quarta-feira, 30 de abril de 2025

 

Novo Velho Inimigo: O Antiterrorismo no Brasil e o Retorno do Discurso da Doutrina de Segurança Nacional

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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 José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho. Novo Velho Inimigo: O Antiterrorismo no Brasil e o Retorno do Discurso da Doutrina de Segurança Nacional. Londrina: Editora Thoth, 2025, 175 p.

 

                   

José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, que é Mestre em Direito, Estado e Constituição, pela Universidade de Brasília (UnB), se credencia para a análise que oferece neste livro, com o acumulado de um percurso acadêmico que antecede a sua titulação, e que pode ser aferido em alguns de seus ensaios anteriores, todavia, aproximativos do tema de sua dissertação.

Assim, por exemplo, o seu ensaio A suposta superação da Doutrina de Segurança Nacional pela tipificação dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito, publicado em Crimes contra o Estado Democrático de Direito. Em Perspectiva, publicado em 2024, pela Editora D’Plácido, na Coleção Acesso à Justiça e Políticas Públicas, coordenada por Alberto Carvalho Amaral, Bruno Amaral Machado e Cristina Zackseski, que tembém organizam o volume no qual José Roberto traz o seu ensaio.

José Roberto foi meu aluno no curso de pós-graduação e se envolveu fortemente no processo de pesquisa que o programa acadêmico, a partir da linha que co-lidero – O Direito Achado na Rua – e que dá nome ao Grupo de Pesquisa do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq.

Assim que, em obra decorrente desse período – O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, ele venha a se destacar como co-organizador e autor.

Confira-se em https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/, a recensão da obra e a distinção de Em Três Décadas do Sujeito Coletivo de Direito: um Panorama Crítico, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, artigo em que ele faz um balanço crítico acerca da produção acadêmica sobre o conceito de Sujeito Coletivo de Direito. Na primeira parte do ensaio, o autor delimita um possível diálogo entre a produção d’O Direito Achado na Rua e o Humanismo Dialético com a noção de subjetividade jurídica proposta por Pachukanis; e, na segunda parte, por sua vez, observa que, no contexto político do Século XXI, a dimensão materializadora dos direitos deve ser aquela a ser mais ressaltada ao se dissertar sobre o Sujeito Coletivo de Direito.

Esse trabalho, aliás, mostra o quanto a reflexão de José Roberto se amplia com perspectivas interdisciplinares aptas a estabelecer conexões problemáticas e complexas para melhor articular os temas monográficos que recorta em abordagens mais avançadas, tal como o faz em sua dissertação.

O livro tem origem na Dissertação, Defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UnB, em maio de 2024, tendo como Orientador o professor Marcelo Neves e participando da Banca as professoras Camila Cardodo de Mello Prando e Cristina Zackseski, além do Professor Rogerio Dultra dos Santos.

O resumo da dissertação se presta também para sintetizar a obra publicada:

 

O estudo em mãos objetiva responder à pergunta “É possível evidenciar a influência (ou retorno) da Doutrina de Segurança Nacional na virada discursiva/conceitual de inimigo externo para inimigo interno nos Projetos de Lei brasileiros relativas ao terrorismo?”. Inicialmente, em uma delimitação conceitual, é definido o que se entende por “inimizade”, “inimigo”,“medo”,“terror”,“terrorismo ”e“ terrorista”. Diante de tal explicitação, constrói-se, nas segunda parte, tendo no terrorista um inimigo, a história da Doutrina de Segurança Nacional e seu contexto na Guerra Fria, dando ênfase à questão do inimigo interno.Em seguida, na terceira parte, inicialmente, argumenta-se tendo em vista a transição no Brasil do inimigo externo (vulgarizado na imagem do terrorista muçulmano internacional, quem arcou o advento da Lei n.13.260/2016) para o inimigo interno (a figura do terrorista esquerdista subversivo). No fim da terceira parte, é analisada a influênciada Doutrina de Segurança Nacional nos Projetos de Lei pesquisados no site da Câmara dos Deputados (a partir das palavras “Lei 13.260 ”e“ Comunismo”). O trabalho conclui que o anticomunismo presente em tais instrumentos, somado à defesa do Ocidente contra um inimigo interno (mas movido por uma conspiração internacional) que aterroriza a população e degenera a sociedade, se mostra, portanto, como uma influênciada Doutrina de Segurança Nacional na legislação brasileira. Trata-se, nesse sentido, de uma tendência minoritária, contudo, não menos significativa, dado que demonstra que o caminho adotado em tais vias para se combater o terrorismo é um marcado pela nostalgia em relação ao ideário da Ditadura Militar Brasileira.

 

O Sumário da obra, traz o campos de identificação do Autor, e as indicações de outros elementos pré-textuais, o prefácio, as referências e, sobre o seu núcleo expositivo, a composição do livro:

CAPÍTULO 1

INIMIZADE E TERROR

1.1 O Inimigo Político

1.1.1 A inimizade e a desumanização

1.2 Um breve excurso: o medo diante do inimigo

1.2.1 Medo e terror

1.3 Apóstata da História: O Terrorista roda o Mundo

1.3.1 O que é o terrorismo?

1.3.2 O terrorismo na história

1.3.3 Quem é o terrorista?

1.4 O Anticomunismo como uma canalização de inimizades

 

CAPÍTULO 2

CONSTRUINDO O VELHO INIMIGO

2.1 O anticomunismo no Brasil

2.2 A Doutrina de Segurança Nacional

 

CAPÍTULO 3

O NOVO VELHO INIMIGO

3.1O terrorismo no Brasil no período Copa-Olimpíadas: Inimigo externo

3.1.1 Uma digressão: o Brasil e o inimigo externo pós-11/09

3.1.2 Olimpíadas de 2016 e o Estado Islâmico

3.2 O terrorismo no Brasil e a onda conservadora: Inimigo interno

3.2.1 A volta dos que não foram: as práticas da DSN incorporadas na Nova República

3.2.2 O que há de novo? Em que sentido é possível um retorno?

3.2.3 O retorno do terrorista, comunista e subversivo na legislação

 

CONCLUSÃO

 

O livro, conforme a descrição da Editora, oferece uma análise aprofundada de como a imagem do terrorista evoluiu na história brasileira a partir do século XX, examinando as mudanças de percepção e a influência das doutrinas políticas e sociais na formação do conceito de terrorismo no Brasil contemporâneo. Através de uma investigação crítica, o autor revela como essas transformações refletem e impactam o cenário político e social atual.

Dessa investigação resulta, também como síntese preparada para apresentar a obra, que:

 

Ao longo do século XXI, o Brasil consolidou a imagem do terrorista como um Inimigo Externo, inspirado pela figura do terrorista muçulmano internacional que ganhou destaque após os ataques de 11 de setembro de 2001 e a subsequente Guerra ao Terror dos Estados Unidos. Essa visão foi consolidada na legislação brasileira com a promulgação da Lei 13.260/2016, em resposta ao crescente temor relacionado ao Estado Islâmico e aos possíveis riscos associados às Olimpíadas do Rio de Janeiro.

No entanto, uma mudança significativa está em curso: há um esforço coordenado para reconfigurar o terrorista como um inimigo interno. Esta transformação é evidenciada por uma série de Projetos de Lei que buscam redefinir o terrorista como o comunista “subversivo” e os movimentos sociais. Os parlamentares estão adotando uma abordagem inspirada na Doutrina de Segurança Nacional da Ditadura Militar Brasileira para promover essa nova percepção e assim, reprimir projetos políticos tidos como antagônicos

 

Do que se cuida, diz Cristina Zackzeski, no Prefácio, é o dar-se conta que o trabalho de José Roberto “explora o paradoxo de que esse inimigo não tem nada de novo, pois nos textos de projetos de lei examinados observa-se o comunista requentado que sintetiza os medos compartilhados, pois dele pode se esperar tudo, a qualquer momento, e proveniente de todo lugar”.

Tive ensejo de constatar vivamente porções desse paradoxo quando participei, como convidado da chamada CPI do MST, instalada na Câmara dos Deputados em 2024, afinal melancolicamente encerrada, sem relatório, mas que enquanto movimento difundido, serviu para expor todos esses elementos que a Obra organiza.

Veja-se, a propósito, meu artigo na Coluna O Direito Achado na Rua, publicada no Jornal Brasil Popular – https://brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/ – “CPI do MST: contexto e diagnóstico da situação agrária brasileira”.

Não foi outra a minha constatação, apresentada no meu artigo, de que, “embora, sob consideração teórica, se reconheça como legítimas as formas de ação coletiva de natureza contestadora, solidária e propositiva dos movimentos sociais, a dialeticidade de suas múltiplas práticas sociais, não necessariamente é vista, no plano da política, como compromisso com a coletividade para a construção de esfera pública democrática, em cujo âmbito se definem projetos emancipatórios, sensíveis à diversidade cultural e à justiça social. Ao contrário, a expressão conflitiva dessa dialeticidade tem levado, muito em geral, a uma reação despolitizada, da qual não são imunes o Ministério Público, o Judiciário e até o Legislativo, abrindo-se à tentação de responder de forma pouco solidária e até criminalizadora a essas práticas”.

Teria sido muito proveitoso ao estudo de José Roberto incluir em seus pressupostos, perspectivas de diferenciação do direito, entre nós, tão bem aplicadas a estudos de mesma base, como o faz o Professor Cristiano Paixão, da Faculdade de Direito da UnB.

​A tese de doutorado de Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinho, intitulada “A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro de 2001 e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: um estudo a partir da teoria da diferenciação do direito”, defendida na UFMG sob orientação de Menelick de Carvalho Neto, também nosso colega professor na UnB, analisa criticamente como os Estados Unidos responderam juridicamente aos ataques de 11 de setembro e os efeitos dessa resposta sobre o constitucionalismo contemporâneo.​

Na tese Cristiano Paixão argumenta que, após os atentados de 11 de setembro, os EUA adotaram medidas que suspenderam garantias constitucionais fundamentais, como o devido processo legal e o direito à defesa. Ele destaca casos de prisões arbitrárias, onde indivíduos foram detidos por tempo indeterminado, muitas vezes sem acesso a advogados ou julgamento, e mantidos em locais como a Base de Guantánamo ou em navios-prisão, criando um “limbo jurídico”.​

A tese utiliza a teoria da diferenciação do direito para mostrar, tal como procura fazer José Roberto, como o sistema jurídico norte-americano criou uma distinção entre “amigos” e “inimigos”, aplicando diferentes normas e procedimentos legais a cada grupo. Essa diferenciação resultou na criação de um “direito de exceção”, onde os chamados inimigos eram tratados fora das normas jurídicas tradicionais.​

O professor Cristiano Paixão interpreta o terrorismo não apenas como uma ameaça à segurança, mas como uma ideologia que molda a resposta do Estado, levando-o a adotar práticas que refletem a mesma lógica de violência dos terroristas. Ele argumenta que, ao suspender a constituição e adotar medidas excepcionais, o Estado espelha a violência que busca combater, criando uma dicotomia entre o bem e o mal, o amigo e o inimigo. Essa abordagem transforma o Estado em uma “contraface do terrorismo”, operando dentro da mesma dinâmica de combate ao que considera o mal.​

A tese está disponível em repositórios mas não chegou, ao que eu saiba, a ser publicada para maior alcance editorial. Contudo, bem próximo de todos nós na UnB e nos espaços de pesquisa constituídos pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, importantes estudos desse autor podem ser consultados:

PAIXÃO, Cristiano . Terrorismo, Direitos Humanos e Saúde Mental: o caso do campo de prisioneiros de Guantánamo. In: SOUSA JR., J.G.; DELDUQUE, M.C.; OLIVEIRA, M.S.C.; COSTA, A.B.; DALLARI, S.G.. (Org.). O Direito Achado na Rua, volume 4: Introdução Crítica ao Direito à Saúde. 1ªed.Brasília: CEAD/UnB, 2008, v. 1, p. 383-395.

 

PAIXÃO, Cristiano ; NETTO, M. C. ; OLIVEIRA, M. A. C. . Direito, cinema e terrorismo. In: MAGALHÃES, Juliana N.; PIRES, Nádia; MENDES, Gabriel; CHAVES, Felipe; LIMA, Eric.. (Org.). Construindo memória: Seminários Direito e Cinema. 1ed.Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, 2009, v. , p. 155-161

 

PAIXÃO, Cristiano . Dicotomias deslizantes: público e privado em tempos de terror. In: Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira. (Org.). O novo direito administrativo brasileiro — o público e o privado em debate. Belo Horizonte: Fórum, 2010, v. 2, p. 21-38.

 

PAIXÃO, Cristiano . Derrida e o terrorismo: uma observação a partir da distinção homem/animal. In: EYBEN, Piero; RODRIGUES, Fabrícia Walace. (Org.). Derrida, escritura e diferença: no limite ético-estético. Vinhedo: Horizonte, 2012, v. , p. 235-247.

 

PAIXÃO, Cristiano . Direito à verdade, à memória e à reparação. In: PAIXÃO, Cristiano; SOUSA JUNIOR, José Geraldo; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; FONSECA, Lívia; RAMPIN, Talita. (Org.). Direito Achado na Rua, vol. 7 — Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina. 1ªed.Brasília: UnB, 2015, v. 1, p. 273-281.

 

Tem razão Cristina, voltando ao Prefácio ao aludir que “A disputa pelas definições de terrorista canaliza uma energia que poderia ser investida no fortalecimento da dimensão política para o controle dos conflitos, e sinaliza formas de pensar as relações de poder que não se prestam à superação da insegurança objetiva ou subjetiva. O medo, enfim, atravessa todas as fronteiras, inclusive as definitoriais. Ele é uma fábrica de imobilidades, mas ao mesmo tempo de inquietações e solo fértil para os discursos de ódio e para própria violência”.

E nessa franja de contribuições sutis se localiza a obra de José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, principalmente quando ela contribui para percorrer criticamente o veio legislativo onde essa disputa fica bem clara.  Conforme diz Cristina, o trabalho de José Roberto acaba tendo como finalidade “repensar a democracia brasileira, que como outras democracias, é movimento, apresenta idas e vindas, mas ainda sobrevive e excede os limites do texto constitucional, assim como o controle e suas possibilidades não se restringe ao universo punitivo”.

 

 

 

A Alma Sentipensante da Biblioteca da NAIR

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Membros da AJUP-RLF e militantes do MTD e MST em mutirão da UnB. Foto de Rayssa Nunes Braz de Queiroz

Neste sábado, 26/4, a AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho) http://www.linktr.ee/ajuprlfdf se reuniu em mutirão, no espaço do NEP – Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos, com triplo objetivo: fazer-se presente nesse espaço que tem O Direito Achado na Rua como um de seus pilares. Foi aí exatamente que se organizou e se marcou com o seu selo a série O Direito Achado na Rua; e também se lançou as bases para a institucionalização (pelo CEAM) da disciplina Direitos Humanos e Cidadania (graduação) e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (mestrado e doutorado).

O segundo objetivo: o encontro com militantes do MTD (Movimento de Trabalhadores Desempregados) e do MST (Movimento Sem Terra) para uma participação em documentário dirigido por estudante de graduação da Faculdade de Comunicação (Rayssa Nunes Braz de Queiroz), tendo como argumento a AJUP Roberto Lyra Filho. Todos participaram das gravações, desde mística a depoimentos para o documentário.

O terceiro objetivo: pensar, organizar e projetar o espaço para a instalação da Biblioteca da NAIR (Nair é a sigla da Nova Escola Jurídica Brasileira. Sobre a NAIR, o NEP e O Direito Achado na Rua ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_Achado_na_Rua) caracterizada pela reunião de um volume muito significativo de livros e documentos compondo um relevante acervo com centralidade em obras de justiça (de transição), paz e direitos humanos articuladas com títulos de filosofia, sociologia, história e literatura em diálogo interdisciplinar. Sobre Assessoria Jurídica Popular ver https://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2009/08/o-que-e-assessoria-juridica-popular.html.

Por isso que o encontro foi iniciado com uma roda de conversa para lembrar que não era só uma tarefa o que nos reunia. Mas um encontro lúdico (de compartilhamento em torno de um lanche comunitário) e ao mesmo tempo político-pedagógico, para confirmar que na universidade, qualquer espaço e qualquer encontro realiza esse pressuposto pedagógico.

Por isso que na abertura lembrei o âmbito até conceitual como o contrato de comodato e depois de doação da Biblioteca Roberto Lyra Filho veio a incorporar-se à BCE da UnB (https://estadodedireito.com.br/modo-de-aquisicao-todos-relatorio-de-exemplar-processo-de-aquisicao-comodato-roberto-lyra-filho/).

Lembrei que o próprio Roberto Lyra Filho já antecipara o modo de construir bibliografias e de organizar política e epistemologicamente o acervo de um campo de conhecimento por sua bibliografia. Ficou a sugestão de ler e estudar seu texto: “Filosofia jurídica: pequena bibliografia em perspectiva contemporânea (1976). Revista Notícia do Direito Brasileiro, n. 9, UnB, Brasília, 2002, p. 381-403”, que pode ser conferido na Biblioteca Digital Roberto Lyra Filho em https://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2012/07/biblioteca-roberto-lyra-filho.html.

Para melhor compreensão o ensaio cuida de atendimento do professor (fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira) a solicitação do chefe do Departamento de Direito, Faculdade de Estudos Sociais Aplicados (atualmente o antigo Departamento se tornou Faculdade de Direito da UnB), para que os professores preparassem bibliografias para as suas disciplinas. Ao se desencumbir do encargo disse o professor no ensaio: “A tarefa constitui, um estimulante desafio, pondo à prova o domínio da disciplina, em sua contextura e nas linhas fundamentais de sua expressão bibliográfica. Se as restrições de extensão da lista impuseram cortes drásticos e extremo rigor seletivo, os critérios utilizados devem ser expostos a fim de que não se impute à arbitrariedade ou ao desconhecimento do material o que é, apenas, um esforço no sentido de reduzi-lo às proporções da encomenda”.

O ensaio, raro, em seu escopo, permanece como “exemplo de escolha e aplicação de processos depuradores, num plano coerente e executado com certo rigor técnico”. E é também, nessa mesma disposição, que Talita Rampin, fundadora da AJUP-RLF, mas num outro alcance, lembrou Walter Benjamin, para comentar excertos de “Desempacotando minha biblioteca. Um discurso sobre o colecionador”, que pode ser encontrado em Rua de mão única (Obras escolhidas II). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 227-35: “Estou desempacotando minha biblioteca. Sim, estou. Os livros, portanto, ainda não estão nas estantes; o suave tédio da ordem ainda não os envolve. Tampouco posso passar ao longo de suas fileiras para, na presença de ouvintes amigos, revista-los. Nada disso vocês têm que temer. Ao contrário, devo pedir-lhes que se transfiram comigo para a desordem de caixotes abertos à força, para o ar cheio de pó de madeira, para o chão coberto de papéis rasgados, por entre as pilhas de volumes trazidos de novo à luz do dia ou da noite…uma tensão dialética entre os pólos da ordem e da desordem”.

Outro coordenador da AJUP-RLF, Antonio Escrivão, mencionou Jorge Luis Borges, que também escreveu sobre a biblioteca de Babel, um conceito de uma biblioteca infinita e complexa. Borges assumiu a direção da Biblioteca Nacional da Argentina (1955-1961). Além de seus escritos sobre a Biblioteca de Babel, Borges também deixou uma vasta obra de ficção, poesia e ensaios, que o consagrou como um dos mais importantes escritores do século XX. É dele “Del culto de los libros” e “La biblioteca de Babel”, onde fala intensamente sobre livros, bibliotecas e o ato de lidar com eles.

Talita leu trechos de “Encaixotando minha biblioteca: uma elegia e dez digressões”, 2021, Companhia das Letras, de Alberto Manguel. Talita lembrou a forte ligação direta e emocional de Manguel com Borges, especialmente nesse tema da biblioteca como “mundo interior” e da experiência do afastamento dos livros. Quando jovem, o próprio Manguel trabalhou como leitor para Borges, que já estava cego. Ele lia para Borges em Buenos Aires nos anos 1960. Essa experiência marcou profundamente a vida dele. Anos depois, Manguel se tornou um dos grandes escritores sobre o ato de ler (Uma História da Leitura, A Biblioteca à Noite, etc.), e fala muito sobre a relação íntima entre a pessoa e seus livros — inclusive sobre a dor de perder o acesso físico ou simbólico a eles.

No livro “A Biblioteca à Noite”, Manguel medita justamente sobre bibliotecas como espaços de memória, de identidade e até de luto. Tem um momento em que ele fala do processo de mudar sua biblioteca pessoal e de como isso é doloroso, quase como “desfazer-se de uma parte da alma” — que conversa muito com a ideia de encaixotar uma biblioteca, como se fosse fechar um mundo.

Imagine o que representou para Gladstone Leonel Silva Junior, o novo coordenador do NEP e também fundador da AJUP-RLF, que trouxe como doação alguns livros, entre eles a edição em português de O Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Um Estudo Sobre a Bolívia.

Com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz (ao tempo do grande sociólogo Álvaro García Linera), o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político en Brasil: caminos hacia un ‘constitucionalismo desde la calle’.

No Golpe de Estado contra Evo Morales, a vice-presidência foi um dos alvos e o obscurantismo autoritário se manifestou nitidamente na queima de livros do acervo, entre eles a edição em espanhol de O Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Um Estudo Sobre a Bolívia.

Foi ao devaneio dessas conversas que concluímos uma primeira rodada de programação da Biblioteca da NAIR, refazendo o arranjo topográfico do mobiliário do NEP para receber o acervo, classificá-lo e pensar um catálogo que expresse a identidade da AJUP e de O Direito Achado na Rua e que se traduza como “parte de nossa alma”.

Pois livros, são partes de nós. Me lembrou isso o escritor e advogado Fábio de Sousa Coutinho presidente da Associação Nacional de Escritores (ANE) e também presidente da Academia Brasiliense de Letras (ABrL). Ao receber a notícia desse encontro, em nossa lista de contato, Fábio me enviou uma afirmação de Borges: “Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação”.

Corri a conferir a edição que recebi da Editora EDUSP, desse primoroso ensaio – O Livro – numa edição comemorativa de seus vinte anos (1988-2008) e do milésimo título publicado. O texto, reproduzido do livro Cinco Visões Pessoais, de Jorge Luis Borges, foi publicado pela Editora da Universidade de Brasília (2ª edição., 1987), com tradução de Maria Rosinda Ramos da Silva, para esse fim autorizada.

A escolha do título e do autor, é um alento embalado graficamente. Plínio Martins Filho o editor da EDUSP o expõe: “São vinte anos de editora. São vinte anos de edição própria. 1000 títulos. Editá-los não foi fácil. Enfrentamos oposição e descrença. Todas as vezes que o desânimo baixava, relia este texto de Jorge Luis Borges”.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

quinta-feira, 24 de abril de 2025

 

Papa Francisco, frater noster: nosso irmão que abraçou um mundo tomado por desconsolo e ansiedade

Por: José Geraldo de Sousa Junior [1], Ana Paula Daltoé Inglêz Barbalho [2] – JBP/DF

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O Domingo de Páscoa traz a simbologia da ressureição e, para os cristãos, carrega o ápice da vida espiritual pela oportunidade de conversão, de reafirmação do compromisso com os ensinamentos de amor e de paz deixados por Jesus Cristo. Representa sobretudo a esperança: a expectativa de uma nova oportunidade de transformação e uma busca pela concretização do Reino de Deus neste mundo.

Na segunda-feira, 21 de abril de 2025, imediatamente após o Domingo de Páscoa, o Papa Francisco faleceu. Havia algum tempo sua saúde estava frágil. Convalescia de uma longa hospitalização de quase 40 dias, por pneumonia dupla e infecção polimicrobiana. Na celebração do Domingo de Páscoa no Vaticano, o Papa saudou aos presentes, em seu gesto habitual de nos considerar a todos “irmãos e irmãs”. Na sequência, nos desejou “Feliz Páscoa”, pediu que fosse lida uma mensagem e deu a benção “Urbi et Orbi” (“À cidade e ao mundo”), a bênção especial da Igreja Católica, pedindo um cessar-fogo na Faixa de Gaza. Milhares de pessoas presenciaram a celebração na Praça São Pedro, alegres e atentas ao querido Santo Padre.

Papa Francisco, que falta já nos faz.

A bênção “Urbi et Orbi”, que se repete todos os anos, perpassou momentos marcantes de seu pontificado. No início da pandemia de Covid-19, em 27 de março de 2020, o Papa Francisco rezou diante de uma Praça de São Pedro vazia. Pregando pelo exemplo, indicava a necessidade distanciamento físico na grande praça, totalmente vazia, uma imagem singular e impressionante. O Papa caminhou sozinho, mancando, na chuva, no silêncio do isolamento sanitário, no momento da Statio Orbis de 27 de março de 2020, com o mundo fechado dentro de casa, a humanidade aflita. E meio a nossa angústia coletiva, Papa Francisco profetizou a esperança e a fraternidade:

“Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo todos chamados a remar juntos”.

Simbolicamente, o acompanhava apenas um auxiliar e o crucifixo utilizado para abençoar a cidade de Roma cuja historicidade remonta à peste negra em 1522. A este crucifixo é atribuída a salvação daquela pandemia. Mais um elemento de simbologia no papado de Francisco [3;4;5].

Na homilia daquela Sexta-Feira Santa, em 2020, o Papa Francisco enviava

“um abraço consolador, a bênção de Deus. Senhor, abençoa o mundo, dá saúde aos corpos e conforto aos corações! Pedes-nos para não ter medo; a nossa fé, porém, é fraca e sentimo-nos temerosos. Mas Tu, Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade. Continua a repetir-nos: «Não tenhais medo!» (Mt 14, 27). E nós, juntamente com Pedro, «confiamos-Te todas as nossas preocupações, porque Tu tens cuidado de nós» (cf. 1 Ped 5, 7) [6].

Era um abraço necessário ao mundo tomado por desconsolo e ansiedade.

Papa Francisco foi um líder que utilizou poder e influência para propor mudanças que buscam o bem coletivo e uma sociedade mais justa. Enfrentou desafios corajosamente, em um mundo de rápida transformação. Suas palavras marcadas por profunda esperança, valorizando o coletivismo e buscando o cuidado da casa comum, do nosso planeta.

Um Papa que soube responder a todos os desafios com orientações expressas em cartas apostólicas, mensagens, discursos e, principalmente, oferecendo o exemplo profético de sua própria vida e da necessária transformação da Igreja. O Papa Francisco trazia visibilidade para os desafios enfrentados pelos mais vulneráveis e nos convocava à transformação. Um apelo contínuo à responsabilidade individual e coletiva.

Foi um papado tão prolífico, de profunda oração e de seguimento ao Evangelho de Jesus Cristo, que a própria síntese de todos os aspectos de seu papado envolve muitos temas – todos fundamentalmente necessários ao mundo.

O Papa Francisco transformou a percepção do papel do Papa, voltando-se ao simbolismo de sacerdote e de pastor, enfatizando a proximidade com os fiéis e o cuidado com os mais vulneráveis. Marcou seu papado, desde o primeiro momento, pela humildade, simplicidade e diálogo aberto. Abriu as portas das igrejas, transformou todas as religiões em irmãs, buscou uma Igreja mais acolhedora e global, disposta a ouvir seus fiéis e torná-los elementos fundantes da própria Igreja, promovendo reformas na Igreja, incentivou a justiça social e o cuidado com o meio ambiente. 

Promoveu pelo exemplo pessoal os temas que trazia à discussão internacional. Com humildade e simplicidade, escolheu residir na Casa de Santa Marta, o hotel do Vaticano. Pelo diálogo aberto, se aproximou de diferentes religiões e crenças, buscando a unidade e a paz. Reconhecendo a Justiça Social, criticou duramente a desigualdade social e defendeu a proteção dos direitos humanos, especialmente dos mais vulneráveis, como imigrantes e refugiados. 

Ressaltou a importância do cuidado com o meio ambiente, publicando seu documento mais relevante, a encíclica “Laudato Si” (Louvado Seja, de 2015) [7], que destaca a importância do cuidado com a casa comum e o combate ao desmatamento e às mudanças climáticas. 

Promoveu reformas na Igreja, buscando maior transparência e combate à corrupção, especialmente no Banco do Vaticano, e a efetiva proteção aos jovens e crianças, coibindo o assédio sexual e afastando abusadores da Igreja. Ampliou e fortaleceu a participação das mulheres nas estruturas administrativas, fazendo reformas profundas na estrutura da Cúria romana. 

O Papa Francisco se colocou em missão, viajando para muitos países, se colocando em proximidade aos fiéis – e não-fiéis – e conhecendo as realidades locais. Ativamente combateu todas as formas de discriminação, se posicionando contra a homofobia, e demonstrando sensibilidade com a população LGBTQ+. Defendeu a fraternidade humana e o diálogo entre diferentes culturas e religiões, buscando a paz e a compreensão mútua.

Sempre enfatizou a importância da oração e do diálogo para a construção de um mundo mais justo e pacífico. Ressaltava a misericórdia divina, que dá mais que o justo a quem necessita, em um gesto de amor profundo pela humanidade. Seu lema de papado foi “Miserando atque eligendo” – “Olhou-o com misericórdia e o escolheu”, em português [8].

Em seu brasão, manteve a essência de sua escolha na consagração episcopal, distinto por uma simplicidade linear: um brasão azul, encimado pelos símbolos da dignidade pontifícia, semelhante aos do Papa Bento XVI, com a mitra colocada entre as chaves cruzadas de ouro e prata, ligadas por um cordão vermelho. Sobressai o emblema da Companhia de Jesus, ordem de proveniência do Papa Francisco, com um sol radiante carregado com as letras em vermelho IHS, monograma de Cristo.

Na parte inferior, estão a estrela e a flor de nardo. A estrela, segundo a antiga tradição heráldica, simboliza a Virgem Maria, mãe de Cristo e da Igreja; a flor de nardo indica são José, padroeiro da Igreja universal, ambos a quem o Papa Francisco era devoto [9].

O mundo de 2013, quando inicia o papado de Francisco, era um mundo diferente de 2025. Em 2014, o mundo tinha 59,2 milhões de pessoas deslocadas à força. Em 2024, a Agência da ONU para os Refugiados – Acnur registrou 120 milhões de pessoas vivendo como deslocadas forçadas. Violência, guerra ou perseguição motivaram o escape de ao menos 43,4 milhões de refugiados. A Faixa de Gaza, por quem o Papa Francisco rezou no domingo 20/04/2025, registrou 1,7 milhão de deslocados pela violência até o final do ano de 2023, ou 75% da população, na maioria refugiados palestinos [10].

É impossível não se emocionar com o relato do telefonema diário do Papa Francisco a única paróquia católica existente em Gaza, a Igreja da Sagrada Família, desde outubro de 2023. O Papa Francisco, todos os dias às 19h, telefonava para a paróquia, para ter notícias das pessoas ali abrigadas – cerca de 600 entre fiéis e acolhidos – essencialmente para “ouvi-los”, saber se haviam se alimentado e para dar a benção, pedindo a paz e o cessar fogo.

A Faixa de Gaza, por quem o Papa Francisco rezou no Domingo de Páscoa, 20/04/2025, registrou 1,7 milhão de deslocados pela violência até o final do ano de 2023, ou 75% da população, na maioria refugiados palestinos [10].

Em inúmeros momentos nos trouxe à reflexão o tema dos migrantes e refugiados, sendo um constante defensor dos direitos e da dignidade dos refugiados, migrantes e pessoas deslocadas à força em todo o mundo [11]. Frequentemente pediu a proteção, acolhida e integração de refugiados, e criticou a exclusão e o desinteresse por essa população [12]. O Papa também contextualizava a importância de combater as causas que levam à migração forçada, como a pobreza, a violência e o conflito [13;14].

O Papa reconhecia que os migrantes e refugiados são pessoas com histórias, culturas e esperanças, e que é necessário reconhecer a sua identidade e os seus sonhos. Apelava para que se escutasse a história dos migrantes e refugiados com empatia e respeito.

Dando o exemplo, visitava centros de acolhida nos locais de maior afluxo de pessoas, em situações das mais vulneráveis, pedindo que houvesse o diálogo e a resolução pacífica dos conflitos, como forma de evitar a migração forçada e de promover a paz no mundo.  Papa Francisco reconhecia nos migrantes o próprio Jesus Cristo que nos bate à porta. Afirmava que acolher o migrante é acolher Cristo [15].

Sobretudo, pregava uma transformação de justiça e de paz, de busca pelo amor fraterno, de amor pelo planeta, da conscientização que somos todos irmãs e irmãos. Durante todo o seu apostolado, sua voz tocou expectativas civilizatórias que nos desafiam. Numa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, essa voz alcança a boa vontade que em nossos misteres, nos convoca para superar a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar, disse ele, “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”. É parte do “profético” de seu pontificado.

Nesse curto espaço, envolvidos pela dor da orfandade papal, não nos é facultado entender a totalidade do panorama de incidências do profetismo do Papa Francisco. Havia um esforço pedagógico, com fundamentos que orientam seu protagonismo. Os questionamentos aos capitalismo excludente, explorador e que marginaliza, a necessidade de cuidado da casa comum, de responder às mudanças climáticas, de nos tornamos cada vez mais irmãos e irmãs em Cristo. Colocamos em relevo as encíclicas e as exortações apostólicas porque elas formam um repositório de fundamentos para o discernir e o agir não só da Igreja, mas para os que têm boa vontade.

Foram quatro encíclicas: a primeira, Lumen Fidei (2013), sobre o tema da fé, continuidade do trabalho iniciado por Bento XVI; depois, Laudato si’ (2015), um grito para invocar uma “mudança de rumo” para a “casa comum”, do cuidado com o meio ambiente em crise pelas mudanças climáticas e pela exploração excessiva, e pela ecologia integral, para estimular ações para erradicar a miséria e para o acesso equitativo aos recursos do planeta. Depois, a Fratelli Tutti (2020), o eixo fundamental do Magistério, fruto do Documento de Abu Dhabi, profecia – antes da deflagração de novas guerras – da fraternidade como o único caminho para o futuro da humanidade. Por fim, a Dilexit nos (2024), para repercorrer a tradição e a atualidade do pensamento “sobre o amor humano e divino do coração de Jesus” e lançar uma mensagem a um mundo que necessita buscar novamente seu coração [16].

São sete exortações apostólicas: desde a Evangelii Gaudium, sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual (2013), até C’est la confiance, sobre a confiança no amor misericordioso de Deus e para o 150º aniversário do nascimento de Teresa do Menino Jesus (2023). Entre elas, as exortações pós-sinodais – Amoris laetitia (2016, após o Sínodo sobre a família), Christus vivit (2019, após o Sínodo sobre os jovens), Querida Amazonia (2020, após o Sínodo para a Região Pan-Amazônica), Gaudete et exsultate (2018) sobre o chamado à santidade no mundo contemporâneo, Laudate Deum (2023), sobre a crise climática em uma sequência da Laudato si’, para completar seu apelo para reagir pela Mãe Terra antes de um “ponto de ruptura” [17].   

A lição maior desses documentos é a combinação entre contemplação e ação missionária. Uma contemplação na ação, realizando as encíclicas e as exortações em proposições sobre o que se pode construir a partir do agora, em conjunto, em comunidade, como povo de Deus, numa renovada louva-ação do cântico do irmão Sol.

Não se demitiu da exigência da missionariedade e da proximidade para o anúncio do Evangelho. Ser missionário, como seus gestos demonstram, é estar ao nível do outro, olhar nos olhos, falar em condições de igualdade de uma Boa Nova, que talvez possa ser efetivamente boa para seu ouvinte. Essa é, de fato, a ‘nova evangelização’ esperada, que se representa por uma Igreja em saída que possa realmente ‘primeirear’ (cf. Papa Francisco: “tomar iniciativa”) nas ‘periferias existenciais e sociais’, anunciando esperança, caridade e misericórdia de Deus [18].

A referência da Igreja em saída está na Exortação Apostólica Evangelii gaudium:

“… prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’ (Mc 6, 37)” (EG 49)[19].

A paz e os direitos humanos foram o objetivo constante de sua mensagem entre nós. Retiro da “Fratelli Tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social” (os números se referem a esse documento), a orientação para a sua agenda de diálogo com os movimentos populares e as instituições internacionais. Nesse contexto, Francisco fala tanto dos movimentos populares quanto das instituições internacionais. Parecem dois níveis opostos e divergentes de organização, mas, no fim, são convergentes na sua virtuosidade, pois valorizam o local, os primeiros, e global, os segundos, e sempre sob a insígnia do multilateralismo. Os movimentos populares “reúnem desempregados, trabalhadores precários e informais e tantos outros que não entram facilmente nos canais já estabelecidos” (n. 169). Com esses movimentos, supera-se “a ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres, e muito menos inserida num projeto que reúna os povos” (ibid) [20].

Papa Francisco uma voz que não se cala. Como disse Frei Guilherme Anselmo Jr “Deus confirmou a sua páscoa na Páscoa na Igreja”. Assim, o Papa Francisco travou o bom combate, terminou a carreira, conservou a sua fé (2Timóteo: 4-7). A sua voz profética pela Justiça e pela Paz não se cala com a sua páscoa. Continua a ecoar reverberando no sentimento profundo que nos faz humanos.

[1] Jurista, Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB), fundador e coordenador do grupo de pesquisa “O Direito Achado na Rua”. Foi reitor da UnB (2008/2012), membro da Comissão Justiça e Paz de Brasília.

[2] Ouvidora Pública do Serviço Florestal Brasileiro, advogada e bióloga pela Universidade de Brasília, Presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília.

[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Urbi_et_Orbi_em_2020

[4] https://www.youtube.com/watch?v=tsdrpi8AkJs

[5] https://braziljournal.com/memoria-o-papa-da-humildade-e-da-compaixao/#:~:text=No%20dia%2027%20de%20mar%C3%A7o,cidade%20de%20Roma%20em%201522.

[6] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/urbi/documents/papa-francesco_20200327_urbi-et-orbi-epidemia.html

[7] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

[8] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/elezione/stemma-papa-francesco.html

[9] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/elezione/stemma-papa-francesco.html

[10] https://news.un.org/pt/story/2024/06/1833121

[11] https://www.rtp.pt/noticias/mundo/acnur-descreve-francisco-como-defensor-incansavel-da-dignidade-dos-refugiados_n1649445

[12] https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-06/papa-francisco-tuite-dia-mundial-migrante-refugiado-brasil-23.html

[13] https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-10/mensagem-papa-francisco-festival-migracao-modena.html#:~:text=Segundo%20o%20Papa%2C%20%22devemos%20trabalhar,devasta%C3%A7%C3%A3o%20da%20nossa%20Casa%20comum%22.

[14] https://migramundo.com/papa-francisco-o-pontifice-amigo-e-aliado-dos-migrantes/#:~:text=Durante%20a%20cerim%C3%B4nia%2C%20o%20pont%C3%ADfice,exclus%C3%A3o%20dos%20migrantes%20%C3%A9%20escandalosa.

[15] https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-05/mensagem-migrantes-refugiados-2023-papa-francisco.html#:~:text=Francisco:%20%E2%80%9CO%20migrante%20%C3%A9%20Cristo,%C3%A0%20nossa%20porta%E2%80%9D%20%2D%20Vatican%20News

[16] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals.html

[17] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations.html

[18] Alzirinha Souza. A Experiência como Chave de Concretização e Continuidade da Igreja de Francisco. Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 49, n. 2, p. 375-397, Mai/Ago. 2017

[19] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html

[20] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html