Encontrei-a,
junto com colegas, na saída do aeroporto. Veio de braços dados com um
brasileiro, negro, nascido na Bahia, que trabalha em San Diego, e que se
ofereceu para "escoltá-la" até a saída. Saudamos os dois. Falamos da
viagem e dos planos para o dia.
Chegou
a hora de sairmos. O brasileiro, tímido e visivelmente emocionado, pediu uma
foto. "É em memória da minha falecida mãe," disse. "Ela adorava
a senhora".
"Claro,
querido," ela concordou, abraçando-o.
Fui
no carro com ela e sua assessora, enquanto os seguranças e outros colegas iam
atrás. Em 30 minutos de conversa, ela me explicou a estrutura da indústria
naval mundial, a diferença entre os campos de petróleo de Oklahoma e Texas e do
Brasil, e as causas de abalos sísmicos na Costa e no centro dos EUA. Depois
perguntou o que eu estudava e me indicou um livro a respeito. Mais tarde me
mostraria as notas que fez do livro. "Ela fichou o livro," pensei
comigo.
Chegamos
ao hotel e ela disse que precisava subir ao quarto para fazer uma nebulização.
"Vocês vão me desculpar, mas se não fizer, vou perder minha voz".
Imaginei como estaria se, aos 70 anos, estivesse há mais de 10 dias viajando
entre dois continentes.
Uma
hora depois nos reencontramos para o almoço. Entre os vários assuntos, em geral
amenos, tivemos uma animada conversa sobre as diferenças dos sotaques no
Brasil. Ela foi explicando as variações de sotaques desde Minas em direção ao Nordeste
a partir de “Grandes Sertões: Veredas”. Uma fala que misturava profundo
conhecimento e amor pelo Brasil.
Encontrei-a
só bem mais tarde na preparação para a sua palestra. Trazia comigo meus filhos,
ambos felizes de conhecê-la. Conversaram, posaram pra fotos juntos; minhas
crianças entregaram presentes para os seus netos.
A
palestra começou forte e foi crescendo.
Voltei
a encontrá-la para um jantar com acadêmicos. Falamos de nossos trabalhos e
discutimos as perspectivas para o país.
Recebi,
dos anfitriões do evento, a difícil incumbência de chamar um brinde. Recorri a
uma citação de Saramago: "Dentro de cada um de nós existe uma coisa que
não tem nome: isso é o que somos". E agradeci à presidenta e a todos os
presentes por aquele dia, que ajudava a nos lembrar e reforçar o compromisso
com "aquilo que somos".
"Bonito
isso aí, viu?," ela comentou. Todos deram risada.
No
dia seguinte fui encontrá-la no almoço. Trouxe uma foto na qual queria a sua
assinatura. As crianças estavam comigo e volta e meia viravam o centro das
atenções dela. Para a Manuela, ela deu um recado direto: "Você pode ser
presidenta, viu?". Os assuntos variavam, mas já falamos de política com
bem mais desenvoltura.
A
certa altura, ela contou o caso de um político importante que estava programando
de recebê-la e apoiá-la às vésperas do "impeachment". Ela teria
telefonado a ele e dito: "Você não precisa fazer isso. Se você fizer, vai
perder gente na sua base. O seu mandato está começando e você precisa de apoio
pra fazer as coisas". "A gente tem sempre que olhar para o macro,
né?", ela esclareceu.
Interrompi
com o que eu mesmo antecipei, seria uma "pergunta difícil":
–
A senhora demonstrou várias vezes aqui nessa nossa conversa uma grande
capacidade de avaliação dos cenários. No entanto, sempre lhe acusam de ser
politicamente inábil...
–
"Ah, sou inábil, é?...," ela me cortou. "Querido, a gente tem
duas opções pra analisar o que aconteceu no meu impeachment. Ou se reconhece
que, a partir das eleições de 2014, o centro do Congresso foi pra direita e
ficou sob o comando do Eduardo Cunha, com quem eu jamais aceitaria negociar, ou
se diz, como alguns dizem, que a culpa é minha, que eu não tinha habilidade
política".
Eu
ia tentar retomar a pergunta, que no fundo era sobre a disjunção entre ética da
convicção e ética da responsabilidade e a ironia de que Dilma pudesse ser
condenada por agir conforme a primeira, no momento em que tanto se fala de
"nova política". Mas justo aí fomos interrompidos por chamadas
telefônicas de seguranças que, falando do aeroporto, anunciavam o cancelamento
do voo dela.
Cada
um de nós começou a buscar meios de resolver a questão. Uns faziam contato com
agências de viagem; outros falavam com a companhia; outros olhavam voos
disponíveis de outras companhias.
"Eu
vou resolver isso," ela falou. "Pega o meu computador". E
começou a procurar voos e traçar cenários. Como a hora passava rápido, sem que
uma solução aparecesse, ela decretou: "Vamos para o aeroporto e resolvemos
de lá".
Enquanto
ela guardava o computador e cada um recolhia seus pertences, eu não quis perder
a chance:
"Só
assina a minha foto, por favor, presidenta".
"Claro.
Vou fazer no padrão, ok? O padrão é assim, ó..." (e escreveu, com aquele
traço meticuloso, "Um abraço,
Dilma Rousseff").
Além
de ter sido Ministra por oito anos, Dilma disputou e venceu duas eleições e
governou o país por 5 anos, até que, há exatos dois, foi derrubada.
De
amigos e familiares, cansei de ouvir insultos a ela.
O
que encontrei foi uma figura bem mais complexa e interessante do que dizem os
estereótipos.
E,
em todo caso, uma figura da qual não me parece que o Brasil estava em condições
de abrir mão, se, de fato, quisesse se tornar um país grande
(*)
Professor Assistente de Estudos Internacionais e Professor Wick Cary de Estudos
Brasileiros, Universidade de Oklahoma
Nenhum comentário:
Postar um comentário