quinta-feira, 18 de julho de 2013

A HISTÓRICA OCUPAÇÃO DA CÂMARA DE VEREADORES DE PORTO ALEGRE*



José Carlos Moreira da Silva Filho
Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC/RS


Para quem não se lembra, a onda de manifestações que se espalhou pelo Brasil teve início com a consistente mobilização do Bloco de Lutas pelo Transporte Público da cidade de Porto Alegre, impedindo que a Prefeitura realizasse o aumento da tarifa.
É bom também lembrar que desde o início houve a tentativa de rotular genericamente as ações do Movimento como coisa de vândalos e baderneiros, de gente violenta e intolerante.
Passado o histórico mês de junho de 2013 e antecipando a Greve Geral que parou o país no dia 11 de julho do mesmo ano, os jovens do Bloco de Lutas ocuparam a Câmara de Vereadores de Porto Alegre, convidaram os vereadores a se sentarem no chão junto com eles e começaram a questioná-los sobre o porquê da inoperância daquela casa na busca da transparência sobre os custos do transporte público e na luta pelo passe livre para estudantes, idosos e desempregados.
Desde então, o Bloco de Lutas tem dado um magnífico exemplo de cidadania e exercício democrático. Contrariando o desconforto de vereadores que veem no povo apenas um partícipe amorfo que comparece às urnas de 4 em 4 anos e nada mais, jovens com dreadlocks, violões, bumbos, berimbaus, sacolas ecológicas, gorros e tocas de lã, além de jaquetas e camisetas coloridas, e muita vontade e disposição de debater com profundidade temas centrais para grande parte da população - como direitos humanos, saúde, educação, cultura, trabalho, democratização da mídia, liberdade religiosa, homofobia, segurança pública, e, é claro, transporte público - ocuparam o Plenário da assim chamada "Casa do Povo" e deram novo alento a uma política viciada em trocas, compadrios e predomínio de interesses empresariais em detrimento dos interesses populares.
O que acontece na Câmara de Vereadores de Porto Alegre é algo inédito cercado de simbolismos valiosos. De maneira ordeira, solidária, sem preconceitos, esses jovens se organizaram em diferentes Grupos de Trabalho e promoveram na Câmara no último final de semana um riquíssimo seminário focado na elaboração de dois projetos de lei, um pelo passe livre e outro pela transparência das contas.
Com o apoio dos vereadores simpáticos às lutas populares e respeitosos no diálogo com a sociedade civil organizada, exercitaram uma mídia alternativa, com transmissão das atividades em tempo real, oferecendo várias coletivas de imprensa aos veículos tradicionais; questionaram as divisões de gênero e a homofobia no modo como organizaram os banheiros e sua limpeza; questionaram a existência de símbolos religiosos em um ambiente público de um Estado laico; questionaram a produção de alimentos com produtos químicos e o monopólio de grandes empresas alimentícias consumindo, durante a ocupação,  alimentos orgânicos e oriundos da produção de pequenos agricultores; deram aulas de negociação e resistência aos estupefatos vereadores ligados à Presidência da Casa, que demonstraram, por sua vez, total despreparo para lidar com o povo organizado e grande receio em vê-los de tão perto; constituíram um grupo de segurança para evitar depredações e ações violentas praticadas por agentes infiltrados que querem desmoralizar o movimento; e, por fim, criaram o cenário para a produção de um valioso precedente judicial.
Ao contrário do que desgraçadamente ocorreu, por exemplo,  na repressão da Brigada Militar gaúcha ao assentamento do MST em São Gabriel e na ação da Polícia Militar de São Paulo em Pinheirinho, um juiz, no caso a juíza gaúcha Cristina Luisa Marquesan da Silva, teve a sensibilidade de perceber que em uma democracia de alta intensidade, os órgãos do Estado não podem tratar os movimentos sociais como criminosos, mas sim como cidadãos que exercem o seu legítimo direito de participação e de resistência a políticas e normas opressivas. Daí que após a visita do Oficial de Justiça relatando o caráter pacífico, organizado e produtivo da ocupação, a juíza argumentou que não se justificava a repressão para operar a reintegração de posse e marcou uma audiência de Conciliação.
O que ocorre em Porto Alegre evidencia que a receita básica a ser buscada para a crise política é o diálogo e a abertura dos partidos, sindicatos e autoridades políticas tradicionais aos movimentos sociais, naturalmente mais horizontais, espontâneos e sintonizados com as reais demandas da sociedade em seus mais diferentes setores.
Por fim, é possível sentir e perceber nesses jovens a herança militante, corajosa e consciente daqueles outros jovens que lutaram e tombaram diante da ditadura civil-militar ocorrida no Brasil de 1964 a 1988. Parabéns ao Bloco de Lutas pelo seu exemplo!

* Uma versão reduzida foi publicada no Jornal Zero Hora (Porto Alegre) de hoje (18/07/2013).

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