segunda-feira, 1 de setembro de 2025

 

Seminário e Residência Petrobras Voo Livre História. Companhia Brasileira de Teatro

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Foto de Kamilla Pacheco

Na sua temporada de 2025, o espaço do Festival Cena Contemporânea, abriu-se para um campo de mobilização pela arte cênica. A companhia brasileira de teatro lança seu novo e instigante projeto, História, no CENA CONTEMPORÂNEA – Festival Internacional de Teatro de Brasília. Entre 22 de agosto e 3 de setembro, a iniciativa pretende realizar, dentro da programação do Festival, uma série de ações na área das artes cênicas, como a Residência Voo Livre-História e o Seminário História, ambos gratuitos, além das apresentações do espetáculo AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]. Para melhor ver em https://cenacontemporanea.com.br/2025/amaro-e-a-orquestra-alada-trovao-da-mata/.

Agradeço a Guilherme Reis, idealizador do Cena Contemporânea, o convite para participar do seminário História. Creio que são cerca de 30 anos de uma realização contínua. O projeto “Cena Contemporânea” em Brasília, mais especificamente o Festival Internacional de Teatro de Brasília, realiza-se desde 1996, orientado pelo conceito de promover as artes cênicas, oferecendo uma plataforma para artistas nacionais e internacionais compartilharem seus trabalhos.

Notável em sua realização é a Diversidade Artística (apresentar uma programação diversa, incluindo teatro e dança, para todas as idades), a Reflexão e o Debate (espaço para discutir as artes cênicas e seu futuro), Inovação (oferecer apresentações inovadoras e experimentais, incluindo trabalhos especialmente preparados para o festival) e Acessibilidade (tornar a arte acessível ao público, com apresentações gratuitas e virtuais, quando necessário.

Na página do Festival, há a explicação de que “as ações fazem parte da programação de um projeto mais amplo e ousado da companhia, chamado HISTÓRIA, apresentado pela Petrobras por meio da Lei Rouanet e Ministério da Cultura do Governo Federal do Brasil. Trata-se de um projeto de manutenção da companhia brasileira de teatro que se estrutura em três eixos principais de atividades, distribuídas ao longo do período de um ano (agosto/2025-julho/2026), com possibilidades de extensão e desdobramentos para além do circunscrito no projeto inicial”.

Neste 2025 o projeto insere na programação o Seminário História. São “Encontros entre integrantes da companhia brasileira de teatro e convidados especiais, para refletir sobre prismas fundamentais da história do Brasil, abertos à participação do público. A atividade é ligada à plataforma de criação artística VOO LIVRE, criada em 2023, pelo diretor Márcio Abreu, pelas atrizes Nadja Naira e Cassia Damasceno e pelo produtor José Maria, para ressignificar processos criativos e propor perguntas sobre como seguir fazendo arte no mundo de hoje. A proposta é levantar, junto com os espectadores, as possíveis relações entre história íntima e história coletiva: como cada pessoa, individualmente, pode interferir na grande História e como ela determina aspectos das nossas próprias vidas. O material servirá de base para a dramaturgia de um novo trabalho da companhia”.

Além da participação especial de convidados ilustres como o advogado Carlos Moura, referência na luta pelos direitos humanos e pela igualdade racial; a professora Glória Moura, doutora em Educação pela USP e pioneira da luta pela inclusão racial nas universidades; a psicóloga, professora universitária e ativista brasileira Jaqueline Gomes de Jesus; eu próprio, a convite do Guilherme Reis e com o acolhimento de José Maria e Lilian Bento, figuro entre os convidados, na programação do dia 30/8 (sábado) – Teatro Marco Antonio Guimarães (Espaço Cultural Renato Russo 508 Sul), das 17h30 às 20h., para contribuir para o debate. Estive na roda de conversa que então se realizou compartilhando a minha apresentação com a minha esposa Nair Heloisa Bicalho de Sousa, do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, ela própria uma interprete da história social de Brasília, a partir do “subterrâneo”, condição de resgate de memória social disputando com as “histórias oficiais”.

Nair, que sensível à capacidade da arte de apreender o mundo (lembrando Eduardo Lourenço segundo o qual a literatura e a arte não são delírios, mas apreensão do real por meio de outra linguagem), demonstrou essa capacidade mediadora quando depois de entrevistar lideranças das marchas do MST sobre Brasília em 1997, e de estudar os diários da marcha, os registros feitos em cadernos escolares, acabou por desistir de escrever um ensaio sociológico sobre o acontecimento, sua intenção original, e compôs com esse material uma peça de teatro – O Brasil em Movimento por Reforma Agrária, Emprego e Justiça – que pode ser lida nas páginas 384-396 de Série O Direito Achado na Rua, vol. 3: Introdução Crítica ao Direito Agrário/Mônica Castagna Molina, José Geraldo de Sousa Junior, Fernando da Costa Tourinho Neto (organizadores). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.

Para Nair, ela lembrou no debate, com Michael Pollack (POLLACK, M. Memória, esquecimento e silêncio. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, ,n. 3,1989), que memória e esquecimento estão em disputa constante no exercício do poder. Democratizar a memória, portanto, é condição para que diferentes gerações tenham acesso à verdade e para que o passado ilumine as estratégias do presente. Hannah Arendt (ARENDT, Hanna. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1973) ressaltava a importância de restaurar a verdade como fundamento da política, enquanto Walter Benjamin (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987) via a memória histórica como apropriação de reminiscências que surgem em momentos de perigo, permitindo ressignificar experiências do passado para orientar a ação no presente.

Foto de Kamilla Pacheco

Pensando a relação entre arte e história, comecei por me perguntar sobre tal entrelaçamento, desde minhas memórias de leituras literárias, quando, lendo Tolstói, acabei me deparando no epílogo de sua grande obra (Guerra e Paz), com um ensaio em que o grande autor se pergunta sobre o que move a História? Ali, Tolstói, em face do confronto entre Napoleão e Kutuzov acaba se conformando ao conceito de que a história não é obra dos “grandes homens”, mas da soma de infinitas ações individuais. Claro que ele quer encontrar um fundamento numa lei geral que refere essa massa de atos, como uma espécie de “necessidade histórica” que se manifesta como resultado de todos esses movimentos.

Roberto Lyra Filho critica a visão do escritor russo de que a história é determinada por forças conscienciais e subjetivas, ignorando as relações de poder e as estruturas sociais que influenciam os acontecimentos históricos. Para ele, assim como para Benjamin, Tolstói ainda que superando os aspectos objetivos e materiais da história, não venceu o limite da compreensão da dinâmica social e política, que se move por impulso não de indivíduos mas de coletivos, de sujeitos coletivos históricos.

Penso que essa percepção centrada no indivíduo que tem apelo literário, dificilmente escapa da relação entre história singular e a geral cujo entrelaçamento determina os acontecimentos.

Penso em Alexandre Dumas na cena de “Vinte Anos Depois” (Vingt Ans Après), continuação de “Os Três Mosqueteiros”. Durante a Fronda (período de revoltas contra o governo de Mazarino na França, por volta de 1648), o porteiro da Bastilha (ou de um outro posto estratégico) — por causa de uma briga com a amante — esquece de trancar uma porta ou de assumir seu posto com rigor, permitindo que os conspiradores ou inimigos do governo tomem o local de surpresa.

Dumas utiliza esse incidente para mostrar como um detalhe da vida privada de um personagem pode ter efeitos desproporcionais sobre a vida pública e os destinos de um país.

Benjamin em “Sobre o conceito de história”, também conhecido como “Teses sobre o conceito de história” (1940), refere a essa passagem na Tese VII, que diz:

“O cronista que narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos age de acordo com a seguinte verdade: nada do que um dia aconteceu deve ser considerado perdido para a história. Certamente, só a humanidade redimida possui o seu passado completo — o que significa: apenas para a humanidade redimida o passado se tornou citação em cada um dos seus momentos. Cada segundo vivido com consciência pode se tornar uma porta por onde o Messias pode entrar.”

Há toda uma construção conceitual, notadamente com a Escola dos Annales, que valorizava o papel do “acaso” e da vida cotidiana nos processos históricos. Entretanto, embora essa concepção seja cara a Walter Benjamin, que cita a passagem de Dumas para mostrar como a história é feita de entrelaçamentos não lineares, nele, ao citar esse episódio de Dumas, a reflexão se orienta para como acontecimentos históricos não devem ser reduzidos apenas às ações dos grandes homens ou aos grandes eventos, mas que a história também se constitui de pequenos gestos, acasos, emoções — daquilo que é aparentemente irrelevante. Trata-se de uma crítica ao historicismo, e uma defesa de uma história materialista com sensibilidade para o tempo dos vencidos, dos esquecidos, dos detalhes.

Mas Benjamin discute mesmo é como as classes revolucionárias têm consciência de romper com o contínuo histórico por meio de rupturas simbólicas. Para ele, o sentido da história é armar o social para a redenção dos vencidos e a interrupção da barbárie. O olhar da história é ético-político: salvar a memória dos oprimidos contra a narrativa triunfal dos vencedores, um sentido interessado no uso revolucionário da memória. É tomar a história a contrapelo, para capturar o momento que se vive o perigo, e poder transitar para a emancipação, para não deixar acontecer de novo.

Por isso é tão importante, na conjuntura em que vivemos, depois dos atentados à democracia, nos ensaios de golpe que têm no 8 de janeiro seu momento mais performático, perceber nesse evento o relampejar que desperta a nossa consciência histórica. Por isso que, julgar crimes contra o Estado de Direito credencia o STF como garante da Democracia, mas é também uma oportunidade incontornável para aferir a nossa capacidade pedagógica de exercitar uma experiência exemplar de educação para a Democracia e para a Cidadania

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

 

Usina de Valores: Educação popular em direitos humanos

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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₢ Abertura do Seminário. Fotografia: Catarine Brum
₢ Abertura do Seminário. Fotografia: Catarine Brum

Depois de um convite amigável e convocatório do Instituto Vladimir Herzog, assinado por Rogério Sottili seu Diretor Executivo, participei da abertura do Seminário Nacional Usina de Valores – Educação Popular em Direitos Humanos, instalado em Brasília, no Sindicato dos Professores no dia 27 e com atividades intensas até 29 de agosto.

A Mesa Cerimonial de abertura com autoridades e ato de sensibilização/apresentação dos grupos, teve participação de representantes da UnB (eu próprio), do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (Ivana Sant’Anna Torres), do MEC (Erasto Fortes Mendonça), Ministra Anielle Franco (Ministério da Igualdade Racial) e Hamilton Harley, do IVH que coordenou a mesa.

A abertura teve como Objetivo constituir-se como ato de sensibilização e de apresentação dos grupos que, ao longo do Seminário vão compartilhar experiências e construir coletivamente propostas concretas de participação social para o fortalecimento da educação em direitos humanos em diálogo com o MDHC e o PNEDH de modo a consolidar compromisso coletivo da participação social e popular no acompanhamento e controle do PNEDH.

O encontro tem por objetivo o fortalecimento dos agentes da educação popular que atuam nos territórios periféricos do país, com a participação de mais de 50 defensores/as de direitos que atuam nas periferias de sete estados, no total reunindo cerca de 80 participantes, vindos de cinco Estados, entre educadoras e educadores populares, representantes de coletivos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil.

A programação completa pode ser acompanhada na página do IVH e lá se pode dar conta de que o objetivo do seminário é promover o intercâmbio de experiências em educação popular em direitos humanos, estimular o diálogo com o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, e contribuir com sugestões para a revisão do PNEDH a partir da escuta ativa e da vivência nos territórios (https://vladimirherzog.org/seminario-nacional-usina-de-valores/).

O seminário busca fortalecer a incidência política de coletivos periféricos e o engajamento da sociedade no enfrentamento a desigualdades. Na formação ao longo de 2025, os participantes mapearam e mobilizaram-se em torno de problemas locais como falta de acesso à saúde e à moradia e agora espera-se que possam trocar experiências vivenciadas nos diferentes locais, fortalecer redes, ampliar a visibilidade de suas demandas e incidir politicamente, impulsionados por suas vivências nos seus territórios com as referências da Usina de Valores, iniciativa de educação popular do Instituto Vladimir Herzog para engajamento político.

O Seminário busca ainda contribuir com a construção de propostas para a revisão do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), processo inédito desde a criação do Plano no bojo da redemocratização, há 20 anos. Trata-se de política pública que busca consolidar uma cultura de direitos humanos e de cidadania ativa, demarcados pelo protagonismo da coletividade e da afirmação da periferia como parte legítima da formulação de políticas públicas, essenciais para a transformação social e consolidação da democracia no Brasil.

Visitando a aba da página do IVH que abriga as referências do Seminário e ao conceito de usina de valores, seus objetivos, metodologia, orientados pela instigação que a periferia é o cento, ou a periferia no centro, logo se percebe que o foco da educação popular para os direitos humanos se inscreve na prática pensada dos defensores/as de direitos em periferias.

Essa perspectiva já tinha sido tema de minha leitura crítica quando fiz a recensão do livro de Tiaraju Pablo D’Andrea. A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e política na periferia de São Paulo. São Paulo: Dandara Editora, 2022, originado de sua tese de doutorado na USP (https://estadodedireito.com.br/a-formacao-das-sujeitas-e-dos-sujeitos-perifericos-cultura-e-politica-na-periferia-de-sao-paulo/), a meu ver, tal como digo em minha Coluna Lido para Você, que ao por em relevo que o cerne do trabalho de Tiaraju D’Andrea é conceituar as sujeitas e os sujeitos periféricos, um processo no qual ele desnovela o entrelaçamento “entre um contexto histórico, uma gama de relações sociais e espaciais e um arcabouço conceitual [que é] expressão de uma teia de relações sociais que envolvem e formam os indivíduos em seus espaços”, tem-se que esse entrelaçamento é constituído por vários enlaces, cada um deles examinados analiticamente incluindo seus referenciais, mas que são o alinhavo de “contribuições para a definição dos conceitos, vivências, habitus (com os contornos que lhe atribui Bourdieu), experiência, subjetividade, identidade e consciência periférica”.

Na elaboração de Tiaraju, considerando a sutileza das muitas distinções que ele deslinda, “a produção de vivências e experiências, das quais o habitus e a subjetividade são resultantes, origina-se de relações sociais e contextos culturais e econômicos em dado espaço geográfico, conformando características próprias de determinado grupo social e tendo como desdobramento uma experiência social compartilhada internamente”. No seu estudo, a quebrada, a favela, a comunidade, o bairro, em suma, a periferia, formam o que GOG e os Racionais MC’s, caracterizam como o periférico em qualquer lugar.

Outra referência valiosa que deve ser analisada a parit da página do IVH, no bojo do projeto Usina de Valores é a publicação (Caderno de Experiências Usina de Valores – Coletividade e defesa de direitos humanos em territórios periféricos), que pode ser baixada, na qual são sistematizados os pilares e etapas da Metodologia Usina de Valores, além de compartilhar experiências de sua aplicação para o engajamento político em cinco territórios entre 2023 e 2025.

Retiro da Apresentação do Caderno o alcance do enunciado Por territórios engajados na defesa de direitos. Trata-se de “uma proposta alinhada à educação popular em direitos humanos, desenvolvida pelo Instituto Vladimir Herzog a partir de ações em diferentes territórios desde 2018. Ao sistematizar os pilares e as etapas da Metodologia Usina de Valores (MUV) e compartilhar experiências vividas em distintos contextos, o material busca apoiar ativistas, ativadores/as locais, educadores/as e profissionais da educação popular no desenvolvimento de processos de engajamento comunitário e cidadão em seus territórios”.

Na Metodologia Usina de Valores, pode-se constatar que “os participantes não apenas aprendem sobre direitos humanos, mas sim vivenciam valores que sustentam estes direitos. O objetivo é que, em vez de conhecê-los como conceitos teóricos, possam atribuir sentido e se apropriar destes valores de forma concreta, integrando-os em suas ações e vivências”.

Considero, à luz dos valores que fundamentam a experiência proposta pela MUV – Dignidade Humana (O Caderno de Experiências Usina de Valores – Coletividade e defesa de direitos humanos em territórios periféricos), Bem-Viver (Eixo ético-político e pedagógico que articula memória, ancestralidade e emancipação. Ele não aparece como conceito abstrato, mas como princípio de organização coletiva, de fortalecimento comunitário e de produção de alternativas frente às lógicas de exclusão social e epistemológica que marcam os territórios periféricos), Escuta Ativa (A Escuta Ativa é uma prática que permite a cada pessoa reconhecer a si e às outras como agentes legítimos dos discursos, contribuindo para o direito de se posicionar democraticamente, refletir sobre sua realidade e influenciar no seu contexto, Coexistir na Diferença (Coexistir na Diferença reafirma a diversidade como fundamental para a convivência democrática e para a construção de laços sociais. As diferenças, ao invés de serem vistas como obstáculos, são essenciais para o respeito mútuo, o aprendizado e a resolução de conflitos) e Engajamento Político (Engajamento Político é a participação ativa e permanente em causas coletivas. Quando cada pessoa se compreende como sujeito político e de direito, o pertencimento e o senso crítico são motores para o enfrentamento a desigualdades).

O Seminário, na sua concepção, está em sintonia com os mais consistentes e bem estruturados processos de formação quando há protagonismo de sujeitos coletivos de direitos (https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/). Assim, nas mobilizações para projetos de sociedade emancipada (MST e outros organismos das lutas camponesas (ver sobre isso https://brasilpopular.com/seminario-nacional-sobre-os-direitos-das-camponesas-e-dos-camponeses/, remissão à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos das Camponesas e dos Camponeses).

Também em relação às lutas e mobilizações dos povos indígenas e dos povos tradicionais (https://estadodedireito.com.br/direito-a-consulta-e-consentimento-de-povos-indigenas-quilombolas-e-comunidades-tradicionais/)

No protagonismo feminino (https://estadodedireito.com.br/a-promocao-da-cidadania-nas-ruas-defensoras-populares-dpe-go-2019-e-a-praxis-da-educacao-critica-e-popular-em-direitos-humanos-das-mulheres-para-alem-dos-muros-institucionais/), nas mobilizações por acesso à justiça (https://estadodedireito.com.br/secretaria-de-reforma-do-judiciario-uma-experiencia-de-politica-de-justica-para-democratizacao-do-acesso-a-justica-no-brasil/https://estadodedireito.com.br/a-assessoria-juridica-popular-no-marco-do-pensamento-decolonial-direitos-e-saberes-construidos-nas-resistencias-populares/).

Peno que a adoção de uma política nacional de educação popular em saúde para o SUS, é todavia, a mais precisa e criativa atualização dos fundamentos democráticos participativos inaugurados com a Constituição de 1988, desde a afirmação dos movimento sociais de defesa da saúde como bem público fora de mercado. A PNEPS-SUS foi instituída pela Portaria MS/GM nº 2.761/2013 e tem o objetivo de implementar a Educação Popular em Saúde no SUS, que contribui com a participação popular, a gestão participativa, o controle social, o cuidado, a formação e as práticas educativas em saúde.

Os princípios da educação popular em saúde (EPS) baseiam-se na participação social, na valorização dos saberes populares, na construção de uma consciência crítica e na democratização do acesso e gestão da saúde. A EPS busca entender a saúde e a doença a partir do contexto social e histórico dos indivíduos, promovendo o protagonismo popular e a articulação com as políticas de saúde para alcançar a universalidade, a integralidade e a equidade no Sistema Único de Saúde (SUS).

São Princípios da Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS), a Problematização e Construção Compartilhada do Conhecimento (a partir da realidade vivenciada, os saberes da comunidade e os conhecimentos técnicos são utilizados para construir o conhecimento de forma colaborativa), a Emancipação e Compromisso com um Projeto Democrático e Popular (visa à autonomia dos sujeitos sociais e à sua capacidade de participar e transformar as políticas de saúde, defendendo um sistema mais democrático e justo) e, singularmente, Diálogo e Amorosidade (a construção de espaços de escuta, troca e reconhecimento mútuo entre profissionais e usuários, baseada no respeito e na afetividade).

Assim que, nessas abordagens e experiências, a Educação Popular vai se caracterizando como práxis social, compreendida como aquela que não está institucionalizada, ocorre dentro e com os grupos populares; é determinada pela realidade e sua perspectiva é histórica. Desenvolve-se na sociedade para se contrapor ao projeto educacional dominante.
A referência será sempre à Educação Popular, proposta por Paulo Freire, compreendida como uma abordagem pedagógica e política que visa a transformação social através da conscientização e participação ativa das classes populares. Freire defendia que a educação não deveria ser um processo unilateral, mas sim um diálogo entre educador e educando, onde ambos aprendem e constroem conhecimento juntos, especialmente a partir da realidade e contexto de vida dos estudantes.

Fiz registro disso em meu depoimento contido em (https://estadodedireito.com.br/testamento-da-presenca-de-paulo-freire-o-educador-do-brasil-depoimentos-e-testemunhos/), ali onde refiro às principais características da Educação Popular desde Paulo Freire. A Conscientização (a Educação Popular busca desenvolver a consciência crítica nos indivíduos, permitindo que eles compreendam as relações de poder e as causas de suas condições de vida); Diálogo (o diálogo é a base do método freireano, onde o conhecimento é construído através da troca de experiências e perspectivas entre educadores e educandos); Ação-Reflexão-Ação (a aprendizagem é um processo contínuo de ação, reflexão sobre essa ação e nova ação, visando a transformação da realidade); Empoderamento (a Educação Popular visa empoderar os indivíduos, dando-lhes voz e autonomia para agir em seus contextos sociais); e Compromisso com a Transformação Social (a Educação Popular não se limita ao ambiente escolar, mas busca a transformação da sociedade como um todo, promovendo a justiça social e a igualdade).

Sobre todas essas questões e temas ouvimos manifestações na abertura do Seminário. Assim que, pode-se dizer que, na proposta metodológica, da Usina de Valores e de todo o princípio de formação, o que está em causa é o horizonte ético de formação política, cultural e comunitária e da educação em para os direitos humanos: não é apenas conteúdo, mas também forma de conduzir os processos, inspirando práticas educativas libertadoras, baseadas no diálogo entre periferia, direitos humanos e alternativas civilizatórias.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

 

Eugeniusz Costa Lopes da Cruz. Roberto Lyra: o intelectual militante pela criminologia

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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“O esforço (da obra) é para identificar a abordagem sobre o ensino jurídico no Brasil defendida por Roberto Lyra, autor da frase inscrita no pórtico de entrada do auditório da Universidade do Distrito Federal que dizia: “aqui só entra quem sabe sociologia”.

Trata-se de claro enaltecimento à interdisciplinaridade, a valorização da proposta de pensar o direito com as ciências humanas e sociais, afastando-se da perspectiva dogmática e tecnicista.

O pensamento crítico, proveniente do marco teórico, seria o eixo fundamental para a desconstrução de afirmações sem fundamento científico que se perpetuam no senso comum teórico jurídico no Brasil. Parabéns Eugeniusz e seja feliz.”

Do prefácio de Gizlene Neder e Gisálio Cerqueira Filho

Nota Dos Coordenadores

Prof. Dr. Alexandre Wunderlich E Prof. Dr. Salo De Carvalho

Prefácio

Gizlene Neder e Gisálio Cerqueira Filho

Agradecimentos

Introdução, Delimitação Do Objeto, Metodologia E Problema De Pesquisa

Capítulo 1

Apresentação E Crítica Dos Fundamentos Da Teoria Do Conhecimento Para A Escola Clássica E A Escola Positiva: Elementos Centrais Para O Mapeamento Do Pensamento De Roberto Lyra

1.1. Teoria Tradicional E Teoria Crítica.

1.2. Teorias Tradicionais Nas Ciências Criminais (Escolas Clássica E Positiva)

1.3. Ideologia Da Defesa Social (Ids) E Contradições Ideológicas

1.3.1. A Ideologia Da Defesa Social

1.3.1.1. A Ideologia Da Defesa Social E O Sistema Penal

1.3.1.2. A Contribuição De Althusser Para Uma Compreensão Interdisciplinar Do Sistema Penal Como Aparelho Repressivo De Estado (Are)

1.3.2. O Mito Da Neutralidade Científica

1.3.3. A Escola Do Fim Das Ideologias

1.3.4. O Caráter Ideológico Da Ideologia Da Defesa Social

1.4. A Relação Entre O Poder Punitivo E O Capital

Capítulo 2

O Universo Político E Ideológico Em Torno De Roberto Lyra

2.1. Considerações Políticas, Ideológicas E Metodológicas

2.2. Antecedentes Da Família Lyra: Raízes Abolicionistas

2.3. O Jovem Lyra E A Faculdade Livre De Sciencias Jurídicas E Sociaes Do Rio De Janeiro

2.3.1. Os Lyra: Uma Família Tradicional

2.3.2. A Formação Na Faculdade Livre De Sciencias Juridicas E Sociaes Do Rio De Janeiro E A Ideologia Punitivista Na Primeira República

2.3.3. Sociabilidade Com Professores, Influenciadores E O Debate Sobre A Pena De Morte

2.3.4. Produção Científica Em Matéria Penal Na Década De 1920 E O Eixo Cultural Rio-São Paulo Em Perspectiva Empírica

2.4. O Pensamento Científico E Político De Roberto Lyra Como Chaves Interpretativas Para A Compreensão De Sua Obra

2.4.1. Positivismos E O Positivista Indisciplinado

2.4.2. O Direito Penal Normativo E O Direito Penal Científico

2.4.3. Do Pensamento Político Socialista À Criminologia Contra-Hegemônica E Anticarcerária

Capítulo 3

A Militância Como Professor: A Universidade Do Distrito Federal Como Círculo De Sociabilidade Intelectual, Política E Espaço De Lutas Ideológicas No Campo Da Educação

3.1. Mapeamento Das Origens E Da Fundação Das Primeiras Faculdades De Direito No Brasil: A Escola De Recife Como Berço Das Abordagens Interdisciplinares

3.2. A Recepção Das Ideias De Recife: Tobias Barreto E Silvio Romero

3.3. O Magistério De Roberto Lyra

3.3.1. Uma Vida Dedicada Ao Ensino E À Produção Acadêmica

3.3.2. Início Da Docência E A Disputa Com Nelson Hungria

3.4. A Udf Como Projeto Inovador Na Educação Superior: A Adesão De Lyra À Ideia De Anísio Teixeira

3.4.1. Conjuntura Política Na Educação Na Década De 1930 E A Nova Concepção De Ensino

3.4.2. A Incorporação Da Faculdade De Direito Do Rj Pela Udf: “Aqui Não Entra Quem Não For Sociólogo”

3.5. Intelectuais, Pluralidade Ideológica E A Questão Religiosa: Educação Laica E O Poder Eclesiástico

3.6. Ministro Da Educação Socialista, Golpe E Renúncia

3.6.1. Período Histórico Antecedente Ao Primeiro Governo De Esquerda Brasileiro

3.6.2. O Ministro Da Educação No Primeiro Governo De Esquerda Do Brasil

3.7. O Drama Trágico De Roberto Lyra

3.7.1. Teoria Do Drama Trágico

3.7.2. Sobre Lyra Pai E Lyra Filho

Conclusão

Referências Bibliográficas

Anexos

Antecedentes Da Família Lyra

 

Claro que por instigação do filho eu me interessei muito pela leitura e pela busca das raízes da formação de Roberto Lyra Filho, meu orientador no mestrado e com quem colaborei sobre muitos aspectos principalmente na formação da Nova Escola Jurídica Brasileira, a Nair, seu veículo de divulgação, como Boletim da Nova Escola Jurídica, a revista Direito e Avesso, e a concepção de O Direito Achado na Rua que acabei por levar da ideia à realização, depois de sua morte em 1986, sobretudo com a Série O Direito Achado na Rua.

Li, de Roberto Lyra, por sugestão do filho, muitos ensaios – A Liberdade e a Jurisprudência do S.T.F., Formei-me em Direito, e Agora?, o material que ele organizou em Sociologia Criminal. Quadro de Idéias e Fatos em Todo o Mundo Especialmente no Brasil, uma publicação da Sociedade Brasileira de Criminologia, da qual foi Diretor; por último, uma publicação lançada pela editora Sophia Rosa (que Roberto Lyra Filho criou para publicar seus trabalhos e o primeiro foi do pai: Contribuição para a História do Primeiro Governo de Esquerda do Brasil (Conselho de Ministros Brochado da Rocha, 1962). Este livro, eu o tenho, com uma dedicatória muito carinhosa com sua caligrafia elegante: “Para os modelares Nair e José Geraldo, com admiração e reconhecimento. Roberto Lyra, Rio, 20.9.80).

Foi nessa leitura que encontrei uma indicação metafórica para em Roberto Lyra, pai, perceber o delito como um ponto de vista sobre o social e criminologicamente, abrir o imaginário para o pensar crítico na própria Criminologia, no que ele tomou em Santo Agostinho (A Cidade de Deus, livro quarto), sobre a semelhança entre reino sem justiça e pirataria (na minha edição da Editora das Américas S.A. – EDAMERIS, 1º volume, São Paulo, 1964, p. 205-206), percebo Santo Agostinho um precursor da Criminologia Crítica dado o modo de deslocar o olhar cognitivo para poder enxergar o que está diante dos olhos e não se vê, aliás, uma chave de leitura para ler politicamente o mundo hoje:

Desterrada a justiça, que é todo reino, senão grande pirataria? E a pirataria que é, senão pequeno reino? Também é punhado de homens, rege-se pelo poder de príncipe, liga-se por meio de pacto de sociedade, reparte a prêsa de acordo com certas convenções. Se esse mal cresce, porque se lhe acrescentam homens perdidos, que se assenhoreiam de lugares, estabelecem esconderijos, ocupam cidades, subjugam povos, tomam o nome mais autêntico de reino. Êsse nome dá-lhe abertamente, não a perdida cobiça, mas a impunidade acrescentada. Em tom de brincadeira, porém a sério, certo pirata prêso respondeu a Alexandre Magno, que lhe perguntou que lhe parecia o sobressalto em que mantinha o mar. Com arrogante liberdade, respondeu-lhe: ‘O mesmo que te parece o manteres perturbada a Terra toda, com a diferença apenas que a mim, por fazê-lo com navio de pequeno porte, me chamam ladrão e a ti, que o fazes com enorme esquadra, imperador’”.

Também de dona Sophia A. Lyra, a esposa, li por oferta do filho, Rosas de Neve (Como eram as mulheres no começo do século) e O Maior e o Melhor dos Lyras, uma visão de seu pai Augusto Tavares de Lyra, curiosamente para mim, uma materialização de um símbolo, pois, na adolescência em minha Natal, quantas vezes, sem sequer imaginar que o símbolo tomaria forma, tomei o barco na Ribeira, no cais da Tavares de Lyra, para atravessar o rio Potengi, em direção à praia da Redinha, até quando ficou mais prático e claro, menos romântico, fazer a travessia pela Ponte do Igapó.

Mas devo dizer que meu encontro mais intenso com o pensamento e a prática de Roberto Lyra, pai, se fez por uma introdução entre afetiva e celebratória promovida pelo carinhoso e exemplar zêlo de meu admirado Evandro Lins e Silva. Não só em conversas, principalmente no livro O Salão dos Passos Perdidos, sua biografia construída em Depoimento ao CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, Rio.

Aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, fiz uma recensão da obra: https://estadodedireito.com.br/o-salao-dos-passos-perdidos/. Trasladando minha leitura desse texto magnífico, recorto de minha resenha, um excerto pertinente ao que se elabora no trabalho, Eugeniuzs:

Um pouco dessa projeção recai sobre o meu próprio trabalho acadêmico, um tanto como legado, não fosse Roberto Lyra Filho, que a amizade de Evandro com Roberto Lyra, o grande adversário no Júri, promotor brilhante e colega em comissões como a do Código Penal, não tivesse se prorrogado no filho, o Deco, que trouxe para Brasília, apresentando-o a Darcy Ribeiro e instalando-o na UnB, para formar o Instituto Central de Ciências Humanas. Acompanhei Lyra Filho, que por encomenda de Evandro, o que muitas vezes aliviou seu contido contracheque de professor, elaborava preciosos pareceres para fundamentar suas defesas criminais.

De Roberto Lyra Filho procede a concepção de O Direito Achado na Rua, atentamente avaliada por Evandro: “Na Faculdade de Direito de Brasília também há um movimento, que tem como patrono e inspirador o professor Roberto Lira Filho, que deixou alguns livros magníficos a respeito. Um deles tem um título altamente sugestivo: O direito achado na rua. Não é uma beleza? E tem um livrinho pequenino também, O que é direito, outra beleza de livro. Quem conduz o movimento em Brasília é José Geraldo de Sousa, professor da universidade” (p. 498).

Desdobrando as referências revisito o texto de Evandro, para extrair de seu depoimento, a propósito de Roberto Tavares de Lira, páginas 79, 94, 97, 100-103, 111, 195, 196, 200, 212, nelas distinguindo os aspectos do criminólogo, do penalista, do promotor de justiça e do amigo.

O Criminólogo. Evandro enfatiza o papel de Roberto Lyra como um dos introdutores de uma visão criminológica moderna no Brasil, atento à sociologia criminal e às transformações do direito penal a partir de uma ótica humanista. Ele é apresentado como alguém que não se restringia ao tecnicismo jurídico, mas que ampliava o horizonte com uma compreensão social e política do crime, inspirando a juventude acadêmica e profissional. Evandro reconhece nele um mestre que atualizava o debate brasileiro com aportes da criminologia europeia e latino-americana.

O Penalista. Evandro destaca Roberto Lyra como um penalista rigoroso, conhecedor profundo da dogmática, mas que não era formalista. Ele transitava com autoridade entre a teoria e a prática, sendo citado como um jurista que unia erudição, clareza e capacidade de formular sínteses críticas. Evandro lembra que Lyra tinha uma preocupação com a justiça material e com a adaptação do direito penal a uma ordem social democrática, rompendo com as tendências autoritárias que marcaram parte da tradição penal brasileira.

O Promotor de Justiça. No depoimento de Evandro, Roberto Lyra aparece também na dimensão institucional, como membro do Ministério Público que dignificava a função. Evandro o menciona em episódios de atuação forense, valorizando sua coragem e firmeza na defesa da legalidade e da justiça. Ele se tornara uma espécie de modelo de promotor, pela independência de caráter e pela inteligência na sustentação de suas teses. Em alguns momentos, Evandro sugere que Lyra foi uma inspiração para o fortalecimento de um Ministério Público autônomo e ativo, antecipando debates que só ganhariam corpo mais tarde na Constituição de 1988.

O Amigo. Por fim, aparecendo o lado pessoal, Evandro fala de amizade, convivência e admiração mútua, descrevendo Roberto Lyra como figura generosa, afetuosa e leal. Há menções ao convívio intelectual, às conversas densas mas também ao calor humano que compartilhavam. A relação não era apenas profissional: havia companheirismo, solidariedade e respeito profundo, o que faz com que Evandro evoque Lyra não só como jurista, mas como amigo da vida inteira.

Assim, a imagem que Evandro constrói de Roberto Lyra é a de um jurista completo, que somava competência técnica, visão crítica e qualidades humanas raras.

Lê o trabalho de Eugeniusz Costa Lopes da Cruz, sobre Roberto Lyra, o pai, permite voltar a Roberto Lyra, o filho. Diz Eugeniuzs p. 13-14: “Voltar a Roberto Lyra Filho possibilita identificar também alguns aspectos de Roberto Lyra Filho, que não será aqui estudado uma vez que tal análise demandaria outra tese. Ainda assim, há espaço suficiente para registrar que este foi o primeiro a promover um diálogo sobre o marxismo e a questão criminal no Brasil. Lyra Filho é considerado uma referência na criminologia crítica brasileira e é reconhecido na comunidade acadêmica, principalmente, por sua obra Criminologia Dialética, que simboliza no Brasil aquilo que Punição e Estrutura Social (aqui em referência a Salo de Carvalho) representa para os estudos críticos da criminologia. Posteriormente, Lyra Filho aprofundou seus estudos no campo da economia política e publicou, em homenagem a Gisálio Cerqueira Filho e Leandro Konder, Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o Direito”.

É certo que Roberto Lyra Filho, para acentuar um aspecto que associa esses interlocutores, expõe com muita precisão todo o processo de dialetização em seu diálogo problemático que passa por Hegel e Marx., sobretudo no cuidado de não desviar-se por abreviações infradialéticas quando opera a ultrapassagem que leva à totalização, na qual os contrários realizam a fusão que é o propulsor da própria dialética. Isso está em vários textos (A Reconciliação de Prometeu, Filosofia, Teologia e Experiência Mística, em Karl, meu amigo: diálogos com Marx sobre o Direito) e por derradeiro, considerando o último registro editado antes de sua morte, em Desordem e Processo: um Posfácio Explicativo, in Desordem e Processo. Estudos sobre o Direito em Homenagem a Roberto Lyra Filho. In LYRA, Doreodó Araújo (org). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986).

Temas difíceis. Ainda bem que há confrarias e sororidades no mundo intelectual e muitas trocas permitindo aplainar os obstáculos de percurso. Aqui, no passado, valia o recurso das cartas, muitas reunidas de modo sistemático em volumes de correspondências. Menciono, por exemplo, das Editions Sociales, de Paris, a alentada publicação de Marx Engels Correspondance. Eu tenho os primeiros 8 volumes, o primeiro com 660 páginas, compreendendo o período de cartas entre 1835 e 1848. Nas cartas chaves de leitura preciosas ajudam a compreender a obra dos dois formuladores do materialismo histórico.

Penso na correspondência entre Martin Heidegger com Hannah Arendt, importante fonte para compreender a relação complexa entre eles, mas também por suas cartas acompanhar a discussão que sustentavam sobre filosofia e política para além de suas questões pessoais.

Hannah Arendt, também manteve correspondência com Karl Jaspers e em suas cartas discutiram questões de filosofia política, ética e a condição humana, especialmente no contexto do pós-guerra.

E o que dizer da correspondência entre Albert Einstein e Sigmund Freud, com insights fascinantes sobre suas visões de mundo, ciência e humanidade. Embora não tenham mantido uma correspondência extensa, suas interações e discussões são significativas. Essas cartas podem ser lidas hoje com força de atualização. Em “Por que a Guerra?” (1932), uma das correspondências mais conhecidas entre Einstein e Freud  – uma troca de cartas organizada pela Liga das Nações em 1932, publicada com este título, Einstein pergunta a Freud sobre a possibilidade de dirigir a evolução psíquica dos seres humanos para evitar a guerra. Freud responde discutindo a natureza humana, o instinto de agressão e a complexidade de controlar tais impulsos.

Por suas cartas se percebe que ambos compartilhavam uma visão crítica sobre a guerra e a destruição que ela traz. Einstein, com sua teoria da relatividade, e Freud, com sua psicanálise, abordaram a questão da agressão humana de maneiras diferentes, mas ambos reconheceram a complexidade do problema. Einstein, um pacifista convicto, acreditava que a humanidade poderia ser educada para evitar a guerra. Ele via a ciência e a educação como ferramentas para promover a paz e a cooperação internacional. Freud, com uma visão mais pessimista sobre a natureza humana, acreditava que os impulsos agressivos são inatos e que a civilização tenta controlar esses impulsos através de normas e leis. Ele ainda argumentava que, embora a educação e a cultura possam influenciar o comportamento humano, elas não podem erradicá-lo completamente.

Entre nós, no Brasil, para não citar outros, vale visitar a correspondência entre Manuel Bandeira com Mário de Andrade, uma troca de cartas entre esses dois grandes modernistas brasileiros revelando detalhes sobre suas obras, visões artísticas e pessoais. Também a correspondência entre Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, em que discutiram poesia, literatura e questões culturais, mostrando a interação entre os principais nomes do modernismo brasileiro.

Coincidentemente, Gisálio Cerqueira Filho, orientador da tese que dá origem ao livro, entreteve essa amizade com Roberto Lyra Filho que transparece na dedicatória de uma de suas obras de referência (Karl, meu amigo).

Amizade nutrida num intercâmbio substancioso. Fui testamenteiro de Roberto Lyra Filho e guardo muitos de seus papeis e rascunhos que quando cabe vou divulgando (veja-se esta Coluna Lido para Você: https://estadodedireito.com.br/minhas-memorias-da-unb-edson-nery-da-fonseca/https://estadodedireito.com.br/modo-de-aquisicao-todos-relatorio-de-exemplar-processo-de-aquisicao-comodato-roberto-lyra-filho/.

Alguns originais, manuscritos, puderam ser publicados ainda em vida do grande mestre. A propósito a paradigmática Carta Aberta a um Jovem Criminólogo: Teoria, Práxis e Táticas Atuais. Revista de Direito Penal, nº 28/ julho-dezembro/1979). Aliás, sobre esse assunto e também como referência para, ao ensejo do retorno a Roberto Lyra Filho, ver meu texto em Criminologia Dialética, 50 Anos: Um Diálogo com o Legado de Roberto Lyra Filho, que co-organizei junto com José Carlos Silva e Filho e Salo de Carvalho que apresenta o livro de Eugeniuzs, conforme https://estadodedireito.com.br/criminologia-dialetica-50-anos-um-dialogo-com-o-legado-de-roberto-lyra-filho/, onde inclusive anoto a auto-identificação do jovem criminólogo, agora um eminente e respeitado acadêmico e escritor.

Mergulhar na obra de Eugeniusz foi ensejo para recuperar também da amizade entre seu orientador Gisálio Cerqueira Filho e Roberto Lyra Filho, e, a propósito, um acervo inédito de cartas que então trocavam (1981), ao menos aquelas enviadas por Roberto Lyra Filho, manuscritas, preservadas em carbono e reprografadas, nas quais há achados preciosos. Menciono a Carta a Gisálio, Brasília, 27.1.81. Dela retiro um trecho raro, no qual o criador da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, explica o sentido que atribui ao conceito de infradialetização:

“(IX) Tu me pedes que te explique em que sentido emprego a palavra ‘infradialetização’: convenhamos em que há, fundamentalmente, dois tipos de pensamento (e não só de pensamento, pois a dialética não é só mental, mas da totalidade); o pensamento lógico-abstrato, que ‘supõe’ uma realidade sem contradições a traduzir num pensamento ‘lógico’; e o pensamento dialético, que, em lugar de excluir arbitrariamente a contraditoriedade do real, modela uma lógica-ontológica (dialética), que ABSORVE essas contradições e, assim, ‘reflete’ o real, em lugar de pô-lo numa camisa de força. Não posso, explicar aqui, toda a riqueza da dialética; mas dou por sabido, entre nós, porque és um homem culto, que entendes essa oposição dos dois tipos de pensamento. Nessa perspectiva, nota-se que é tão forte a pulsão ideológica, advinda de sustentação sociológica (que aqui não há tempo de analisar) do pensamento lógico-abstrato (entre nós, isto é, em nosso ciclo histórico-social, ele tem ligação básica, através de muitas e manhosas mediações, com a estrutura burguesa) que, muitas vezes, o pensador (o intelectual de qualquer tipo), que professa uma orientação dialética, perde o fôlego dialético; retorna à linearidade more geométrico do pensamento lógico-abstrato, idealista, do que Gabel (ligando falsa consciência, ‘racionalidade mórbida’ e a pulsão infraestrutural, através da práxis rombuda, também linear, que ideologiza igualmente) – do que Gabel, repito, chama de ‘esquisofrenia social’. Esse colapso teórico-prático (não se separam práxis e teoria), então, desdialetiza as funções cognitivas; cai aquém da dialética e, pretendendo ser dialético – isto é, estar à altura da dialética real – ou de todo se aparta da dialética (expressa ou implicitamente) ou continua a ‘fingir’ (inconsciente de seu colapso) que dialetiza, mas, na realidade, está infra-dialetizando. Aliás, como Gabel demonstra, muitas concepções da falsa consciência são infradialetizadas (La Fausse Conscience, Paris, Editions de Minuit, 1962, p. IV e passim), na medida em que movimentam esquemas causais-explicativos bastante mecanicistas e de modelo positivista. Um exemplo característico das infradialetizações é fornecido pelo quadro de ‘explicações’, ‘determinações’ e ‘sobredeterminações’ que armam blocos maciços, feixes de derivações, com dois traços infredialéticos: eliminaram a flexibilidade, o devir intrínseco e a ligação da totalidade com o movimento; e excetuam a si mesmos, ‘cientistas’, ‘objetivos’, ‘lúcidos’, ‘rigorosos’, ‘certos’, donos da ‘verdade’ toda impante – isto é, reduzem o arsenal de idéias do marxismo a mais uma Teoria de estilo positivista. Alttusser faz isso (as duas coisas), com frequência. Mas deixemos em paz o pobre homem, que está vivendo o seu drama existencial na última fase dum problema psíquico arrasador. Não; não estou sugerindo que as teorias alttusserianas foram ‘determinadas’ pelos seus problemas psíquicos. Nem posso, daqui, e sem dados válidos, sequer visualizar qual é o problema psíquico, dele, Louis Altthusser, embora algum haja, e seja grave (ou ele não teria estrangulado a esposa). Mas NÃO CONFIO na pseudo-psiquiatria (a tal, que a antipsiquiatria – ou, como prefiro, à Basaglia, a psiquiatria alternativa – denuncia, com razão). Os ‘diagnósticos’ dos ‘peritos’ que lá atuam – e que aqui alguns repetem de ouvido, via comunicados jornalísticos (!!) – não vale um peido.

Na sequência, ítem X, Lyra Filho vai esclarecer o que chama de ‘monismo verdadeiro e rigorosamente dialético’. Mas esse é, ele diz, uma questão bem mais complexa e que vou deixar para apresentá-la quando uma outra boa ocasião se apresente.

Na entrevista que concedi ao Autor, com os meus limites de conhecimento demarco alguns aspectos da complexa relação entre Lyra pai e Lyra filho. Não coloquei na entrevista, mas sob o ângulo da influência política, posso aqui, trazer ainda, dessa relação, o que o próprio Roberto Lyra Filho põe em relevo, como conselho para o qual guardou redobrada atenção:

Há perto de 40 anos, dizia meu pai Roberto Lyra, que ‘se o centro resulta da média entre a extrema revolucionária e a extrema reacionária, é claro que, fixada praticamente ao centro a suposta esquerda legislativa e executiva, a direita esgotará a margem de retrocesso e o poder exprimirá recuos insuportáveis, subversivos do progresso e dissolventes das quotas já incorporadas à ordem’.

Assim, prossegue Lyra pai, ‘os conservadores serão substituídos pelos retrógrados’, com ‘ameaça permanente ao statu quo’, isto é à dose mínima da democracia, que já conquistamos e à qual não teríamos chegado, sem desprezar as ameaças da direita e cotucar a preguiça do centro e da velha ‘esquerda’ acomodatícia.

E note-se que esses conselhos, revelam o velho socialista, ainda em 1949, numa lúcida leitura do conjuntural político (LYRA, Roberto et alii. Três gerações apreciam os problemas do Brasil e do mundo. Rio de Janeiro: REBRAC, 1949), ainda não experimentadas nas injunções de ministro da educação cargo que ocupou no período parlamentarista, no gabinete socialista de Brochado da Rocha (1962).