Solta tua obra... democratiza... solidariza... torna-tes feminino...
Conheci Roberto Lyra Filho pela obra O que é Direito, da Coleção Primeiros Passos, nos primeiros anos da faculdade, instigada pela capa que trazia a imagem de dois trabalhadores retirando a cinza estátua da Deusa Themis e deixando brilhar o sol que estava por detrás dela.
Pura curiosidade...
Porque a faculdade, no espaço formal do ensino nem o tinha como referência, nem como alvo de crítica. Fora do caixote que eram as salas de aula do Direito para mim àquela época (que pude, eu mesma, reinventar como professora anos depois), as idéias de Lyra Filho tomavam forma. Foi na extensão universitária, no seio e no ventre do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular – NAJUP Negro Cosme, grupo de pesquisa e extensão maranhense que ainda hoje atua, que um bate papo amoroso iniciou-se.
Depois dessas primeiras “conversas”, danei-me a abrir caminhos à foice para outras leituras fora do Direito (visto que não as tínhamos previstas naquele curso na Universidade Federal do Maranhão). A idéia era entender mesmo o que Lyra queria dizer com todas aquelas conexões feitas com Marxismo, Movimentos Sociais, Direito e Ideologia. Ler Gramsci e Paulo Freire seria de importância fundamental neste momento, pelo amor de ambos pela luta popular e necessidade de democratizá-la mais e mais. Depois, os caminhos da militância na extensão e o diálogo dentro da Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária – RENAJU, e posteriormente como advogada popular, levaram-me a existenciar o Direito construído na luta das ruas e florestas, ou usando as palavras de Lyra, me levaram a dar cores, nomes e lutas ao “Direito Achado na Rua”.
Até que houve o momento sentido de voltar à academia, “sentar o juízo”, como o povo nordestino fala gostosamente, e de chegar à Universidade de Brasília. Não porque a concebesse como espaço de produção de excelência de conhecimento e com isso concordasse, de modo a reforçar, dentro do próprio Brasil a versão acadêmica de necessária separação capitalista e masculina entre produção-reprodução da vida. O que me movia era utilizar esse espaço como empoderamento, diante dessa (im)posta divisão na produção-reprodução do saber, e me munir desse discurso de competência para subvertê-lo e dizer, à própria voz, que uma mulher situada entre o Norte e o Nordeste também poderia produzir conhecimento sobre si mesma e sobre sua gente silenciada pela fome, pelo patriarcado, pelo racismo e pelo clientelismo.
E na UNB reencontrei Lyra Filho. Na primeira semana de aula, como aluna especial do mestrado, na disciplina Direito Achado na Rua, hoje dirigida pelo prof. Alexandre Bernadino Costa, tive nas mãos a mesma capa. O mesmo livrinho. Os trabalhadores descendo a estátua e o sol surgindo.
Em seguida, foi só o descortinar e o vislumbre do tanto de penumbra que ainda há porque a obra continua escondida em gavetas. Entre os anos que se passaram estive tanto com Lyra Filho e não sabia. Não imaginava o quão vasta era sua obra e o quanto através dela, em um telefone sem fio imaginário, Lyra comunicava-se com as autoras feministas que me instigavam a procurar perguntas e respostas segundo outro prisma, outro ethos, ou como a Academia nomina, segundo outro paradigma.
Até esta semana, acreditava, pela minha própria experiência, que Lyra Filho, dentro da Academia, sofria “somente” com o mesmo processo de “esquecimento” que sofrem as mulheres que constroem a história, quer com suas experiências, quer com produção teórica, quer com as duas, em plena comunicação.
A estratégia de silenciamento é simples: não se fala sobre elxs, não escrevemos sobre elxs, não lemos suas obras, não as indicamos e é como se nunca tivessem existido, ou, quando falamos, carregamos a fala com tantas piadas depreciativas, estigmatizamos tanto, que sua utilização carece de legitimidade. Assim, fazendo uso de alguns exemplos, as autoras feministas não são “científicas” porque parciais ao falar de sua própria condição feminina, as feministas são mulheres mal-amadas ou vadias e carecedoras de respeito e o Direito Achado na Rua é chamado de “Direito Jogado no Lixo”.
Então a obrigação que se coloca é a de escrever, certo? Lê-lxs e reinventá-lxs, dialogar com elxs, contrapô-lxs, jogar as letras dos livros no chão e misturá-las com a terra, com a luta, com o sexo, com a emoção, com a rua.
Sim.
Mas não só.
Nesse ponto se coloca o segundo desafio, que tenho desvelado na partilha construída no grupo de Dialógos Lyrianos e com que me deparei com mais força nessa semana. Não é unicamente a luta contra os conservadores e reacionários que se coloca. A obra de Lyra encontra-se espalhada, guardada, em gavetas por seus próprios pares e trancada por direitos sucessórios.
Lyra Filho trancado? Pelo direito posto? Que contradição maior que essa? O Direito Achado na Rua trancado na gaiola de uma lei que é um dos símbolos do próprio capitalismo: a sucessão. E a outra mão? Lyra Filho guardado nas gavetas por seus/suas próprixs companheirxs de luta, restrito a pequenos círculos, a algumas pastas de computador, quando deveria estar sendo amplamente divulgado e solidarizado, para que se oportunize ao curso de Direito que ele deixe de fazer parte da vanguarda e ajude a refundar um senso comum jurídico sobre bases anticapitalistas.
Mas o mais importante nesse processo de descobertas e reflexões foi a forma como elas vem se dando. A busca pela solidariedade de forma solidária. O caminho se constrói nessa mesma perspectiva. Segundo aquele ethos que coloquei acima. Essas descobertas, inclusive a de que Lyra está sepultado na cidade de Curitiba-Paraná, e as reflexões decorrentes dos fatos acerca de sua obra, somente foram possíveis porque partilhadas, solidarizadas, por companheirxs que poderiam guardar a informação e se orgulhar de as terem guardadas, com sentimento de posse sobre elas, mas não.
Diego Diehl, Luiz Otávio Ribas e Ricardo Pazzelo, companheiros conquistados no amor e na luta, com a informação em mãos e o contato com uma amiga de Lyra Filho, a profa. Eloette, que foi uma das três pessoas que acompanharam o sepultamento, resolveram partilhar o re-descobrimento do corpo de Lyra e divulgá-lo com tantxs quanto possível fosse. E reuniram o grupo mais diverso de ateus, agnósticxs, cristãos e cristãs, pessoas que tem visões diversas sobre a vida e a morte. Aquela visita ao cemitério fez-se símbolo, mais um marco de compromisso com a redescoberta e a luta por um outro Direito que sirva estrategicamente como mais uma trincheira para a mudança da sociedade.
Assim fomos eu, Humberto “Betinho” Góes, Carolina Vestena e Tchenna Maso em companhia de Luiz e Ricardo em corpo e Diego e toda uma série de companheirxs de luta da RENAJU e de outros espaços em alma. Ali, conosco, sempre juntxs.
Todos esses sentimentos, de partilha, de solidariedade, de emotividade, de quebra das vanguardas e construção de um novo senso comum, de abertura, são, para mim, também os símbolos da luta feminista e de um paradigma que questiona os pares dicotômicos e um dito racionalismo que ter servido historicamente a recortar os seres e hierarquizá-los, a partir do que normaliza como o “fraco”, relacionando-o, principalmente ao estigmatizado como feminino como o “sensível”, o “emotivo”, o “sexual”, o “corpo”.
Para mim, e acredito que para as minhas companheiras e companheiros lá presentes e xs que estavam lá em alma, as leis baseadas nessas idéias não são Direito.
Foto de Humberto Góes |
Compreendendo todas essas conexões e diante da necessidade de usar outras linguagens na homenagem à Lyra Filho, a beira de seu túmulo, simbolicamente fortalecendo meus laços com uma luta que se constrói junto, li uma versão da Poética, que se segue, com voz trêmula e embargada, para Lyra, para xs companheirxs, para o povo, para as mulheres, para um mundo mais amoroso e mais feminista.
Pela necessária abertura da obra de Lyra, pela sua partilha, pela sua feminilização.
por Diana Melo
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