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domingo, 18 de maio de 2014

4ª Carta sobre ensino superior, de Tampere, Finlândia: Cooperação internacional e o direito à diversidade cultural



Layla Jorge Teixeira Cesar (*)

A internacionalização do ensino superior não é um fenômeno recente. O intercâmbio cultural entre universidades e sistemas é potencialmente benéfico e sempre existiu. Nas últimas décadas, todavia, este processo foi catalisado pela consolidação de uma “sociedade do conhecimento”, que se expressa na transição do modo de produção da economia para valorização da inovação tecnológica e de bens simbólicos.
São caraterísticas desse processo de globalização pela sociedade do conhecimento: a expansão do setor terciário, um regime de crescimento econômico dependente de patentes, e a demanda por alta qualificação profissional para atender à complexificação do mercado de trabalho. A educação superior, neste contexto, se torna um foco central de investimento, o que parcialmente explica a crescente importância das universidades no mundo contemporâneo.
No que toca especialmente ao ensino superior, os efeitos deste processo podem ser identificados na integração da pesquisa à agenda das universidades, no uso do inglês como língua franca para comunicação científica, no crescente mercado editorial acadêmico em nível internacional, na ampliação do mercado de trabalho para pesquisadores(as) e docentes, e no uso de tecnologias de informação para difusão de conhecimento em plataformas online (Altbach & Knight, 2007)
Esta nova ênfase da internacionalização num contexto de globalização carrega a ameaça de que o processo de integração econômica implique na organização dos distintos sistemas de ensino superior em uma rede altamente hierarquizada, como se expressa atualmente nos rankings internacionais de avaliação do ensino superior. A distribuição de recursos financeiros, prestígio e legitimidade para definição da validade do conhecimento científico produzido numa instituição estariam condicionados a esta estratificação.
Como consequência, as agendas de políticas educacionais de quaisquer sistemas deixariam de priorizar sua conexão com demandas locais para focar na formação de blocos regionais e internacionais que permitiriam a expansão do mercado de ensino superior.
Evidentemente, este processo pode trazer benefícios secundários para aqueles sistemas que estão na base da estratificação. É preciso atentar, todavia, para a permanente tensão entre globalização e anulação ou neutralização das expressões políticas e culturais que não condigam com os interesses dominantes na estrutura de divisão internacional do trabalho intelectual em que nos encontramos.
Além do grau de desenvolvimento econômico e financeiro, há outros fatores que constituem esta tensão entre internacionalização e preservação das formas culturais locais. A dimensão da população, seu idioma, e o grau de consolidação do mercado editorial local, por exemplo, são elementos centrais a este cenário.
A Finlândia é um caso interessante para observar a complexidade do fenômeno de internacionalização do ensino superior, que sempre se apresenta em duas vias.
Por um lado, é a diversidade cultural interna à Finlândia que sofre os efeitos da internacionalização sobre o uso da língua. O idioma finlandês não possui paralelo em outras partes do mundo, e seu uso é praticamente restrito à população nacional. Os pouco mais de 5 milhões de habitantes finlandeses não constituem uma comunidade científica ou mercado editorial grandes o suficiente para opôr resistência ao movimento de anglofonização da academia. A internacionalização do ensino superior finlandês, portanto, é atingida com muita força pela harmonização do inglês como língua franca, e existe uma preocupação em relação ao desaparecimento do idioma finlandês do seu próprio mercado editorial científico. As consequências deste processo se referem não apenas à natureza linguística, já que um universo de significados possíveis se perde com o encerramento do pensamento científico em um idioma, como também de ordem democrática, já que se diminui a acessibilidade do conteúdo publicado, isolando a população local do acesso à produção científica que se dá a partir das universidades, majoritariamente financiadas pelo investimento público.
Por outro lado, é a Finlândia que atua promovendo correntes de internacionalização quando propõe programas de cooperação internacional com países “subdesenvolvidos” ou “em desenvolvimento” (o que quer que signifiquem estes termos em sentido prático). A ideia por trás deste processo é que, em relação a países com nível de desenvolvimento econômico elevado, não seria necessário agir em torno à promoção da internacionalização. Esta seria garantida espontaneamente pela conurbação dos sistemas em expansão. Com relação aos países menos desenvolvidos, cujos sistemas de ensino superior não tenham ainda grande projeção, seria necessário criar vias artificiais de cooperação, para acelerar sua internacionalização e “ajudá-los a atender suas crescentes demandas por educação”.
Foi com base neste raciocínio que o governo finlandês propôs o projeto Norte-Sul-Sul, inscrito no capítulo “Responsabilidade global” do programa federal de estratégias de internacionalização para o ensino superior.
A ideia central do projeto Norte-Sul-Sul é oferecer recursos para que departamentos ou outras unidades ligadas à instituições de ensino superior na Finlândia promovam intercâmbio de professores e estudantes e organizem cursos intensivos nos países do “Sul” com que estabeleçam parceria. O programa existe há mais de uma década e conta atualmente com iniciativas na Etiópia, Quênia, Moçambique, Nepal, Tanzânia, Vietnã e Zâmbia.
O objetivo declarado no projeto é a capacitação da população local para o desenvolvimento político e econômico de suas comunidades, com mecanismos especiais de prevenção da evasão de cérebros. Não debate, todavia, outros possíveis efeitos da cooperação, como a homogeneização dos currículos e a redução da diversidade institucional nos países onde atua.
Considerando a importância fundamental da internacionalização para a ampliação de quaisquer sistemas de ensino superior, a questão que nos resta é: como organizar formas de cooperação internacional que minimizem ou que não incorram em perdas para a diversidade cultural? Que sejam politicamente equilibradas em termos das contribuições simbólicas de cada uma das partes, independentemente de seu nível de desenvolvimento econômico?
Um indicador possível para responder a este desafio é atentar para o grau de emancipação produzido por uma dada iniciativa. Se esta acelera a criação de uma classe local de educadores – como pretende o programa finlandês Norte-Sul-Sul –, então se está cooperando para construção de capacidades ligadas à cultura local. Caso contrário, se uma dada iniciativa retarda a criação de uma classe local de educadores, então se está operando a manutenção da dependência destes sistemas. Esta relação também está condicionada à dimensão dos acordos: quando organizados de maneira pontual, entre instituições, mais facilmente serão revisados e equilibrados do quando organizados em bloco, onde as necessidades específicas se perdem.
Um exemplo de cooperação internacional potencialmente danosa é o número crescente de filiais de grandes universidades ao redor do mundo, condição viabilizada pela Organização Mundial do Comércio desde o final dos anos 90, quando esta reconheceu o ensino superior como mercadoria comercializável e passível de responder às mesmas regras que quaisquer outras commodities. Quanto mais uma universidade estrangeira que se estabeleça em um território veja os habitantes locais como consumidores, menos se interessará em promover a sua emancipação e formar educadores que pudessem organizar seu próprio sistema, uma vez que seu foco será a manutenção de uma reserva de mercado.
É possível estender esta lógica para compreender também como se dão estas relações de tensão em nível local, quando identificamos as próprias universidades como veículos de socialização. Se não desejamos que as universidades exerçam uma função colonizatória, contribuindo para a manutenção da estratificação social e de um regime de dominação intelectual pelas elites, é preciso que estas criem condições para acelerar a democratização do acesso à informação e emancipar a população como produtora de conhecimento – o que se organiza através das cotas, por exemplo, mas também através do reconhecimento de saberes não acadêmicos em seu seio.

Layla Jorge Teixeira Cesar, mestre em Sociologia pela UnB, foi assessora do Reitor José Geraldo de Sousa Junior, no período de seu mandato na UnB (2008-2012). Participa atualmente do programa MARIHE - Mestrado em Pesquisa, Inovação e Gestão de Ensino Superior, uma ação do consórcio entre universidades na Àustria, Finlândia, Espanha, China e Alemanha. Faz parte da rede Diálogos Lyrianos – O Direito Achado na Rua

Referências:
Altbach, Philip & Knight, Jane. (2007). The Internationalization of Higher Education: Motivations and Realities. Journal of Studies in International Education. 2007, 11: 290.




Um comentário:

  1. Texto do documento de estratégias para internacionalização do ensino superior publicado pelo Ministério da Educação da Finlândia: http://www.okm.fi/export/sites/default/OPM/Julkaisut/2009/liitteet/opm23.pdf?lang=fi

    Texto do projeto Norte-Sul-Sul: http://www.cimo.fi/programmes/north-south-south

    Como nota de rodapé se acrescenta ainda que a experiência "Encontro de Saberes", organizada pelo prof. José Jorge de Carvalho na UnB desde o ano de 2009, aparece como exemplo de formatos de integração de saberes não acadêmicos à universidade

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