Fórum DPU – Escola Superior da
Defensoria Pública da União
Por Giovanna Frisso
1. Quais os principais desafios institucionais, econômicos e sociais de
acesso à justiça?
Tenho trabalhado fortemente na
consideração desse tema e sobre ele registrei algumas re&exões que estão
contidas em trabalhos em que participei da organização (Experiências
Compartilhadas de Acesso à Justiça: Re&exões Teóricas e Práticas, Essere
nel Mondo, edição E-Book, Santa Cruz do Sul/RS, 2016), A Cultura de Litígio e o
Ensino Jurídico no Brasil, publicado na Revista Diálogos sobre Justiça, n. 3,
2014, Ministério da Justiça/Secretaria de Reforma do Judiciário, e Justiça e
Direitos Humanos: Perspectivas para a Democratização da Justiça, Terra de
Direitos/ Articulação Justiça e Direitos Humanos, Curitiba, 2015), sempre
pensando um modo alargado de concepção do tema que leve em conta exatamente
confrontar e superar esses obstáculos.
O pressuposto para tal é apostar
na democratização da sociedade e da justiça, abrindo-as à crescente participação
da cidadania de modo a reduzir as barreiras econômicas, institucionais e
sociais por meio de reconhecimento de sujeitos coletivos e de protagonismos que
desindividualizem as demandas, pela afirmação das dimensões políticas que
ordenam os conflitos mais agudos em nossa sociedade. Esse é um modo para
deslocar a questão dos entraves burocráticos que pedem medidas modernizadoras -
novos códigos, mais agentes, novos procedimentos - quando a questão é o
questionamento da Justiça a que se tem acesso e o modo democrático de ampliar
esse acesso.
2. Em sua opinião, qual o impacto de critérios como celeridade e eficiência
na noção de acesso à justiça? As conciliações extrajudiciais apresentam algum
risco para o acesso à justiça do público alvo da DPU? Quais cuidados devem ser
adotados pelo Defensor para mitigar possíveis riscos?
Em decorrência do que disse acima, a
celeridade em si como uma resposta burocrática e modernizadora (Emenda 45) pode
agravar a frustração em face das expectativas e das promessas de realização de
justiça. Reduz o espaço de negociação, abrevia as possibilidades de ampla
defesa e favorece os mais bem posicionados econômica e culturalmente. Boaventura de Sousa Santos mostrou isso em seu
ensaio sobre A Sociologia da Administração da Justiça demonstrando o quanto a
redução de alçada favoreceu o uso do aparato para abreviar demandas de
senhorios e de credores que já não precisaram construir mediações mais
confortáveis para os seus devedores. A celeridade reduz o campo da escuta
profunda que leva os defensores mais engajados na utopia da Justiça a perceber
que o fundo de muitas petições materiais pode revelar causas com demandas de
sentido subjetivamente urgente: oculta numa petição de divórcio pode estar uma
situação de violência doméstica; por trás de um pedido de internação
compulsória pode existir uma pretensão usurpadora de uma pensão ou de um
benefício previdenciário; além do despejo forçado pode vislumbrar-se uma
questão social ligada à demanda política pela moradia; um pedido liminar de reintegração
de posse pode ser um limite ao embate constitucional sobre direito à educação.
O defensor precisa estar atento a isso e considerar que o formalismo da cultura
legalista de sua formação jurídica pode ser um obstáculo à realização de
direitos fundamentais e, em última análise, de direitos humanos.
Aliás, foi o que afirmou o juiz
Cançado Trindade (presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos) ao
examinar procedimento em sede de direito convencional, constatando que o
positivismo jurídico é o principal obstáculo à internalização de tratados e
convenções nos estatutos jurídicos nacionais. Abordei essa questão, juntamente
com meu colega co-autor Antonio Escrivão Filho no livro Para um Debate Teórico Conceitual
e Político sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, Belo Horizonte, 2015).
3. Qual o potencial do processo de coletivização judicial para a
garantia do acesso à justiça? Quais riscos este processo pode apresentar?
Já não se trata de potencial, mas
de constatação de seu valor para a ampliação de acessos à Justiça se
considerarmos as formas coletivas de abreviar esse acesso e de coletivizar as
pretensões. Pense-se nas estratégias ampliadas de subjetivação ativa das ações
de inconstitucionalidade, na formação de juízos de convencimento a partir da
dinâmica de audiências públicas, de admissibilidade de terceiros não
diretamente parte em causas (amicus
curiae), nas gestões para construção de ajustes de conduta e outras
modalidades de pactuação para constituir obrigações e responsabilidades
mediadas pela estrutura administrativo-judicial. O risco é o da judicialização
da política e do ativismo decisionista, não confundidos com a competência
alargada de aplicação construtiva de soluções judiciais, situações que têm
revelado uma indevida substituição de razões do mediador (juízes, cortes
judiciais, órgãos do sistema de justiça e do ministério público) em lugar das
disposições legítimas de entendimentos razoáveis construídos pela participação
ativa de coletividades e sujeitos coletivos (mecanismos de consulta prévia e
informada, expertises sociais etc).
4. Qual o potencial da DPU como instituição voltada para a garantia do
acesso à justiça? Quais são os principais desafios a serem enfrentados pela DPU
para a concretização deste potencial?
Não é por acaso que, nas
mobilizações para a institucionalização de defensorias, o social organizado
tenha sido um fator determinante para a sua criação. Pense-se, por exemplo, o
caso da Defensoria de São Paulo para cuja institucionalização muito contribuiu
a mobilização da sociedade civil. Por isso mesmo, em sua estrutura, é muito
pertinente a atividade de sua Ouvidoria Externa, eleita, que traduz de alguma
maneira o sentido de participação que nesse sistema o princípio democrático
alcançou. Veja-se a esse respeito, a belíssima tese de doutoramento de Élida
Lauris dos Santos, defendida em Coimbra, sob orientação de Boaventura de Sousa
Santos (tive o privilégio de aprendizado ao participar da banca): “Acesso para
quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece: dinâmicas de
colonialidade e narra(alterna-)tivas do acesso à justiça no Brasil e em
Portugal. Coimbra: [s.n.], 2013”.
5. Em que medida a atuação junto a instituições internacionais pela DPU
são relevantes para a garantia do acesso à justiça?
Num tempo de globalização e de
internacionalização das lutas sociais e dos direitos humanos, não é apenas uma
exigência de natureza interlocutora ou de intercâmbio, para trocas de
conhecimentos e de experiências, é um requisito de desempenho porque a salvaguarda
dos direitos segue o princípio do jus
cogens e caminha para a consolidação do reconhecimento da jurisdição
universal relativamente a direitos da humanidade. A DPU precisa se instalar no
âmbito dessa jurisdição porque nesse campo é inevitável prosseguir a defesa de
direitos nas cortes internacionais. Por isso, o desafio político de estar
sempre reavaliando a sua função social e política e ao mesmo tempo atualizando
criticamente os pressupostos de sua cultura epistemológica de formação jurídica,
algo que não se esgota com a diplomação acadêmico-universitária.
6. Como, em sua visão, se relacionam o processo de judicialização das
relações sociais e a garantia do acesso à justiça?
Prosseguindo com o raciocínio iniciado na
resposta à questão anterior, eu diria ser necessário aprofundar a exigência
dupla de contínua revisão crítica da função político-social do operador
judicial (em seus programas de reciclagem, congressos, seminários, enfim, nos
lugares em que a reflexão sobre essa condição possa ser escrutinada em debates
e definições temporárias); e de revisão dos paradigmas da cultura jurídica. Um
exemplo para ilustrar: em seu discurso de posse na Presidência do STF (2015),
chamou a minha atenção a parte em que o Ministro Lewandovski apontava como uma
ação de seu mandato qualificar o magistrado em tema candente no qual constatava
grande fragilidade. Disse ele: “...preciso, também que os nossos magistrados
tenham uma interlocução maior com os organismos internacionais, como a ONU e a
OEA, por exemplo, especialmente com os tribunais supranacionais quanto à
aplicação dos tratados de proteção dos direitos fundamentais, inclusive com a
observância da jurisprudência dessas cortes”. A constatação do Ministro não se
restringe à limitação que é intelectual e funcional dos magistrados. Ela é
generalizável entre os operadores do sistema de justiça. E ela revela uma
lacuna de qualidade na atuação desses operadores. Uma lacuna que é um tremendo
obstáculo à própria realização da Justiça.
De fato, uma pesquisa conduzida
pelas ONGs Terra de Direitos e Dignitatis Assessoria Técnica Popular (2012),
coordenada pelo professor José Antonio P. Gediel, da UFPR, revela que “40% dos
juízes (entrevistados pela pesquisa) nunca estudaram direitos humanos, e apenas
16% sabem como funcionam os sistemas de proteção internacional dos direitos
humanos da ONU e OEA [...]”.
7. Em sua opinião, como deveria se dar a atuação da DPU junto aos carentes
organizacionais (hipossuficientes jurídicos)? Algum grupo mereceria especial
destaque?
Penso ter antecipado nas
respostas precedentes indicações que dão conta de responder à questão aqui
posta. Complemento tendo como base algumas das considerações que fiz,
juntamente com meus colegas de pesquisa da UnB e da UFRJ, para o projeto
desenvolvido por encomenda (Edital 15/2009 - Projeto Pensando o Direito) da
Secretaria de Assuntos Legislativos, do Ministério da Justiça: “Observar a
Justiça: Pressupostos para a Criação de um Observatório da Justiça Brasileira”.
Trata-se de incluir “a dimensão societal na análise e no acompanhamento da
Justiça (o que) implica dialogar com atores que muitas vezes não são
reconhecidos em suas identidades (ainda não constituídos plenamente como seres
humanos e cidadãos) e que buscam construir a sua cidadania por meio de um protagonismo
que procura o direito no social, em um processo que antecede e sucede o
procedimento legislativo e no qual, o Direito, que não se contêm apenas no
espaço estatal e dos códigos, é efetivamente achado na rua”. A DPU tem que se
organizar para esse diálogo, numa posição de alteridade, sem hierarquias,
desvestindo-se dos símbolos de autoridade localizada, no Estado ou em seus
cargos, mas que seja compartilhada enquanto construção de sentido, em
consideração a uma Justiça que se abra às expectativas solidárias e
emancipatórias vivenciadas legitimamente no social.
Fonte: Publicação da Escola
Superior da Defensoria Pública da União V. 3 No 11, 2017.
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