quarta-feira, 4 de outubro de 2023

 

Direitos Indígenas a seus Territórios: um “Tesouro a ser Preservado”

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Quem luta por superar as desigualdades profundas do experimento capitalista-colonial, e a exigência política para vencer o abismo que esse experimento cria na forma de exclusão e de opressão, não deve ter dúvida do lado a tomar.

 

O Presidente Lula, em fidelidade a seu discurso e da prática que ele traduz, não deve ter dúvida de seu lado político na História, para conduzir sua promessa de uma governança que enfrente a miséria, a pobreza e a fome e não se renda às injunções que afrontam a Constituição para criar obstáculos à reforma agrária e querer subtrair dos povos indígenas originários seu direito próprio e o reconhecimento desse direito a seus territórios e a seu modo de existir e de preservar seus usos e tradições sociais e culturais.

 

O Presidente não deve ter dúvida e, se tiver, deve ficar ao lado dos pobres e dos povos indígenas. Deve vetar esse projeto emulativo de cizânia no plano institucional e extremamente perverso no plano político, em tudo antagônico ao conteúdo ético de sua proposta programática.

 

Com uma primeira aprovação pela Câmara dos Deputados, em maio de 2023, na noite de 27 de setembro, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei (PL) 2903/2023 totalmente contrário ao decidido pelo STF. Fixou o marco temporal, em 5/10/1988, e estabeleceu que a União poderá indenizar a desocupação das terras e validar títulos de propriedade em terras das comunidades indígenas. Ainda, antes de concluído o processo de demarcação, “não haverá qualquer limitação de uso e gozo aos não indígenas que exerçam posse sobre a área, garantida a sua permanência na área objeto de demarcação”.

 

O texto aprovado no Congresso Nacional ainda:autoriza garimpos e plantação de transgênicos em terras indígenas; permite a celebração de contratos entre indígenas e não-indígenas voltados à exploração de atividades econômicas nos territórios tradicionais;possibilita a realização de empreendimentos econômicos sem que as comunidades afetadas sejam consultadas;prevê que a regra de marco temporal poderá ser revista em caso de conflitos de posse pelas terras.

 

Retirei essa síntese da análise sempre aguda, do meu caro amigo Melillo Dinis do Nascimento | Assessor Jurídico e de Incidência Política da REPAM-Brasil (A Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM-Brasil é uma rede eclesial da Igreja Católica na Amazônia Legal), com o qual tenho compartilhado uma longa e rica convivência sempre mediada pela utopia de realização da paz e da justiça, é incisivo: “O que Lula deve fazer? Lula deve vetar a proposta legislativa do Congresso Nacional de ressuscitar o marco temporal”. Mesmo que, como é provável, “isto aumente o desgaste entre os poderes, pois há enorme possibilidade de o veto ser derrubado pelo Congresso Nacional. (https://repam.org.br/democracia-povos-indigenas-e-marco-temporal/).

 

E aí? Se pergunta Melillo em sua análise. Ele próprio responde: “Teremos duas realidades jurídicas: (a) uma decisão válida para todos do STF; (b) uma nova legislação aprovada pelo parlamento brasileiro. Haverá muito mais litígio e dificuldades nas produções do Estado brasileiro que tem muitas dificuldades em cumprir os seus deveres de demarcação das terras indígenas. Dados recentes indicam que o governo brasileiro acumula 166 processos de demarcação de terras indígenas. Alguns dos processos de demarcação tramitam há 40 anos e seguem sem decisão, apesar dos esforços deste ano, especialmente do Ministério dos Povos Indígenas. A lentidão deve se agravar com produção do Congresso Nacional sobre o marco temporal”.

 

Para Melillo, mesmo com vários cenários que se descortinam, entre eles o próprio prestígio do Presidente em contínua e segura ampliação – conforme pesquisaCNT/MDA – ://https://revistaforum.com.br/politica/2023/10/3/subindo-lula-tem-71-de-otimo-bom-regular-mostra-pesquisa-cntmda-145173.html, Lula tem 71% de “ótimo”, “bom” e “regular” – “vamos ter que lutar e muito!”.

 

Segundo o advogado Antonio Carlos Castro, oKakay, ainda que o Parlamento derrube o veto do Presidente, o Supremo tende a reforçar a inconstitucionalidade da lei: “Certamente algum partido ou entidade vai levar essa questão ao STF, que vai decidir” (https://www.cartacapital.com.br/entrevistas/ofensiva-do-congresso-para-derrubar-decisoes-do-stf-cheira-a-golpe-diz-kakay/).

 

A opinião do advogado é confortada pelo jurista, professor, procurador e ex-Ministro da Justiça Eugênio Aragão. Para o professor, meu colega na UnB, mais que uma posição equivocada, vazia de juízo de constitucionalidade, a recente deliberação no Senado, se apresenta como um jogo de força, ou como ele sustenta, uma “guerra contra o STF [que] é guerra contra as instituições e a democracia”: “A tentativa de submeter decisões do STF ao crivo deliberativo do Legislativo é abolição da separação de poderes”, diz Eugênio Aragão https://www.brasil247.com/blog/guerra-contra-o-stf-e-guerra-contra-as-instituicoes-e-a-democracia.

 

Para ele, “o julgamento do Recurso Extraordinário 1017365 – o rechaço ao denominado “marco temporal” para conferir titularidade ao direito indígena sobre terras originárias  -pelo Pleno do STF “gerou revolta dos ruralistas, membros da chamada Frente Parlamentar da Agricultura. Decidiu a corte por considerar incompatível com o regime de posse indígena estabelecido no Art. 231 da Constituição, o chamado “marco temporal”, tese política que expressa pretensão de limitar a demarcação dos territórios dos povos indígenas àqueles que efetivamente ocupavam na data da promulgação do texto constitucional em 1988”.

 

Que se trata de um cabo de guerra, com a repercussão promovida pela mídia mais comprometida, com os interesses do latifúndio, do rentismo, e do entreguismo cooptado pela sangria neoliberal, logo se vê com a manobra de uma PEC que permite derrubar decisões do STF é protocolada (https://www.facebook.com/watch/?extid=WA-UNK-UNK-UNK-AN_GK0T-GK1C&mibextid=VhDh1V&v=274174202156144).

 

Quais são os cenários possíveis, nesse contexto?

 

Estou com Melillo: “Antes de discutir a política, é claro para quase todas as instituições que o guardião da Constituição, que diz o que é ou o que não é constitucional, é o STF. Provavelmente o Congresso Nacional também o sabe. Mas decidiu enfrentar a decisão final como forma de enrolar e dificultar a questão demarcatória. Além disso, em parte do eleitorado esse discurso conspiratório e violento com os povos originários tem algum valor, nem que seja o ressentimento e a ignorância. Em outro sentido, em um governo de frente amplíssima, como o atual, em que todo assunto é um permanente dissenso, com mais brigas que soluções, sem muita pressão e articulação dos movimentos sociais, dos democratas e dos povos indígenas, a pauta das demarcações dos territórios e do enfrentamento às pressões ilícitas e lícitas sobre as comunidades será dificultada em demasia”.

 

Volto à abertura do meu texto. “Na dúvida, fique ao lado dos pobres”. A frase, uma das mais emblemáticas de Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT), guiou sua trajetória de quarenta anos de luta pelos direitos de indígenas, ribeirinhos e camponeses na Amazônia. Numa outra perspectiva, mas colocando-se em face de uma mesma opção, o Papa Francisco, em face de representações de povos indígenas, não tem dúvida: “Nós, que não habitamos nestas terras, precisamos de vossa sabedoria e dos vossos conhecimentos para podermos penetrar – sem o destruir – o tesouro que encerra esta região”. Numa atitude de reverência, respeito e proximidade diante dos povos nativos, reconhece a pluralidade e a vasta riqueza biológica, cultural e espiritual de cada povo: “Um verdadeiro tesouro a ser preservado e cuidado para o bem da humanidade”.

 

Um tesouro protegido pela Constituição (5/10/1988) e por Convenções no plano do Direito Internacional dos Direitos Humanos (Convenção OIT 169).

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).


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