quinta-feira, 13 de abril de 2023

 

O direito para além do capital: janelas e trilhas

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

O direito para além do capital: janelas e trilhas / Paulo Rosa Torres, Carlos Eduardo Soares de Freitas, Cloves dos Santos Araújo, Celso Antonio Favero, organizadores. – Feira de Santana: UEFS Editora, 2023, 488 p.

 

                  

 

Retiro da obra toda, que será lançada em breve, a Apresentação a cargo da estimadíssima professora Stella Rodrigues dos Santos, que explica o processo de elaboração do livro e seu conteúdo autoral.

Diz ela:

Este livro, O Direito para além do capital: janelas e trilhas, foi forjado pelo impulso de conversas, perplexidades, inconformismos e resistências de docentes/ pesquisadores/ pesquisadoras da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), incluindo a coparticipação da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), incansáveis na luta pela desestabilização da exploração capitalista, também pela convicção de que “[…] “o propriamente dito no ser humano como no mundo ainda está por acontecer […]” (BLOCH, 2005, p. 243-244). Dessa convicção impõe-se a premente necessidade dos “sonhos diurnos” elementos transformadores, impulsionadores da história. A crise que varre o mundo globalizado acelera estas utopias e cada vez mais arrasta pessoas para um “sonho diurno”, tirando-as do torpor da vida de autômatos.

Das conversas aos “sonhos diurnos”, destaca-se nesta Apresentação a abertura de janelas que o livro sugere pela capacidade dos/das autores/autoras de ensaiar, arriscar, lançar conhecimentos não acabados sem, contudo, abdicar dos clássicos, mas atualizando-os e interrogando-os em função das interpelações provenientes das ruínas do nosso tempo presente. Em acréscimo, destaca-se também   a interlocução entre aspectos particulares e gerais para uma adequada compreensão da multiplicidade social, o que contribui para que leitores/leitoras conquistem um “olhar instruído” em relação à realidade apenas aparentemente amorfa e igual. Por fim, sobre o título, Celso Antonio Favero na introdução do livro discorre longamente sobre a escolha, fundamentando, justificando e mostrando como se chegou até aqui.   

Postas essas observações, o  foco central deste livro é o Direito, em torno do qual gravitam os inconformados e críticos olhares que entrecruzam:   a crítica radical e necessária, vinculando-o à violência; as contribuições de Evguiéni Pachukanis no escopo de uma interpretação marxista para o direito; formulação de natureza epistemológica para interpelar os limites da perspectiva eurocêntrica; provocação para se pensar um “repertório ético-jurídico afro-brasileiro”; educação como práxis para uma atuação político-social engajada” ; o lugar da experiência e dos sentidos do  “Direito Achado na Rua”; tecnologias predatórias, cultura jurídica e autoritarismo; o suicídio no enfrentamento das questões dos territórios tradicionais; a luta das comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto da Bahia pelo direito aos seus territórios.  Este conjunto de provocações, está distribuído em duas partes do livro, composto por dez ensaios, cinco para cada uma das partes: a primeira – para além do capital: janelas e horizontes – a segunda – para além do capital: trilhas e pegadas, apresentados resumidamente como segue.

 

 O que segue é designação do conteúdo, temas, autores e autoras, material certamente compartilhado pela autora da Apresentação e pelos Organizadores da obras, todos e todas engajados no seu processo-base já referido, o diálogo entre saberes construídos nos seminários que serviram de lastro para a elaboração dos textos agora publicados. Aqui, relevo para os organizadores: Paulo Rosa Torres, Carlos Eduardo Soares de Freitas, Cloves dos Santos Araújo e Celso Antonio Favero.

            A obra está dividida em duas partes:

Primeira parte – Para além do capital: janelas e horizontes

Celso Antonio Favero, no texto “Marx, direito e violência nas encruzilhadas dos tempos, alinha-se ao instigante debate necessário e urgente em torno da vinculação entre direito e violência, interpelando os traçados do quadro do nosso tempo, expressos como “escombros de uma ordem econômica, social e política […] também das formas jurídicas, das instituições e das relações sociais, mesmo quando essas formas jurídicas são edificadas sob o signo do positivismo normativo.” As formulações para a tarefa pretendida são encaminhadas no enquadramento do campo da filosofia política, fundadas na grande crítica marxista, cuja chave de análise gira em torno das proposições lukacsiana da   ontologia do ser social. Chama a atenção para dois pressupostos basilares com o fito de tecer as argumentações que vinculam direito e violência.  Primeiro, “o pensamento marxiano funda uma nova ontologia, […] a ontologia do ser social;” segundo, “Marx não elabora uma teoria do direito, embora a sua ontologia contenha os elementos necessários para o desenvolvimento dessa teoria.”  Vale destacar a dedicação do autor na explicitação consistente que entrelaça, contra o pensamento confortável, a mesma radicalidade do caminho assumido, teoria e método. Na sequência, Celso discorre sobre a ontologia marxiana do ser social para alcançar o lugar do direito no pensamento lukacsiano; esboça, sumariamente, um conjunto de elementos indissociáveis, dentre os quais o de ser o direito uma produção histórica do capital e faz acréscimos teóricos importantes, de inspiração crítica, para sustentar os argumentos em torno da relação entre direito e violência, desde a sua gênese. Por fim, evoca as denúncias contundentes de Walter Benjamin acerca da relação entre direito e violência; reconhece as dificuldades para elaboração de um conceito marxista/marxiano de direito, como reconhece os caminhos trilhados até então, Mas, “esses esforços só têm sentido na medida em que contribuem para a elaboração de uma práxis que ajude na transformação da sociedade”, na superação do capitalismo e, como consequência, no fenecimento do direito tal qual o conhecemos. 

Ricardo Prestes Pazello, no ensaio “Pachukanis, de suas concepções a suas recepções “, propõe uma reflexão acerca da pertinência e atualidade da obra do jurista soviético Evguiéni Pachukanis no que concerne às contribuições para se pensar o direito para além do capital, por entender a centralidade da sua elaboração teórica no escopo de uma interpretação marxista para o direito.  Para tanto, parte de uma breve referência ao debate da teoria clássica do direito no século XX, considerando os expoentes maiores das três correntes em questão:  Radbruch e jusnaturalismo, Kelsen e o juspositivismo, Schmitt e o decisionismo. Embora Ricardo reconheça a importância desse debate na criação de um campo jurídico científico, pontua que essas correntes “não só não esgotam a visão clássica da teoria do direito como também deixam de fora aquela que foi a maior contribuição teórica não deontológica para a análise do fenômeno jurídico”. Em seguida, situa o debate jurídico soviético no contexto da transição anunciada com a revolução de outubro de 1917, para introduzir a vida e a obra de Pachukanis, destacando o livro Teoria geral do direito e marxismo que, conforme o autor, “se mantém como legado intransponível de Pachukanis.”  Prossegue no seu percurso metodológico, fazendo um resgate de autores que mais impactaram na difusão da teoria marxista do direito pós-Pachukanis, com destaque para o italiano Umberto Cerroni e o francês Bernard Edelman. Fecha as suas reflexões com a recepção de Pachukanis na América Latina, destacando   o México, na década de 1970 e o Brasil na década de 1980. Por fim, o texto é um convite à leitura para aprofundar o debate acerca da teoria do direito crítico desde  Pachukanis, até porque, “o capital estende e renova seus tentáculos sobre todo o globo e que, portanto, a interpretação sobre a realidade social de inspiração marxiana é cada vez mais necessária para debelá-lo, a crítica jurídica oportunizada por Pachukanis é pedra de toque para se compreender a essência do direito que o capitalismo cria”.

Laurêncio Leite Sombra em Capitalismo, colonialidade e espacialidade propõe uma formulação radical de natureza epistemológica para interpelar os limites da perspectiva eurocêntrica na compreensão da dinâmica do capitalismo quando pensada a partir da colonialidade, “desde uma visão em alguma medida exterior ao ‘projeto global’ hegemônico do capitalismo”, o que possibilita a abertura do debate sobre a ‘ambiência que nos conforma e, ainda mais, das possibilidades de superação dela.” A formulação teórica insere-se no escopo do pensamento crítico pelo viés (de)colonial, partindo da crítica dirigida às noções de tempo e espaço como forma universal, necessária e inata do pensamento kantiano. Chama a atenção para a ênfase dada ao tempo histórico na modernidade, associado aos grandes eventos, em detrimento ao enfoque na espacialidade, propondo desse modo uma análise capaz de reintegrar a espacialidade com o intuito de compreender criticamente a dinâmica do capitalismo, sua relação com a questão da propriedade, para que “[…] sejam pensadas as alteridades que constituem as próprias relações capitalistas, como uma espécie de exterior com o qual elas têm de lidar, como uma ‘diferença colonial’ que faz com que o ‘projeto global’ do capitalismo seja, a cada momento, forçado a adaptar-se, integrar-se para ser adotado em sua plenitude”. Com efeito, por esse viés, tanto a luta contra o capitalismo quanto a superação do modelo de propriedade daí decorrente sofre um deslocamento de olhar e impulsiona a ação de resistência capaz de ‘fissurar o capitalismo’ pelas suas frestas, porque: “o capitalismo não é meramente uma máquina totalitária que a tudo impede, ele é um permanente processo, o que exige uma relação tensa com as alteridades com as quais se depara. O modo como essas alteridades reagem ou se resignam ao capitalismo definirá o seu futuro e suas possibilidades.”

Sergio Augusto São Bernardo, no seu ensaio Direito e pensamento africano para além do capital: por um direito afro-brasileiro faz uma provocação sobre a necessidade de se pensar “uma cultura jurídica revolucionária, a que chamamos, provisória e simultaneamente, de repertório ético-jurídico afro-brasileiro, jurisprudência afro-brasileira, para um Programa Comunitário e Libertário, a partir das nossas próprias experiências, culturas, tradições e aspirações.” Para além da abordagem costumeira entre o jusnaturalismo e o juspositivismo.  Justifica tal necessidade por entender que,  no Brasil, o debate sobre o direito e o racismo estacionou na pauta das políticas públicas e na democratização do Estado, enquanto “Inauguram-se novas tendências epistemológicas no pensamento africano e diaspórico em várias áreas do conhecimento […],”  além  da longa  “trajetória histórica diaspórica afro-brasileira que deu a possibilidade de uma extensa cultura civilizatória e edificou uma experiência epistemológica para a sobrevivência material e simbólica dos seus descendentes no Brasil.” Interroga sobre o que é isso, o direito e o que queremos para além do capital, dialogando com a dialética social de Roberto Lyra Filho e com o  entendimento de  Boaventura de Sousa Santos acerca de ser o direito espaço de disputa contra-hegemônico. Destaca aspectos importantes da história do direito e do pensamento jurídico no Brasil que, conforme o autor, negou o mundo da vida ao se consubstanciar na produção legislativa de mentalidade eurocêntrica, patrimonialista e colonizatória. Por fim, o ensaio provoca, instiga e desestabiliza as narrativas jurídicas fundadas e naturalizadas no direito liberal individualista que “confere ao direito de propriedade […] o instituto mais precioso para a produção legislativa legitimadora do sistema capitalista […]”, combinado com o poderoso instituto do contrato.  Portanto, conforme o autor, “urge a aquisição de uma narrativa autônoma e autêntica como ponto de partida para qualquer projeto anti-sistêmico. Dialogar e lutar a partir do seu próprio chão!”. Eis a proposta.

Antonia Almeida Silva, com o ensaio sobre Educação para além do capital: por entre tessituras do ‘inédito viável, ao compreender a educação como “prática social tecida historicamente e situá-la na transitoriedade da sociedade burguesa, elege a educação escolar como escopo das suas reflexões, embora reconheça a existência de práticas educativas forjadas na dinâmica dos movimentos sociais. O caminho trilhado apoia-se na literatura pertinente à área da educação pelo viés da crítica “aos modelos que a educação do capital opera não apenas na divisão entre os que “trabalham”, os que “vigiam” e os que “dirigem”, mas também na produção de sentidos sociais para as formas de organização dos sistemas regulares de ensino e suas constantes demandas por reformas.”  Desde este ponto, Antonia chama a atenção para a subordinação da educação às leis do mercado e inquire sobre os desafios de pensá-la para além do capital, uma vez que os projetos de educação estão imbrincados com os projetos de sociedade. As reflexões decorrentes dessa constatação encontram na noção de práxis o “fundamento para uma atuação político-social engajada”, de modo a favorecer a criação de esperança e de práticas mobilizadoras para que os oprimidos descubram o “inédito viável”, como defendido por Paulo Freire.  Por fim, por entender que um projeto de educação para além do capital é um projeto contra o capital e de que a realidade humana é historicamente produzida, confrontar as tendências dominantes de compreensão ingênua da educação como força motriz é um imperativo para entender as “complexas mediações que dão fluxo às inserções contraditórias da educação na sociedade capitalista.”

Segunda parte – Para além do capital: trilhas e pegadas

José Geraldo de Sousa Junior e   Sara da Nova Quadros Côrtes, com o ensaio sobre “Direito achado na rua e perspectivas para além do capital”, após contextualizarem o momento da escrita acerca das reflexões aqui correntes afetadas pelo  quadro geral de “intenso sofrimento na Pandemia do COVID-19 e agudização da crise nacional brasileira” e, mais especificamente, pelo balanço    “autorreflexivo da crítica coletiva que ocorreu no evento internacional realizado entre 11 e 13 de dezembro de 2019 na Universidade de Brasília, denominado o Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua”, José Geraldo e Sara Côrtes  propõem-se  à abertura de um diálogo crítico e autorreflexivo  para interrogar  sobre o lugar da experiência do  Direito Achado na Rua, no sentido  “propor projetos de vida para a humanidade em geral.” Para tanto, articulam três eixos discursivos que situam, justificam, refletem e abrem janelas para o agir emancipatório: fundamentos e possibilidades; retomada da travessia e as questões emergentes; o “‘achado’ como ‘elo fraco’ do Direito Achado na Rua.” Destacam dimensões imperativas na base do Direito Achado na Rua, como:    assumir o sujeito coletivo como central nos movimentos de luta, interpelar os sistemas formais estatais e burocráticos do direito para humanizar a formação jurídica, promover a coparticipação, dentre outras. Por fim, uma pergunta: “para que serve a teoria? – podemos responder que serve para imaginar um mundo melhor, criar as condições subjetivas para práxis transformadora, a partir do otimismo militante.” E, “O Direito Achado na Rua é uma obra em movimento e com formulações tão fecundas quanto incompletas, mas que nasce e cresce para anunciar, denunciar e combater os perigos destas diversas ordens totalitárias presentes no campo e na formação jurídica.” Fica o convite irrecusável para ler, compreender e agir.

Carlos Eduardo Soares de Freitas, em Notas sobre afinidades entre tecnologias predatórias, cultura jurídica e autoritarismo, faz uma reflexão crítica acerca das tecnologias predatórias entendidas como alicerce de sustentação dos interesses neoliberais da burguesia. Inicia com uma provocação: “é possível identificar, contemporaneamente, um alinhamento político entre a defesa das inovações tecnológicas que afetam de modo predatório as relações de trabalho a uma cultura jurídica conservadora e hegemônica no Direito do Trabalho, moldada aos interesses da lógica neoliberal”? Para tanto, apoia-se em leituras distintas cuja aproximação é a da crítica “às inovações técnicas e/ou tecnológicas como meio para a ampliação da exploração da força de trabalho”. Parte do exame dos efeitos desse tipo de tecnologia sobre o trabalhador enquanto sujeito e sobre a classe trabalhadora; prossegue colocando em relevo o papel da ideologia na produção e difusão do discurso da austeridade e do autoritarismo, como apoio imprescindível ao neoliberalismo. Segue com a crítica à cultura jurídica hegemônica no Direito do Trabalho e à influência da economia no direito, evidenciando que esses são “meios de viabilização do manejo político conservador das tecnologias predatórias com vistas a efetivas opressões à classe trabalhadora”. Da provocação inicial e após percorrer o caminho traçado, Carlos Eduardo conclui que alinha-se  politicamente à imbrincada defesa de inovações tecnológicas e a lógica neoliberal, com sua cultura jurídica, embora repleta de contradições, portanto, “resistência e defesa do trabalho digno, de uma sociedade igualitária, e de uma efetiva democracia, bandeiras que se posicionam cada vez mais como anticapitalistas.

Paulo Rosa Torres e Cristina Maria Macêdo de Alencar, no ensaio Povos indígenas brasileiros, sem território nem perspectiva: o suicídio como limite, abordam um tema tabu no seio da sociedade mais ampla, tamponado quando alcança a classe econômica privilegiada da sociedade, quase silenciado na academia ainda mais quando se trata dos povos indígenas brasileiro. A abordagem inserida no escopo dos territórios tradicionais ganha relevo maior pela ausência de estudos acadêmicas que considerem “o suicídio, no enfrentamento das questões dos territórios tradicionais, como a falta de demarcação deles e o confinamento dessas populações tradicionais em reservas.”  Para tanto, de um lado, apoiam-se teoricamente na abordagem do livro do sociólogo Emille Durkheim intitulado O suicídio, publicado em 1897, não para afirmar as classificações por ele elaboradas, mas para deslocar o olhar

e tentar entender os fundamentos do comportamento suicida na sociedade.   Neste sentido, acrescem ao esforço de compreensão um ensaio de Karl Marx de título Sobre o suicídio, publicado em 1846, onde “denuncia o patriarcado, o preconceito, o autoritarismo e a sociedade burguesa”. No que concerne aos indígenas brasileiros, trazem referências de uma pesquisa documental realizada “a partir de dados encontrados no Ministério da Saúde, na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), no Conselho Indigenista Missionário (CIMI), na UNICEF e outras publicações.” Fecham o ensaio com perguntas desestabilizadoras e pertinentes: “Seria possível analisar o suicídio entre os índios brasileiros a partir da classificação de Durkheim de suicídio egoísta, altruísta e anômico? Seria possível analisar o suicídio entre os índios brasileiros a partir da análise feita por Marx, utilizando-se das anotações de Jacques Peucheut, dos casos envolvendo as mortes de quatro pessoas, três mulheres e um homem?” As perguntas provocam o leitor a acessar as referências, porque   o ensaio instiga, e convoca estudiosos afinados com o tema a aprofundar pesquisas, pois o suicídio permanece   sendo   um   desafio   à compreensão humana.  

Cloves dos Santos Araújo, Maria José Andrade de Souza e Mirna Oliveira Silva em A propriedade da terra e as formas do comum nas arenas jurídicas –  o caso das comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto da Bahia – recolocam como pano de fundo das reflexões que realizam em torno da luta das comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto da Bahia, para assegurar o direito de  permanecer na posse coletiva da terra,  a problemática da propriedade da terra, ainda defendida e naturalizada como um bem absoluto, em conflito com as experiências de uso comunal a exemplo do caso em tela. Abordam o conflito   no escopo da luta política, jurídica e das implicações sociais daí decorrentes. Na sequência elegem como ponto de partida a territorialização das comunidades em questão, as estratégias de sobrevivência pelo uso comunal da terra e as legislações concernentes aos direitos dessas comunidades, acentuando os contextos de aprovação e as tensões referentes aos  distintos modos de apropriação e interpretação do direito conquistado e conferido por lei, “no momento em que a terra passa a ser mais do que o lugar de reprodução da existência […] para ser uma arena de embates em função da existência de noções conflitantes à ocupação tradicional e de uso comunal da terra”.  Evidenciam desse modo a tensão entre lógicas distintas configuradas na luta pelos direitos territoriais. Lembram, por fim, “que a propriedade da terra, embora naturalizada, nunca foi um lugar de consenso, mas, pelo contrário, de fortes e intensos conflitos em torno da sua configuração, embora o paradigma jurídico dominante insista em esvaziar o sentido histórico e político que lhes constitui.”

Liana Viveiros, nas suas reflexões sobre O emergente e o novo nas disputas pelo direito à cidade: um olhar a partir da hipótese cultural da estrutura de sentimento, reconhece as disputas existentes em torno do tema direito à cidade indicadas pelas diferentes abordagens que o envolve e que procuram atribuir um ‘sentido prático’, independendo da acepção defendida, sejam as mais radicais ou as mais instrumentais. Interessa à autora, no entanto, examinar algumas das acepções correntes sobre o direito à cidade portadas em documentos institucionais, confrontando-os com os sentidos atribuídos por lideranças e representantes de instituições. As reflexões  explicitadas resultam de pesquisa desenvolvida entre 2014 e 2018, apoiada nas “categorias do dominante, do residual e do emergente propostas por Williams (1979) para análise cultural que possibilitam adentrar o âmbito das relações dinâmicas dos discursos e práticas culturais” e apreender, ao menos, sinais de emergências nos contextos observados: “movimentos sociais, entidades, comunidades articulados por rede, teia ou frente que revelam formas, valores e sentidos para construírem juntos as suas lutas” atentando para os  movimentos que esses coletivos realizam. Dos indicadores importantes que expressam emergências nos movimentos observados no decorrer da pesquisa, Lilian destaca a articulação entre o direito à cidade e o bem viver, pelo potencial mobilizador de alianças políticas, pelo conjunto de forças sociais em permanente luta. As reflexões trazidas por Lilian provocam o pensar, no sentido de aprofundamento de estudos em torno de uma temática eivada de tensões, contradições e conflitos, agravadas pelas injustificadas desigualdades sociais que a lógica do capital impõe.  Por fim, fecho com a justificativa de Lilian sobre a sua escolha teórica: “Essas abordagens, mesmo destituídas da radicalidade e força transformadora da acepção lefebvriana, cumprem um papel importante de manter o direito à cidade na pauta dos debates acadêmicos, jurídicos e técnicos e de sustentar lutas sociais por direitos.”

 

Essa exposição enunciativa sobre a obra se enquadra no propósito identificado em seu Prefácio – Desafiando os saberes: os direitos para além do capital – oferecido por Anete B. L. Ivo, que mais ainda enriquece essa contribuição editorial, logo acolhida pela Editora da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS:

Ao iniciar esse texto quero agradecer o convite dos organizadores e reiterar o meu reconhecimento pela pertinência do debate sobre temas complexos da vida contemporânea, como o acesso e a garantia dos direitos dos subalternos, num contexto de uma investida agressiva na “desinstitucionalização” das políticas de Estado e negação do reconhecimento de territórios e direitos aos cidadãos, inscritos na carta constitucional de 1988. Essa transição conflitiva e ambígua de um estado de bem-estar social incompleto, no Brasil, para um estado de “mal-estar social” brasileiro, marcado pelo desrespeito às leis, a violência extremada, o disciplinamento dos  trabalhadores e uma dessocialização crescente da vida social manifesta no desemprego, desproteção e violência apresenta sentidos muitas vezes paradoxais do direito e da justiça, reduzidos, muitas vezes, a um poder disciplinar sobre os cidadãos mais humildes ou, exclusivamente, a dispositivos puramente formais e coercitivos pelos quais se produz a desinstitucionalização das regras democráticas e se institui um Estado penal, no sentido usado por Loic Wacquant (2001). Este se caracteriza pelo aumento da repressão estatal sobre as camadas excluídas, como uma forma de conter os efeitos da redução das políticas sociais o que tem levado a um não-reconhecimento dos direitos da cidadania, inclusive dos territórios de povos tradicionais.

Não só o conteúdo do livro é muito oportuno, como colabora para enfrentar dilemas epistemológicos entre o capitalismo e a ordem jurídica, de uma perspectiva interdisciplinar e crítica, que incorpora diálogos entre diversos campos do conhecimento no entendimento de formas práticas de direitos sociais, culturais e de reconhecimento. Os textos que compõem esse livro resultam de um conjunto de seminários realizados pelos autores e coordenado pelo GP do CNPq. Territórios, Hegemonia, Periferias e Ausências, liderado pelo prof. Celso Antônio Favero da UNEB para pensar as contradições e efeitos das mudanças contemporâneas sob hegemonia ultraliberal, que têm implicado um processo violento de destituição de direitos, afetando a todos, mas, especialmente, às classes subalternizadas.

 

A convite dos organizadores participei das duas fases do projeto. Primeiro, nos seminários, numa assentada como debatedor – confira-se aqui, o encontro de 24 de dez. de 2020, em que discuti o tema do seminário com meus colegas Sara Quadros Cortes e Cloves Araújo: Seminários: Direito para além do Capital, com a participação de José Geraldo de Sousa Junior, Sara Quadros e Cloves Araújo Direito achado na rua e perspectivas para além do capital – https://www.youtube.com/watch?v=cgNjhW0kTC0 (Canal Youtube de O Direito Achado na Rua). Depois, em outras sessões dos seminários, como visitante, acompanhando os debates propostos por colegas igualmente mobilizados.

Dessa participação originou-se o texto que escrevi com Sara Cortes e que foi incluído no volume.

           

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5

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