Carta do Pontão - 40 anos da Ocupação da Fazenda Annoni
Por Julia, Talita, Tuco e Glad
Querido Zé,
Escrevemos essa carta para compartilharmos com o senhor, nosso mestre em tantas dimensões, a experiência que tivemos junto ao Movimento dos/as Trabalhadores/as Sem Terra - MST, no Assentamento 16 de março, em Pontão, no Rio Grande do Sul, nos dias 24 e 25 de outubro de 2025, por ocasião dos 40 anos da histórica ocupação da Fazenda Annoni.
Foto 1 - Arte elaborada para a comemoração dos 40 anos do MST e da Ocupação da Fazenda Anonni 1985-2025
Foto: arquivo pessoal
Chegamos em Passo Fundo no dia 24, pela manhã, após percorremos quase 2 mil quilômetros nos deslocando do Planalto Central até o Assentamento 16 de março.
Talita já desenrolou o carro que ela mesma tinha alugado. O Glad, ‘na pira’ de chegar o quanto antes no assentamento, nos estimulou a irmos direto pra lá - o hotel poderia esperar! O Tuco logo se apressou, mas não conseguiu ligar o carro (manual… sabe como é). Talita assumiu o volante. Iara deu as coordenadas até o assentamento. Julia, escolheu a música. Seguimos viagem.
Ao som de “trap rural” e escolhendo sempre o caminho à esquerda, dirigimos atravessando os campos e admirando o sucesso da reforma agrária.
Em dado momento, nós percebemos (sejamos francos, a Talita percebeu) que estávamos perdidos - e não só nos perdemos como também induzimos nossos colegas do Instituto Federal do Rio Grande do Sul e um ônibus com companheiros do Movimento a se perderem conosco.
Na intenção de retomar o rumo e chegar a tempo da mística, paramos um companheiro em sua moto que, muito pedagogicamente, nos explicou que bastava seguir os caminhos maiores.
Quando chegamos, nos deparamos com um galpão enorme, cheio de gente que chegava das mais diferentes localidades. No estacionamento, contamos dezessete ônibus. E o povo não parava de chegar. As autoridades e seus discursos estavam no palco, mas ficaram em segundo plano, de tão intenso que era o ambiente de celebração em torno das mesas.
Mas o palco tinha uma razão de ser: foram anunciadas diversas medidas, incluindo a criação do Distrito da Reforma Agrária na região do assentamento, a abertura de linhas de crédito específicas para as mulheres e outras ações que nem mesmo a Talita foi capaz de apreender, anotar e relatar aqui, tamanho fervor do espaço.
Ao redor, um ambiente de celebração organizado em mesas que estrategicamente estavam dispostas para facilitar um almoço coletivo que ocorreu na sequência. Um almoço coletivo e gratuito, de cerca de 1.000 pessoas!
Como o senhor sabe, a alimentação está na base e na natureza do movimento. A reforma agrária popular que o MST defende é bem anunciada no lema “Terra, Teto e Pão”. Expressão disso, na história recente, foi o movimento das Cozinhas Solidárias no período da pandemia, em todo o país. O movimento se faz presente e solidário para toda a sociedade brasileira nos momentos mais críticos de sua história. Foi assim na pandemia e também foi assim na tragédia das enchentes que assolaram o Sul do país em 2024.
Nos somamos aos nossos companheiros e companheiras, nos servindo com o almoço (momento em que percebemos que tínhamos esquecido o tradicional kit que todo militante deve carregar consigo - prato, copo, talher - mas que pudemos contar com a solidariedade de amigos/as que nos emprestaram os necessários utensílios). E, devidamente alimentados, seguimos para outra área, na qual foram realizadas as demais atividades e, inclusive, a Feira Estadual da Reforma Agrária Popular.
Imagem do Cartaz dos 40 anos da Ocupação da Fazenda Annoni
Professor, ficamos admirados com a diversidade e a qualidade dos produtos da companheirada assentada!
As Feiras são um momento de exposição, doação e venda de produtos, e também um espaço-momento de diálogo e aprendizado. Experimentamos de tudo um pouco: Glad se lançou em um sorvete de erva-mate com bergamota (disse que estava uma delícia) e se escondeu para comer um sanduíche de linguiça prensado; Júlia, Talita e Tuco tomaram vários cafezinhos (diz a lenda que eles foram os responsáveis pela finalização do estoque).
A tarde foi iniciada com uma belíssima e emocionante homenagem à Sueli Bellato. A organização resgatou a história e a militância dessa advogada, intelectual e militante que foi ali considerada a primeira advogada das famílias acampadas e depois assentadas na Fazenda Annoni.
Sentada diante dos professores, Júlia se surpreendia a cada novo episódio da trajetória de Sueli que vinha à tona. Sindicato de camponeses no Nordeste, ocupação da fazenda Annoni, Chico Mendes, Comissão da Anistia, Mestrado na UnB… Era tanta história que, ao mesmo tempo em que crescia a admiração por essa mulher que conhecia pouco, também vinha a surpresa de não ter sido situada pelos orientadores (e aqui incluo o senhor, querido Zé) sobre a magnitude dessa Advogada Popular. Talvez seja essa a potência dos espaços do Movimento: nos ensinam coisas que não sabíamos que tínhamos que aprender e perceber o que sempre esteve ali, mas só se revela quando somos instigados a olhar com atenção.
Também Jacques Alfonsin foi homenageado como advogado parceiro das famílias e de Sueli na causa, embora não estivesse presente. Tivemos a oportunidade de ler o texto que ele circulou posteriormente ao evento, no qual comparou os cinco fios de arame de uma cerca, com os desafios que o movimento enfrentou - e ainda enfrenta:
Os cinco fios de arame que a ocupação da Fazenda Annoni rompeu.
A história da ocupação da fazenda Annoni, em 1985, só foi possível pelo rompimento de cinco fios de arame que escravizavam aquela terra, e barravam o acesso do povo sem-terra para, ao liberta-la, libertar-se a si mesmo.
O primeiro, da lei, aquela fonte de dominação cheia de tantas promessas do direito humano e fundamental comum de acesso à terra, que garantam (?), a vida de todo o ser humano, mas são descumpridas por um poder muito maior do que ela. [...]
O segundo, o da própria organização da militância de vocês contra o fio de arame da servidão imposta por ideologias conformistas domesticadoras das injustiças presentes no nosso sistema socioeconômico. [...]
O terceiro, o desafio com que vocês enfrentaram o fio de arame do medo. Este nos ataca por dentro e é difícil alguém afirmar que não o sente, tão imprevistas são as circunstâncias com as quais o povo tem que lidar. [...]
O quarto, o desafio de fio de arame que impede a mobilização. [...]
O quinto, a necessidade de terminar de romper materialmente o último fio de cerca do latifúndio ainda pendente, com coragem.
Mas, para além do que lemos, recebemos, de uma conversa que Tuco teve com Isaías Vedovatto, no baile, uma pérola da história do movimento: foi ele quem, inicialmente, disse para as famílias que ocupar era legítimo, apesar de não haver autorização expressa em lei. Mas falaremos disso depois.
Após a homenagem, ouvimos, atentos, às falas de Claudia Dadico, Carlos Frederico Marés, Maria Cristina Vidotte e Ecila Meneses. Entre começos e meios, conforme a dialética de Antonio Bispo, Marés deu a tônica da presença, apoio e parceria do campo jurídico ao MST, e sob a coordenação de mesa de Leandro Scalabrin e Iara Sanches, bradou alto que o movimento faz a lei e o direito, em um eterno começo de refazer sempre o direito, e a lei.
Ah! Seguindo nossa tradição, pelas andanças pelo país, fizemos a entrega da coleção de livro da série de introdução crítica ao direito, do Direito Achado na Rua, juntamente com outras publicações do coletivo.
Ao final do dia, nosso anfitrião, Diego Vedovatto, gentilmente nos convidou para conhecermos um pouco mais do assentamento, nos levando à casa de seus pais. Ali, tivemos a oportunidade ímpar de ouvir as histórias entrecruzadas de sua família, da cooperativa e - não exageramos quando dizemos - da luta por reforma agrária.
Saboreando as boas companhias e petiscando o queijo e o salame da Coperlat - cooperativa de assentados do MST -, sentimos o tempo passar em outro ritmo, degustando o pôr do sol. Ali tratamos de projetos comuns, de causos do professor Marés, de análises de conjuntura sobre o STF, sobre a sociedade e dos caminhos que se abriam aos novos encontros com aquelas reflexões.
Fotos 9 e 10 - Varanda da Família Vedovatto, 2025
Fonte: Júlia Natour
Diego nos contou sobre o início do assentamento, do desafio de organizar as famílias, da época do ‘laboratório’ - quando as famílias receberam formação com apoio dos companheiros de Cuba para planificar a produção no local. Das 40 famílias que receberam essa formação, restam, hoje, 13 - incluindo os Vedovatto.
Essas famílias compartilham tudo: se organizam em núcleos de produção, conforme a necessidade de trabalho (incluindo o cuidado com os animais, o frigorífico, a escola, a produção de alimentos para as próprias famílias etc), e tanto o trabalho é dividido, como a renda (em partes iguais, para todos, inclusive aqueles que trabalham fora no assentamento).
Fotos 11 e 12 - Porcos e Agrovila, 2025
Fonte: Júlia Natour
E vimos que o senhor tem razão: a gente só vê aquilo que temos cognição para entender.
Ali, onde a história do Brasil se entrecruza com a história dos camponeses sem terra, onde ocorreu a primeira experiência massiva de ocupação do MST, também ocorreu a celebração dos 40 anos da Ocupação da Fazenda Annoni e o Seminário de Reforma Agrária, do qual tivemos o privilégio - e a confiança do movimento - de participar. Ali, naquele espaço, conseguimos ver que a reforma agrária popular pode ser um caso de sucesso!
Esgotadas as vias políticas e judiciais de fazer cumprir a função social da área, aquelas famílias - que já acumulavam um repertório político e de consciência com as experiências anteriores das ocupações das Fazendas Macali e Brilhante, em 1979, e da Encruzilhada Natalino, em 1981 - inauguraram aquela que passaria a ser a mais sofisticada estratégia do Movimento: a ocupação massiva.
Naquele momento, um então jovem, de 22 anos, Isaías Vedovatto, se encarregou de romper uma barreira física que impedia o acesso à Fazenda: cortou a cerca. Décadas depois, um outro jovem, Diego Vedovatto, seu filho, romperia outras barreiras ainda mais rígidas, intangíveis, que cerceiam o direito à educação: formou-se bacharel em direito pela primeira turma Pronera, em 2013, junto à turma ‘Evandro Lins e Silva’, da Universidade Federal de Goiás - UFG.
Foto 14 - Formatura da Turma Evandro Lins e Silva - Pronera/UFG, em 2013
Fonte: Secom UFG
De lá para cá, muita coisa mudou: o movimento massificou, internacionalizou-se, densificou sua agenda de luta, reposicionou o debate da reforma agrária na sociedade e no estado. Porém, algo estruturante permaneceu inalterado: a função social da propriedade e a reforma agrária ainda são promessas constitucionais que não são integralmente cumpridas. Mas suas realizações são possíveis: nós vimos!
Pudemos refletir também sobre o processo de acúmulo e desenvolvimento teórico do Movimento. Debates sofisticadíssimos sobre crédito agrário, título de posse e sobre a própria concepção de reforma agrária - haja vista a centralidade da Agroecologia - reforçaram nossa percepção de que o Movimento, dedicado à práxis, constitui-se enquanto vanguarda na construção do conhecimento. Como diria Stédile, lembrando de Gramsci, o MST agindo ao vivo e a cores enquanto intelectual coletivo.
Como o senhor sabe, nos últimos anos nós trabalhamos nos movimentando pelo Brasil, realizando ações de formação comunitária em direitos humanos com os povos das águas, dos campos e das florestas. No âmbito do projeto “Formação Comunitária em Direitos Humanos”, que desenvolvemos em parceria com o Conselho Nacional de Direitos Humanos, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e o MST, tivemos a oportunidade de conhecer diferentes conflitos e realidades, nas diversas regiões do país.
Algo que tem chamado a nossa atenção é a prioridade com que os movimentos sociais têm tratado a educação, e o modo como a sua democratização tem sido incorporada em sua agenda revela a dimensão política de seu projeto social, que é humanizante e civilizatório.
Em Guararema, no estado de São Paulo, visitamos a Escola Nacional Florestan Fernandes - ENFF, um centro de formação construído pela e para a classe trabalhadora, com o qual pretendemos desenvolver em parceria, em um futuro próximo, a primeira turma de mestrado acadêmico em direito.
Em Parauapebas, no estado do Pará, conhecemos a realidade das quase 8 mil famílias que lutam por seus direitos no Acampamento “Terra e Liberdade”. E também o trabalho conduzido pelo Centro de Formação Produção e Artes da Amazônia - Conduru, que nos recebeu e viabilizou as atividades de formação.
Em Fortaleza, no estado do Ceará, participamos da Feira Cultural da Reforma Agrária, dispositivo que viabiliza à população o acesso aos produtos de áreas de acampamentos e assentamentos, livres de agrotóxicos, nos marcos da agroecologia, e, ao mesmo tempo, aproxima e conscientiza a população sobre os sentidos da reforma agrária popular. Ela ocorre no mesmo espaço no qual realizamos nossas atividades, o Centro de Formação, Capacitação e Pesquisa Frei Humberto.
Em Viamão, no estado do Rio Grande do Sul, estivemos no Instituto de Educação Josué de Castro, escola do campo que viabiliza Ensino Médio e Educação Profissional, além de cursos e outras atividades, tudo com o objetivo de “formar os sujeitos sociais da construção de um projeto de desenvolvimento para o campo e para o país” (https://iejc.edu.br/saiba-mais/).
Todas essas experiências são evidências da centralidade da educação para os movimentos sociais no processo de emancipação humana. Uma emancipação que é construída, conforme nos ensina Paulo Freire, num processo de educação que é mediatizado pela luta social, e pelo mundo. Afinal, “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
E o senhor, mais uma vez, tem razão: o MST é conflito, mas, também, é projeto. É conflito, quando o direito dele necessita para se libertar das cercas do latifúndio e da agência do agronegócio. Mas essencialmente é projeto, quando o direito nele se escora para se fazer avançar.
Retomando ao Assentamento 16 de março, ali tivemos, finalmente, a oportunidade de conhecer uma experiência de muitas décadas de assentamento.
Atualmente, a área possui mais de 400 famílias assentadas, que se organizam em cooperativas e continuam expandindo as fronteiras do direito. Ali, que na década de 1970 era um latifúndio, hoje é assentamento e também o primeiro Distrito da Reforma Agrária, nos termos da lei municipal editada em setembro de 2025.
O sábado começou com uma mesa que colocou em diálogo a professora e pesquisadora Alessandra Gasparotto e o dirigente João Pedro Stédile.
A fala da professora soava de tal modo como uma resposta às nossas inquietações, que parecia até que ela tinha nos ouvido debatendo no carro, a caminho do evento, sobre a história do movimento, das conjunturas e das condições objetivas e subjetivas de avanço e retrocesso da reforma agrária no Brasil. Ela nos apresentou experiências do Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master), no governo Brizola, entre tantos outros elementos fundamentais dessa trajetória.
Stédile, por sua vez, traçou a linha política do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Com sua notável habilidade de análise e síntese - fruto de anos de formulação coletiva - explicou em cerca de quarenta minutos a grande mudança de paradigma do MST: passar da Reforma Agrária Clássica para a Reforma Agrária Popular.
Para introduzir a reflexão, diferenciou a luta pela terra da luta pela reforma agrária: a primeira uma técnica de preservação do campesinato, enquanto a segunda implicaria uma transformação estrutural na ordem social, econômica e política da sociedade. Em seguida, destacou três fatores que, quando combinados na história de um povo, podem tornar possível a reforma agrária: um movimento camponês com ideologia, uma sociedade civil organizada e consciente e um governo popular.
O dirigente nos explicou que, diante da ruína das condições objetivas para a realização da reforma agrária clássica, o MST concebe, atento à realidade, o conceito de Reforma Agrária Popular. O primeiro elemento desse novo paradigma é a agroecologia, compreendida como um conjunto de técnicas e concepções de agricultura voltadas à produção de alimentos saudáveis e à preservação do meio ambiente. Outro eixo fundamental é a agroindústria, que permite expandir a produção e garantir condições de trabalho e renda digna no campo, especialmente para a juventude e as mulheres.
Por fim, Stédile ressaltou que a educação é parte essencial dessa reforma popular construída pelo Movimento. Sem o conhecimento científico, não há transformação possível - nem na agricultura, nem na relação com a natureza. É preciso, portanto, combinar o saber popular com o saber científico.
Nesse horizonte, o dirigente fez referência ao PRONERA, destacando seu caráter revolucionário, por oferecer aos jovens assentados acesso à universidade sem que precisem deixar seus assentamentos. Temos prova viva dessa natureza revolucionária, vide nosso doutorando Diego Vedovatto e tantos outros!
Foto 25 - Churrasco Gaúcho no Chão
Foto: Julia Natour
Impactados com a mesa da manhã (Tuco até chorou, professor!), almoçamos em roda, no chão, um belo churrasco gaúcho servido comunitariamente para mais de 1.000 pessoas. Enchemos a mala de produtos da reforma agrária (compramos tantos salames que o companheiro até nos deu desconto! Tuco disse que traria um pro senhor, pode cobrar…), ouvimos Olívio Dutra e outras autoridades no ato político exaltando a luta pela terra e a reforma agrária como projeto de país, e finalizamos as atividades no melhor estilo do baile comunitário no galpão, sob a chuva e em meio à radiante energia da Lúcia Vedovatto e do Movimento Sem Terra.
Retornamos para Brasília plenos de histórias e a convicção de que a luta popular ainda tem muito a nos ensinar, nos caminhos e nos tempos que virão.
De Pontão para Brasília, outubro de 2025