Layla
Jorge Teixeira Cesar (*)
A
internacionalização do ensino superior não é um fenômeno recente. O intercâmbio
cultural entre universidades e sistemas é potencialmente benéfico e sempre
existiu. Nas últimas décadas, todavia, este processo foi catalisado pela
consolidação de uma “sociedade do conhecimento”, que se expressa na transição
do modo de produção da economia para valorização da inovação tecnológica e de
bens simbólicos.
São
caraterísticas desse processo de globalização pela sociedade do conhecimento: a
expansão do setor terciário, um regime de crescimento econômico dependente de
patentes, e a demanda por alta qualificação profissional para atender à
complexificação do mercado de trabalho. A educação superior, neste contexto, se
torna um foco central de investimento, o que parcialmente explica a crescente
importância das universidades no mundo contemporâneo.
No que toca
especialmente ao ensino superior, os efeitos deste processo podem ser
identificados na integração da pesquisa à agenda das universidades, no uso do
inglês como língua franca para comunicação científica, no crescente mercado
editorial acadêmico em nível internacional, na ampliação do mercado de trabalho
para pesquisadores(as) e docentes, e no uso de tecnologias de informação para
difusão de conhecimento em plataformas online (Altbach & Knight, 2007)
Esta nova
ênfase da internacionalização num contexto de globalização carrega a ameaça de
que o processo de integração econômica implique na organização dos distintos
sistemas de ensino superior em uma rede altamente hierarquizada, como se
expressa atualmente nos rankings internacionais de avaliação do ensino
superior. A distribuição de recursos financeiros, prestígio e legitimidade para
definição da validade do conhecimento científico produzido numa instituição
estariam condicionados a esta estratificação.
Como
consequência, as agendas de políticas educacionais de quaisquer sistemas
deixariam de priorizar sua conexão com demandas locais para focar na formação
de blocos regionais e internacionais que permitiriam a expansão do mercado de
ensino superior.
Evidentemente,
este processo pode trazer benefícios secundários para aqueles sistemas que
estão na base da estratificação. É preciso atentar, todavia, para a permanente
tensão entre globalização e anulação ou neutralização das expressões políticas
e culturais que não condigam com os interesses dominantes na estrutura de
divisão internacional do trabalho intelectual em que nos encontramos.
Além do grau de
desenvolvimento econômico e financeiro, há outros fatores que constituem esta
tensão entre internacionalização e preservação das formas culturais locais. A
dimensão da população, seu idioma, e o grau de consolidação do mercado
editorial local, por exemplo, são elementos centrais a este cenário.
A Finlândia é
um caso interessante para observar a complexidade do fenômeno de
internacionalização do ensino superior, que sempre se apresenta em duas vias.
Por um lado, é
a diversidade cultural interna à Finlândia que sofre os efeitos da
internacionalização sobre o uso da língua. O idioma finlandês não possui
paralelo em outras partes do mundo, e seu uso é praticamente restrito à
população nacional. Os pouco mais de 5 milhões de habitantes finlandeses não
constituem uma comunidade científica ou mercado editorial grandes o suficiente
para opôr resistência ao movimento de anglofonização da academia. A
internacionalização do ensino superior finlandês, portanto, é atingida com muita
força pela harmonização do inglês como língua franca, e existe uma preocupação
em relação ao desaparecimento do idioma finlandês do seu próprio mercado
editorial científico. As consequências deste processo se referem não apenas à
natureza linguística, já que um universo de significados possíveis se perde com
o encerramento do pensamento científico em um idioma, como também de ordem
democrática, já que se diminui a acessibilidade do conteúdo publicado, isolando
a população local do acesso à produção científica que se dá a partir das
universidades, majoritariamente financiadas pelo investimento público.
Por outro lado,
é a Finlândia que atua promovendo correntes de internacionalização quando
propõe programas de cooperação internacional com países “subdesenvolvidos” ou
“em desenvolvimento” (o que quer que signifiquem estes termos em sentido
prático). A ideia por trás deste processo é que, em relação a países com nível
de desenvolvimento econômico elevado, não seria necessário agir em torno à
promoção da internacionalização. Esta seria garantida espontaneamente pela
conurbação dos sistemas em
expansão. Com relação aos países menos desenvolvidos, cujos
sistemas de ensino superior não tenham ainda grande projeção, seria necessário
criar vias artificiais de cooperação, para acelerar sua internacionalização e
“ajudá-los a atender suas crescentes demandas por educação”.
Foi com base
neste raciocínio que o governo finlandês propôs o projeto Norte-Sul-Sul,
inscrito no capítulo “Responsabilidade global” do programa federal de
estratégias de internacionalização para o ensino superior.
A ideia central
do projeto Norte-Sul-Sul é oferecer recursos para que departamentos ou outras
unidades ligadas à instituições de ensino superior na Finlândia promovam
intercâmbio de professores e estudantes e organizem cursos intensivos nos
países do “Sul” com que estabeleçam parceria. O programa existe há mais de uma
década e conta atualmente com iniciativas na Etiópia, Quênia, Moçambique,
Nepal, Tanzânia, Vietnã e Zâmbia.
O objetivo
declarado no projeto é a capacitação da população local para o desenvolvimento
político e econômico de suas comunidades, com mecanismos especiais de prevenção
da evasão de cérebros. Não debate, todavia, outros possíveis efeitos da
cooperação, como a homogeneização dos currículos e a redução da diversidade
institucional nos países onde atua.
Considerando a
importância fundamental da internacionalização para a ampliação de quaisquer
sistemas de ensino superior, a questão que nos resta é: como organizar formas
de cooperação internacional que minimizem ou que não incorram em perdas para a
diversidade cultural? Que sejam politicamente equilibradas em termos das
contribuições simbólicas de cada uma das partes, independentemente de seu nível
de desenvolvimento econômico?
Um indicador
possível para responder a este desafio é atentar para o grau de emancipação
produzido por uma dada iniciativa. Se esta acelera a criação de uma classe
local de educadores – como pretende o programa finlandês Norte-Sul-Sul –, então
se está cooperando para construção de capacidades ligadas à cultura local. Caso
contrário, se uma dada iniciativa retarda a criação de uma classe local de
educadores, então se está operando a manutenção da dependência destes sistemas.
Esta relação também está condicionada à dimensão dos acordos: quando
organizados de maneira pontual, entre instituições, mais facilmente serão
revisados e equilibrados do quando organizados em bloco, onde as necessidades
específicas se perdem.
Um exemplo de
cooperação internacional potencialmente danosa é o número crescente de filiais
de grandes universidades ao redor do mundo, condição viabilizada pela
Organização Mundial do Comércio desde o final dos anos 90, quando esta
reconheceu o ensino superior como mercadoria comercializável e passível de
responder às mesmas regras que quaisquer outras commodities. Quanto mais
uma universidade estrangeira que se estabeleça em um território veja os
habitantes locais como consumidores, menos se interessará em promover a sua
emancipação e formar educadores que pudessem organizar seu próprio sistema, uma
vez que seu foco será a manutenção de uma reserva de mercado.
É possível
estender esta lógica para compreender também como se dão estas relações de
tensão em nível local, quando identificamos as próprias universidades como
veículos de socialização. Se não desejamos que as universidades exerçam uma
função colonizatória, contribuindo para a manutenção da estratificação social e
de um regime de dominação intelectual pelas elites, é preciso que estas criem condições
para acelerar a democratização do acesso à informação e emancipar a população
como produtora de conhecimento – o que se organiza através das cotas, por
exemplo, mas também através do reconhecimento de saberes não acadêmicos em seu
seio.
Referências:
Altbach, Philip & Knight, Jane.
(2007). The Internationalization of Higher Education: Motivations and
Realities. Journal
of Studies in International Education. 2007, 11: 290.
Texto do documento de estratégias para internacionalização do ensino superior publicado pelo Ministério da Educação da Finlândia: http://www.okm.fi/export/sites/default/OPM/Julkaisut/2009/liitteet/opm23.pdf?lang=fi
ResponderExcluirTexto do projeto Norte-Sul-Sul: http://www.cimo.fi/programmes/north-south-south
Como nota de rodapé se acrescenta ainda que a experiência "Encontro de Saberes", organizada pelo prof. José Jorge de Carvalho na UnB desde o ano de 2009, aparece como exemplo de formatos de integração de saberes não acadêmicos à universidade