terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Entrevista concedida por José Geraldo de Sousa Junior – Professor da Faculdade de Direito e ex-Reitor da Universidade de Brasília. Coordenador do Projeto “O Direito Achado na Rua”

Fórum DPU – Escola Superior da Defensoria Pública da União
Por Giovanna Frisso

1. Quais os principais desafios institucionais, econômicos e sociais de acesso à justiça?

Tenho trabalhado fortemente na consideração desse tema e sobre ele registrei algumas re&exões que estão contidas em trabalhos em que participei da organização (Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Re&exões Teóricas e Práticas, Essere nel Mondo, edição E-Book, Santa Cruz do Sul/RS, 2016), A Cultura de Litígio e o Ensino Jurídico no Brasil, publicado na Revista Diálogos sobre Justiça, n. 3, 2014, Ministério da Justiça/Secretaria de Reforma do Judiciário, e Justiça e Direitos Humanos: Perspectivas para a Democratização da Justiça, Terra de Direitos/ Articulação Justiça e Direitos Humanos, Curitiba, 2015), sempre pensando um modo alargado de concepção do tema que leve em conta exatamente confrontar e superar esses obstáculos.
O pressuposto para tal é apostar na democratização da sociedade e da justiça, abrindo-as à crescente participação da cidadania de modo a reduzir as barreiras econômicas, institucionais e sociais por meio de reconhecimento de sujeitos coletivos e de protagonismos que desindividualizem as demandas, pela afirmação das dimensões políticas que ordenam os conflitos mais agudos em nossa sociedade. Esse é um modo para deslocar a questão dos entraves burocráticos que pedem medidas modernizadoras - novos códigos, mais agentes, novos procedimentos - quando a questão é o questionamento da Justiça a que se tem acesso e o modo democrático de ampliar esse acesso.

2. Em sua opinião, qual o impacto de critérios como celeridade e eficiência na noção de acesso à justiça? As conciliações extrajudiciais apresentam algum risco para o acesso à justiça do público alvo da DPU? Quais cuidados devem ser adotados pelo Defensor para mitigar possíveis riscos?

Em decorrência do que disse acima, a celeridade em si como uma resposta burocrática e modernizadora (Emenda 45) pode agravar a frustração em face das expectativas e das promessas de realização de justiça. Reduz o espaço de negociação, abrevia as possibilidades de ampla defesa e favorece os mais bem posicionados econômica e culturalmente.  Boaventura de Sousa Santos mostrou isso em seu ensaio sobre A Sociologia da Administração da Justiça demonstrando o quanto a redução de alçada favoreceu o uso do aparato para abreviar demandas de senhorios e de credores que já não precisaram construir mediações mais confortáveis para os seus devedores. A celeridade reduz o campo da escuta profunda que leva os defensores mais engajados na utopia da Justiça a perceber que o fundo de muitas petições materiais pode revelar causas com demandas de sentido subjetivamente urgente: oculta numa petição de divórcio pode estar uma situação de violência doméstica; por trás de um pedido de internação compulsória pode existir uma pretensão usurpadora de uma pensão ou de um benefício previdenciário; além do despejo forçado pode vislumbrar-se uma questão social ligada à demanda política pela moradia; um pedido liminar de reintegração de posse pode ser um limite ao embate constitucional sobre direito à educação. O defensor precisa estar atento a isso e considerar que o formalismo da cultura legalista de sua formação jurídica pode ser um obstáculo à realização de direitos fundamentais e, em última análise, de direitos humanos.
Aliás, foi o que afirmou o juiz Cançado Trindade (presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos) ao examinar procedimento em sede de direito convencional, constatando que o positivismo jurídico é o principal obstáculo à internalização de tratados e convenções nos estatutos jurídicos nacionais. Abordei essa questão, juntamente com meu colega co-autor Antonio Escrivão Filho no livro Para um Debate Teórico Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, Belo Horizonte, 2015).

3. Qual o potencial do processo de coletivização judicial para a garantia do acesso à justiça? Quais riscos este processo pode apresentar?

Já não se trata de potencial, mas de constatação de seu valor para a ampliação de acessos à Justiça se considerarmos as formas coletivas de abreviar esse acesso e de coletivizar as pretensões. Pense-se nas estratégias ampliadas de subjetivação ativa das ações de inconstitucionalidade, na formação de juízos de convencimento a partir da dinâmica de audiências públicas, de admissibilidade de terceiros não diretamente parte em causas (amicus curiae), nas gestões para construção de ajustes de conduta e outras modalidades de pactuação para constituir obrigações e responsabilidades mediadas pela estrutura administrativo-judicial. O risco é o da judicialização da política e do ativismo decisionista, não confundidos com a competência alargada de aplicação construtiva de soluções judiciais, situações que têm revelado uma indevida substituição de razões do mediador (juízes, cortes judiciais, órgãos do sistema de justiça e do ministério público) em lugar das disposições legítimas de entendimentos razoáveis construídos pela participação ativa de coletividades e sujeitos coletivos (mecanismos de consulta prévia e informada, expertises sociais etc).

4. Qual o potencial da DPU como instituição voltada para a garantia do acesso à justiça? Quais são os principais desafios a serem enfrentados pela DPU para a concretização deste potencial?

Não é por acaso que, nas mobilizações para a institucionalização de defensorias, o social organizado tenha sido um fator determinante para a sua criação. Pense-se, por exemplo, o caso da Defensoria de São Paulo para cuja institucionalização muito contribuiu a mobilização da sociedade civil. Por isso mesmo, em sua estrutura, é muito pertinente a atividade de sua Ouvidoria Externa, eleita, que traduz de alguma maneira o sentido de participação que nesse sistema o princípio democrático alcançou. Veja-se a esse respeito, a belíssima tese de doutoramento de Élida Lauris dos Santos, defendida em Coimbra, sob orientação de Boaventura de Sousa Santos (tive o privilégio de aprendizado ao participar da banca): “Acesso para quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece: dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas do acesso à justiça no Brasil e em Portugal. Coimbra: [s.n.], 2013”.

5. Em que medida a atuação junto a instituições internacionais pela DPU são relevantes para a garantia do acesso à justiça?

Num tempo de globalização e de internacionalização das lutas sociais e dos direitos humanos, não é apenas uma exigência de natureza interlocutora ou de intercâmbio, para trocas de conhecimentos e de experiências, é um requisito de desempenho porque a salvaguarda dos direitos segue o princípio do jus cogens e caminha para a consolidação do reconhecimento da jurisdição universal relativamente a direitos da humanidade. A DPU precisa se instalar no âmbito dessa jurisdição porque nesse campo é inevitável prosseguir a defesa de direitos nas cortes internacionais. Por isso, o desafio político de estar sempre reavaliando a sua função social e política e ao mesmo tempo atualizando criticamente os pressupostos de sua cultura epistemológica de formação jurídica, algo que não se esgota com a diplomação acadêmico-universitária.

6. Como, em sua visão, se relacionam o processo de judicialização das relações sociais e a garantia do acesso à justiça?

Prosseguindo com o raciocínio iniciado na resposta à questão anterior, eu diria ser necessário aprofundar a exigência dupla de contínua revisão crítica da função político-social do operador judicial (em seus programas de reciclagem, congressos, seminários, enfim, nos lugares em que a reflexão sobre essa condição possa ser escrutinada em debates e definições temporárias); e de revisão dos paradigmas da cultura jurídica. Um exemplo para ilustrar: em seu discurso de posse na Presidência do STF (2015), chamou a minha atenção a parte em que o Ministro Lewandovski apontava como uma ação de seu mandato qualificar o magistrado em tema candente no qual constatava grande fragilidade. Disse ele: “...preciso, também que os nossos magistrados tenham uma interlocução maior com os organismos internacionais, como a ONU e a OEA, por exemplo, especialmente com os tribunais supranacionais quanto à aplicação dos tratados de proteção dos direitos fundamentais, inclusive com a observância da jurisprudência dessas cortes”. A constatação do Ministro não se restringe à limitação que é intelectual e funcional dos magistrados. Ela é generalizável entre os operadores do sistema de justiça. E ela revela uma lacuna de qualidade na atuação desses operadores. Uma lacuna que é um tremendo obstáculo à própria realização da Justiça.
De fato, uma pesquisa conduzida pelas ONGs Terra de Direitos e Dignitatis Assessoria Técnica Popular (2012), coordenada pelo professor José Antonio P. Gediel, da UFPR, revela que “40% dos juízes (entrevistados pela pesquisa) nunca estudaram direitos humanos, e apenas 16% sabem como funcionam os sistemas de proteção internacional dos direitos humanos da ONU e OEA [...]”.

7. Em sua opinião, como deveria se dar a atuação da DPU junto aos carentes organizacionais (hipossuficientes jurídicos)? Algum grupo mereceria especial destaque?

Penso ter antecipado nas respostas precedentes indicações que dão conta de responder à questão aqui posta. Complemento tendo como base algumas das considerações que fiz, juntamente com meus colegas de pesquisa da UnB e da UFRJ, para o projeto desenvolvido por encomenda (Edital 15/2009 - Projeto Pensando o Direito) da Secretaria de Assuntos Legislativos, do Ministério da Justiça: “Observar a Justiça: Pressupostos para a Criação de um Observatório da Justiça Brasileira”. Trata-se de incluir “a dimensão societal na análise e no acompanhamento da Justiça (o que) implica dialogar com atores que muitas vezes não são reconhecidos em suas identidades (ainda não constituídos plenamente como seres humanos e cidadãos) e que buscam construir a sua cidadania por meio de um protagonismo que procura o direito no social, em um processo que antecede e sucede o procedimento legislativo e no qual, o Direito, que não se contêm apenas no espaço estatal e dos códigos, é efetivamente achado na rua”. A DPU tem que se organizar para esse diálogo, numa posição de alteridade, sem hierarquias, desvestindo-se dos símbolos de autoridade localizada, no Estado ou em seus cargos, mas que seja compartilhada enquanto construção de sentido, em consideração a uma Justiça que se abra às expectativas solidárias e emancipatórias vivenciadas legitimamente no social.


Fonte: Publicação da Escola Superior da Defensoria Pública da União V. 3 No 11, 2017. 

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