Justiça Transformativa. A Participação da Comunidade na Transformação das Violências
Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

Nesta edição da Coluna O Direito Achado na Rua, me detenho no livro de Gláucia Falsarelli Foley, resultado de sua tese de doutoramento na UnB, no Programa interdisciplinar de pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania. Gláucia, cidadã honorária de Brasília e recentemente homenageada pela Câmara Legislativa (https://www.cl.df.gov.br/-/resolucao-de-conflitos-via-consenso-justica-comunitaria-e-destaque-na-cldf#:~:text=A%20cerim%C3%B4nia%20realizada%20no%20Plen%C3%A1rio,Comunit%C3%A1ria%2C%20do%20qual%20%C3%A9%20coordenadora), foi a juíza responsável em Brasília, pelo programa de justiça comunitária, quando se refere ao conjunto de movimentos necessários para impulsionar a universalização do acesso à Justiça, pleiteando, assim, por uma Justiça sem jurisdição porque, repito com ela, “efetivamente operada na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela comunidade” (a propósito ver https://estadodedireito.com.br/justica-comunitaria/).
Conforme a descrição da Editora, em Justiça Transformativa. A Participação da Comunidade na Transformação das Violências (de Gláucia Foley. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2025, 376 p., a autora propõe Círculos Comunitários Transformativos como estratégia dialógica e colaborativa para o enfrentamento das expressões da violência, sob as diretrizes da Justiça Transformativa. A obra evidencia os limites das práticas de mediação e restaurativas, revelando como as injustiças estruturais e simbólicas são reproduzidas. Referenciada em Nancy Fraser e Paulo Freire, a autora defende um modelo democrático participativo, que rompe com os paradigmas punitivistas, focando na igualdade social, no reconhecimento das identidades e na transformação das violências que permeiam as relações sociais pautadas nas exclusões e nas hierarquias. Trata-se de uma justiça participativa que convida a comunidade a refletir sobre o futuro ansiado.
Os Círculos Comunitários Transformativos, conduzidos de forma horizontal, impulsionam a adoção de novas formas de sociabilidade e o protagonismo político dos participantes. Elementos como o objeto da fala, os valores compartilhados e a decisão consensuada estruturam a dinâmica e constroem a empatia e o respeito mútuo. O livro registra a aplicação da metodologia em oficinas realizadas com mulheres em comunidades vulnerabilizadas no Rio de Janeiro, que ensejaram a elaboração de projetos comunitários com impacto direto na realidade local. A experiência revela o papel político dos Círculos e sua potência transformadora na luta contra injustiças estruturais e simbólicas e na reconstrução de relações sociais emancipatórias.
A obra decorre de impulso acadêmico, em sede doutoral, razão pela qual a autora presta tributo ao ambiente que tornou possível a reflexão epistemológica sobre o registro empírico da rica experiência que tornou possível a tese traduzida nesta publicação. De minha parte eu já vinha acompanhando o itinerário de Gláucia Foley desde a sua judicatura inovadora refletida – eu o disse em diálogo com ela, desde que a percebi referir-se ao “conjunto de movimentos necessários para impulsionar a universalização do acesso à Justiça, aludindo a uma Justiça sem jurisdição porque efetivamente operada na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela comunidade” (conforme seu artigo Acesso universal à Justiça, Correio Braziliense, Brasília, 26/06/2007, pág. 19, mas também a recensões de outros trabalhos que ela desenvolveu, valendo por em relevo Justiça Comunitária. Por uma justiça de emancipação. Belo Horizonte. Editora Fórum, 2010 (https://estadodedireito.com.br/justica-comunitaria/) e, especialmente este Justiça Transformativa. A Participação da Comunidade na Transformação das Violências.
Nesse trabalho – que conheci ainda na versão de tese (https://estadodedireito.com.br/justica-transformativa-a-participacao-da-comunidade-na-transformacao-das-violencias/), o que ela observa, ouvindo as assessorias jurídicas de movimentos sociais, foi extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
Em contrapartida, pediam esses prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.
Retomo, em face disso, as conclusões de Gláucia, no sentido, de que “portanto, para a Justiça Transformativa, o “nascimento de uma comunidade” prescinde da ocorrência de uma violência direta. Onde houver o desenvolvimento de práticas sociais que envolvam análise crítica da realidade, somada à construção de relações inclusivas e cooperativas e à participação democrática na elaboração de políticas públicas – tal qual delineado na metodologia desta pesquisa –, haverá potencial para que a comunidade seja protagonista dos processos de transformação de suas violências. A construção de comunidade requer, objetivamente, planejamento para a identificação das demandas, organização das ações e busca de parcerias. No entanto, não se cria comunidade sem o desenvolvimento da extraordinária capacidade humana de gerar entusiasmo, afetado pelo interesse de nos encontrarmos, nos ouvirmos e nos reconhecermos”.
Poder perceber o desenvolvimento de práticas sociais que envolvam análise crítica da realidade, leva aos achados promovidos por Gláucia Foley, que claramente configuram, em comunidades do Rio de Janeiro, cuja atuação provinda da burocracia do estado, mais expõe a falência da ação política, como violência institucional, muito distinta da política verdadeira, tal como Gláucia descreve nas iniciativas e nas práticas comunitárias, muito distintas do estigma de criminalidade que se lhes têm atribuído. Os círculos comunitários transformativos, são um espaço do encontro e da palavra, não o do silêncio e do tiro. Quando o Estado só sabe agir pela força, cessa a política e começa a barbárie, como assim procurei mostrar (https://brasilpopular.com/complexo-do-alemao-quando-a-estatistica-e-a-linguagem-oficial-esvaziam-o-humano-do-discurso-politico/).
Penso, por isso, que há um desafio a enfrentar, estando de acordo com as conclusões de Gláucia lançadas no livro. E esse desafio está em relacionar a articulação necessária que se deva estabelecer entre o âmbito local onde se dá a mobilização de comunidade, com o âmbito nacional (e global), onde se dá a mobilização de sociedade. Retomo a uma questão que guarda pertinência com aquela filosofia do agir humano, de que fala o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, S.J., no texto com que abriu o Seminário Ética, Justiça e Direito: “No momento em que os temas ‘ética e política’ ou o ‘direito de todos e a justiça de todos’ tornam-se temas de sensação nos meios de comunicação de massa, e em que o problema do exercício eficaz da administração da justiça deixa o recinto austero dos tribunais para tornar-se problema social das ruas e dos campos, convém voltar nossa atenção e nossa reflexão para a tarefa primordial da educação ética que é a verdadeira educação para a liberdade. O mundo ético não é uma dádiva da natureza. É uma dura conquista da civilização” (As referência estão em PINHEIRO, Pe. José Ernanne; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; DINIS, Melillo; SAMPAIO, Plínio de Arruda (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: Editora Vozes, 1996).
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)