quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

 

Direitos Humanos no Brasil 2022. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

Direitos Humanos no Brasil 2022. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Outras Expressões, 2022, 251 p.

 

Para baixar: https://social.org.br/livros-books/livros-direitos-humanos-no-brasil/311-livro-direitos-humanos-no-brasil-2022#continua

 

            Do Prefácio os antecedentes, as motivações e o conteúdo desse importante livro, editado nos estertores de um espasmo fascista em nosso País, por um período curto mas letal, basta pensar as ocorrências nos dados da Pandemia da Covid-19. Mapear analiticamente as dimensões dos atentados aos direitos humanos torna a obra única.

Do Prefácio, pois:

Esse livro Direitos Humanos no Brasil 2022, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, é uma espécie de inventário dos fósforos. Estão aqui os nomes e as lutas, as datas e as geografias que traduzem a resistência: gentes em movimento acendendo fósforos, mantendo acesas as esperanças no meio da truculência que se alastrou sobre a pátria, sem contudo abatê-la. Lendo estes textos, se lembrará que lá, nas aldeias dos povos indígenas e nos quilombos de todo país, houve fome, tiros e mortes. Que à beira dos rios do país, o hidronegócio – associado ao agronegócio – ampliou a depredação das florestas, a privatização e a poluição das águas, espalhando escuridões pelas correntezas. Que Dom Philips, Bruno Pereira e vários outros/as (que acenderam fósforos naquelas imensidões) foram assassinados por causa dessas trevas, que escorreram pelas águas com o rejeito dos garimpos e o sangue das suas vítimas. Que nos lares – especialmente os mais pobres – mulheres engoliram o gosto do próprio sangue, vertido pela violência doméstica e pelo feminicídio que seguiram crescendo a números indizíveis, enquanto em Brasília os machismos e o fetiche dos falocentrismos animavam multidões. Outras, bem se sabe, não aplaudiram o excretável, ocupadas com suas vidas de inflação e altos preços, de desnutrição e fome, fabricadas pelo afã das commodities que tira comida das mesas da nação para sustentar banquetes ao redor do mundo. Longe dos banquetes, o povo recolheu ossos e pele de frango, revirou lixos e humilhou-se, mais uma vez, por pura necessidade. Essa desgraça inadjetivável da fome chegou primeiro nas famílias negras, mais uma vez, nas favelas e periferias, enquanto em Brasília, as bancadas brancas e machistas estufaram-se de verbas secretas (e não tão secretas assim), achando-se no direito de questionar a política de cotas, enquanto o trabalho escravo persistia no campo e na cidade. Por todos os lugares ficamos assustados com atos discriminatórios e violentos contra a população LGBTQIA+, enquanto as bocas espumantes de seus detratores cuspiram palavras de ódio, celebrando neonazismos e outras ideologias de morte. Aqui e ali, a violência eleitoral violentou e matou, sendo o sintoma mais evidente dos reiterados (e impunes) discursos contra a democracia, amparados em uma violência travestida em atos de fé e num culto religioso de medonhas raízes, tudo coalhado com muito negacionismo e fake news.

Essas também são, infelizmente, notícias de guerra. Nosso país vive agora a guerra contra os mais vulneráveis e a guerra contra a natureza. Essas guerras são guerreadas com o objetivo de eliminar o adversário e seu combustível é o fanatismo, a ignorância, as mentiras e os discursos de ódio que azeitam os interesses escusos de seus agentes e soldados (refiro-me aos políticos ilícitos, empresários bufões, mineradores clandestinos, madeireiros, fazendeiros, pescadores ilegais, narcotraficantes, vendedores de armas, matadores de gente, aliciadores e contratantes de trabalho escravo e toda essa gente fabricante de escuridões). Essas guerras são mais terríveis na medida em que ameaçam as gerações futuras. Essas guerras matam nossas crianças, proíbem nossos jovens de sonhar, impedem que adolescentes negros ou homossexuais saiam de casa com segurança…

Diante desses fatos, a defesa dos direitos humanos é ainda mais urgente e necessária, porque a lógica da guerra é a lógica do individualismo e da indiferença. A guerra é o tempo da barbárie, em que laços e compromissos humanos são desfeitos. Pelos relatos deste livro, 2022 foi o ano em que tal indiferença e hostilidade se tornaram uma arma do governo. Além disso, as piadas e o escárnio representam um projeto necropolítico, cuja fabricação da morte (no matar e no deixar morrer) se tornou explícita e cotidiana. A indiferença é corrosiva; nega o valor da alteridade, da racionalidade, da justiça e da tolerância, princípios básicos da vida comum. A indiferença desfaz os laços que ligam os cidadãos e põe por terra o altruísmo e a compaixão. A indiferença, por isso, põe em xeque a razão de ser da própria política, como arte de governar para o bem de todos/as/es. Com frases, gestos e omissões, o governo incentivou a tortura, a miséria, a violência doméstica, o estupro, o feminicídio, a homofobia, a xenofobia, a destruição de tudo.

Este livro traz estas denúncias e relata também a resistência dos movimentos sociais que acenderam fósforos. Apesar dos ataques contra os direitos humanos nos últimos anos, mantivemos a resistência do fogo, que traduz rebeldias e esperanças que nunca se apagam nos corações que sabem, afinal, que em tempos de escuridão nunca se deve perder a esperança da liberdade. Esses fósforos, juntos, estão acendendo a aurora. A Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, com a publicação do livro Direitos Humanos no Brasil 2022, participa desta conflagração. O livro é um instrumento de luta, uma espécie de convocação para a luz. Iluminar, agora, significa defender direitos humanos, proteção e promoção da dignidade em uma rede de solidariedade.

Notável esforço, basta ver o elenco imponente de organizadores, conselheiros, consultores e o apoio institucional num elenco que ultrapassa a centena, de organizações que participaram da elaboração do relatório Direitos Humanos no Brasil desde 2000.

O Sumário, com configuração enciclopédica é temático e coleciona textos de autores e autoras de reconhecido percurso em suas áreas de atuação e campos de estudos. Entre eles diviso colegas e alguns parceiros de pesquisas, incluindo orientandos e alunos com os quais mantenho contínuo trabalho teórico e político. Entre os alunos e alunas especialmente, encontro Vercilene Francisco Dias, Diego Vedovatto, Natália Cordeiro. Integrante da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, também me deparo na edição com companheiros de pastoral Guilherme C. Delgado e o padre Paulo Adolfo Simões. Sobre o texto do padre Paulo Adolfo remeto à minha recensão exatamente sobre o Encantar a Política, e na publicação um link para a entrevista que ele concedeu ao Programa de Justiça e Paz produzido pela Comissão Justiça e Paz de Brasília (cf. http://estadodedireito.com.br/caderno-encantar-a-politica-democracia-rede-brasileira-de-fe-e-politica-comissao-episcopal-pastoral-para-o-laicato-cnbb/). De outros tenho sido leitor atento de instigantes análises. Por último cito Tiaraju Pablo D’Andrea, que não conheço pessoalmente, mas que me abriu ensejo para fazer a leitura crítica de sua magistral tese de doutoramento (cf. aqui em Lido para Você, o meu http://estadodedireito.com.br/a-formacao-das-sujeitas-e-dos-sujeitos-perifericos-cultura-e-politica-na-periferia-de-sao-paulo/). Seu tema no livro, tem aquela condição de autenticidade refletida que já demonstrara em sua tese tão bem orientada pela querida Vera Telles, da Universidade de São Paulo.

Reproduzo o Sumário que contempla temas, autores e autoras e respectivas bioblibiografia:

Prefácio, Jelson Oliveira

Apresentação: Camarada Juca, semente!, Thomaz Ferreira Jensen

Os alimentos da cesta básica em face da tensão inflacionária e exportação de commodities, Guilherme C. Delgado

Conflitos por água: povos do Cerrado resistem,Valéria Pereira Santos e Ruben Siqueira

Desmatamento, grilagem de terras e financeirização: impactos da expansão do monocultivo da soja no Cerrado,  Fábio Pitta, Daniela Stefano e Maria Luisa Mendonça

Comunidades e Povos Tradicionais do Sul do Piauí, João Ripper e Mariella Paulino

Grilagem, invasões e garimpo na bacia do Tapajós, Mauricio Torres e Brian Garvey

Estrutura de Estado contra os direitos humanos dos povos indígenas, Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira

Luta e resistência quilombola por garantia e efetivação de direitos: do território ao poder judiciário, Vercilene Franciso Dias

Campanha “de olho aberto pra não virar escravo”: 25 anos,  Xavier Plassat

A Volkswagen, as relações com o poder e a escravidão no Brasil, Ricardo Rezende Figueira e Rafael Garcia Rodrigues

Trabalho e renda sob ataque, Marcio Pochmann

Aumentam as vagas para o trabalho informal, Fausto Augusto Junior, Patrícia Lino Costa, Patrícia Toledo Pelatieri

Tributação dos super-ricos para a construção de um Brasil mais justo e igualitário, Clair Maria Hickmann e Fábio Santos Brunetto

Construir forças para alterar as correntes das marés, Ana Penido, Jorge Rodrigues, Rodrigo Lentz, José Augusto Zague e Suzeley Kalil

A dimensão institucional da luta por terra e moradia,  Diego Vedovatto e Gabriel Dário Matos

Pelo direito à moradia digna: resistência, reconstrução de políticas públicas e agenda de lutas, João Sette Whitaker Ferreira e Maria Inês Sugai

Lutas populares em periferias urbanas e favelas, Tiaraju Pablo D’Andrea

Coletiva Jovem: tecendo redes para a construção de políticas públicas de geração de trabalho decente nas periferias, Agnes Jose Maria Salas Roldan e Maria Carla Corrochano

O papel do Estado no direito ao cuidado, Graciela Rodriguez

Feminismos na resistência e luta pelo fim da violência contra as mulheres, Natália Cordeiro e Analba Brazão Teixeira

Gênero, trabalho sexual e tráfico humano: o contexto das travestis e mulheres trans, Murilo Peixoto da Mota

Nação e mulher, Mônica Dias Martins

Uma geração sob orfandade: manifestação da Covid-19 alongada, Aldaíza Sposati

Resistência e organização para o Brasil que queremos: o papel da educação, Sérgio Haddad

A resistência do povo da cultura à peleja bolsonarista, Antonio Eleilson Leite

A Lei de Cotas em clima de revisão, Glauber Robson Oliveira Lima

Estado laico e investimento em ciência e saúde no Brasil da pandemia, Rubens Naves e Guilherme Amorim Campos da Silva

Faces da violência do corporativismo midiático brasileiro,  Alfredo Luiz Portugal, Patrícia Paixão de Oliveira Leite e Paulo Victor Melo

Fake News: uma ameaça aos direitos humanos, Jelson Oliveira

Encantar a política: caminhos para o fortalecimento da democracia com protagonismo dos setores populares e excluídos, Paulo Adolfo Simões.

            Chamo a atenção para a Apresentação que oferece uma chave de leitura da obra:

 

Qual o Brasil que temos? Qual o Brasil que queremos? Os 29 artigos da 23ª edição do livro Direitos Humanos no Brasil analisam estas questões com as especificidades das diversas realidades que compõem um país tão diverso. Em territórios rurais e urbanos, autoras e autores denunciam os efeitos da ausência do Estado, notadamente da falta de investimentos em políticas públicas para educação, saúde, trabalho e renda, moradia, produção de alimentos, para a defesa de direitos e para a proteção ambiental.

O livro traz fatos e análises que mostram uma visão panorâmica dos últimos quatro anos de retrocessos em relação à proteção dos direitos humanos, mas também aponta caminhos para o enfrentamento das crises econômicas, sociais e ambientais por meio da organização da sociedade. Os artigos apresentam propostas em relação a temas centrais na tarefa de reconstrução do Brasil.

Alguns desafios apresentados são, por exemplo, a violência e a destruição causadas pelo agronegócio, o aumento da fome e da desigualdade no campo e na cidade. Por outro lado, povos indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas e camponesas se organizam para garantir o direito a seus territórios e à preservação ambiental. Outro desafio é reconstruir políticas públicas para a saúde, ciência, educação, cultura e combate à violência.

Nos últimos anos, o trabalho tornou-se ainda mais precarizado, a renda da população teve enorme queda e houve aumento da informalidade no trabalho. A falta de investimentos em saúde, educação, geração de renda e produção de alimentos ampliou a sobrecarga sobre as mulheres, que assumem a maioria dessas tarefas sem remuneração. O livro traz também exemplos da luta contra o trabalho escravo, com a memória dos 25 anos das campanhas da Comissão Pastoral da Terra no combate ao trabalho escravo e com a reparação aos trabalhadores escravizados no Pará pela empresa alemã Volkswagen.

Outros temas do livro incluem a falta de infraestrutura e o racismo ambiental nas periferias dos centros urbanos; a situação das crianças que se tornaram órfãs durante a pandemia de Covid-19; os efeitos violentos da manipulação e da divulgação de notícias falsas na mídia. Ao mesmo tempo, os artigos relatam exemplos de resistência popular e solidariedade entre movimentos sociais, mas ainda há muito o que fazer.

O que nos inspira a caminhar? O livro traz uma exposição fotográfica de João Ripper e Mariella Paulino, que documentaram a organização do coletivo de Comunidades e Povos Tradicionais do Sul do Piauí. Qual caminho seguir? A educação popular baseada na metodologia de Paulo Freire aponta para o esperançar e para a formação de sujeitos coletivos. O livro Direitos Humanos no Brasil 2022 se constitui como ferramenta para a construção do Brasil que queremos. A Rede Social de Justiça e Direitos Humanos agradece a participação das organizações, autoras e autores nesta caminhada.

O livro Direitos Humanos no Brasil 2022 é dedicado à memória de José Juliano de Carvalho Filho, de Tiago Thorlby e de José Carlos Zanetti, que sempre estarão presentes!

 

Não falta ao livro o sensível, mediado pela poesia, não menos interpelação do mundo, pois a literatura lembra Eduardo Lorenço (Mitologia da Saudade), não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de outra linguagem. Aqui a obra de um querido amigo Hamilton Pereira, aliás Pedro Tierra, cuja poética, dizem os Organizadores, celebra quem não se conforma, não desiste, não se abandona à indolência se rende ao sono:

Mas ninguém se rendeu ao sono.

Todos sabem (e isso nos deixa vivos):

a noite que abriga os carrascos,

abriga também os rebelados.

Em algum lugar, não sei onde,

numa casa de subúrbios,

no porão de alguma fábrica

se traçam planos de revolta.

(Pedro Tierra)

Nesse poema e em outros escritos de Pedro Tierra transparece a matéria da ação política que é o estofo do poeta e que nele se expressa em narrativas, eu o disse em um comentário (http://estadodedireito.com.br/pesadelo-narrativas-dos-anos-de-chumbo/), a propósito de um de seus livros (Pesadelo. Narrativas dos Anos de Chumbo. Pedro Tierra. São Paulo: Autonomia Literária: Fundação Perseu Abramo, 2019), “são como que marcas da memória, sobretudo quando a mentira política (Hanna Arendt), produzindo deliberadamente o ocultamento, tripudia sobre o pesadelo que se vivencia nos instantes em que o perigo relampeja, e volta a assombrar à custa de uma perversa ação de usurpação cultural da memória e da história”.

O Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos é publicado no momento em que o País eleitoralmente reagiu ao obscurantismo autoritário, perpetrador de violações gravíssimas contra os direitos humanos.

Tratei disso em coluna que mantenho no Jornal Brasil Popular, reivindicando que a transição para retorno à democracia e ao estado de direito não descuide da exigência ético—política de responsabilização de tal escalada de agressões, vizinha ao que já é considerado um genocídio.

Em artigo recente falo de culpabilidade, justiça e responsabilização (https://www.brasilpopular.com/artigo-repudio-culpabilidade-justica-e-responsabilizacao/) pondo em relevo comentaristas que falam da despedida melancólica de um governo e de seu representante, absolutamente repudiado (https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/11/12/despedida-de-governo-na-onu-e-transformada-em-ato-de-repudio-a-bolsonaro.htm).

Nesse momento o governo brasileiro (leia-se Jair Bolsonaro), é objeto de sabatina na ONU. Segundo o colunista Jamil Chade, conquanto “governos de todo o mundo, entidades internacionais e nacionais farão um exame do que foi a política de direitos humanos do país”, o centro do debate é a denúncia do “desmonte das instituições, entre elas a Funai, além de criticar o encolhimento do espaço cívico no Brasil durante os anos Bolsonaro: Violência policial, racismo, ataques contra a comunidade LGBT, indígenas e meio ambiente também prometem ser destacados”.

Segundo a matéria, “A sabatina — conhecida como Revisão Periódica Universal — ainda verá países apresentando recomendações ao novo governo brasileiro sobre como restaurar políticas de direitos humanos. Alguns dos europeus já indicaram que irão sugerir o fortalecimento de órgãos públicos, desmontados durante a gestão de Damares Alves, eleita senadora e que permaneceu até meados do ano como ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos. Durante a revisão, a delegação brasileira será chefiada pela atual ministra, Cristiane Britto, que esteve ao lado do presidente quando ele fez seu primeiro pronunciamento após a derrota nas eleições. O sistema de sabatinas existe para que o mundo possa cobrar melhorias em termos de direitos humanos em um país. Recomendações são feitas e os estados têm a obrigação de dar respostas, quatro anos depois, No caso da revisão do Brasil, o processo ganha um outro componente, com uma espécie de oportunidade para que países que foram humilhados ou criticados por Bolsonaro deem suas respostas. Além das cobranças por parte dos estados, a sabatina ainda será marcada pela participação de mais de uma dezena de entidades da sociedade civil. Muitas delas, ao longo dos meses, submeteram informes para a ONU, trazendo dados sobre a situação do país”.

A partir de um quadro de omissões, há um verdadeiro libelo contra a governança e os dirigentes do país. O documento oficial, que serve de base para a denúncia, revela um quadro de desmantelamento de toda a rede de proteção aos direitos humanos, com repercussão letal sobre as populações vulnerabilizadas, notadamente no campo da saúde e do enfrentamento a Covid-19.

Em outra matéria, assinada pelo mesmo colunista (https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/11/12/parias-bolsonaro-e-putin-ficam-de-fora-da-cupula-do-g20.htm), tratando da ausência do presidente na reunião da cúpula do G20, ele avalia o significado dessa ausência, para estimar que ela “sedimenta a irrelevância internacional de Bolsonaro e seria um “réquiem” de um governo que apequenou o Brasil no mundo. Mesmo dentro do Itamaraty, sua ausência é um sinal de que ele não entendeu o cargo que assumiu em 2019 e que a presença de um presidente do Brasil na cúpula não tem relação com o resultado das eleições. Para diplomatas estrangeiros, a ausência de Bolsonaro é uma mistura de alívio e de “pena” diante do colapso de uma política externa de um país que servia de referência ao mundo. Já em 2021, na cúpula do G20 em Roma, Bolsonaro viveu uma situação de pária internacional, ignorado pelos demais líderes e com uma agenda completamente esvaziada. Mais recentemente, em Nova York, ele voltou a ver sua passagem pela Assembleia Geral das Nações Unidas marcada por uma ausência de encontros de alto escalão e chegou a faltar na reunião que teria com Antonio Guterres, secretário-geral da entidade”.

O repúdio internacional corrobora o rechaço interno revelado pelas eleições, contra um projeto, um sistema delinquente que canalizou recursos orçamentários para um objetivo de assalto ao patrimônio público, aparelhou o aparato de segurança e a linha auxiliar miliciana para interferir na livre manifestação, agrediu a institucionalidade de modo ilegal e inconstitucional, sendo, ainda assim derrotado.

Todavia, permanece a arregimentação criminosa, no financiamento, no aparelhamento inclusive de setores militares e de forças de segurança, com a docilidade leniente de muitos editoriais e de aliciamento de um colunismo rendido, num movimento torpe de solapamento da soberania popular e do interesse de restauração democrática das instituições.

Numa bela carta aberta dirigida ao Presidente Lula, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (https://sul21.com.br/opiniao/2022/11/carta-aberta-ao-presidente-lula-da-silva-por-boaventura-de-sousa-santos/), entre várias lúcidas e pertinentes considerações, celebra a vitória, que não é apenas pessoal, mas de uma ampla e ética mobilização, menciona a enorme credibilidade mundial que o Presidente acumula e que deverá exercitar em todas as agendas globais, mas adverte para essa conspiração subalterna e clandestina que só o voto não é bastante para debelar.

O Presidente Lula, diz Boaventura “Vai ter de conviver com a permanente ameaça de desestabilização. É a marca da extrema-direita. É um movimento global que corresponde à incapacidade de o capitalismo neoliberal poder conviver no próximo período com mínimos de convivência democrática. Apesar de global, assume características específicas em cada país. O objetivo geral é converter diversidade cultural ou étnica em polarização política ou religiosa. No Brasil, tal como na Índia, há o risco de atribuir a tal polarização um carácter de guerra religiosa, seja ela entre católicos e evangélicos ou entre cristãos fundamentalistas e religiões de matriz africana (Brasil) ou entre hindus e muçulmanos (Índia). Nas guerras religiosas a conciliação é quase impossível. A extrema-direita cria uma realidade paralela imune a qualquer confrontação com a realidade real. Nessa base, pode justificar a mais cruel violência. O seu objetivo principal é impedir que o Presidente Lula termine pacificamente o seu mandato”.

Por isso, estão certos aqueles que sustentam que é hora de falar em punição e não em pacificação, como o faz Milly Lacombe, colunista do UOL (https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2022/11/05/e-hora-de-falar-em-punicao-e-nao-em-pacificacao.htm).

Na linha da melhor orientação da chamada justiça de transição, acentua que repúdio, culpabilidade, justiça e responsabilização, são marcas de memória para prevenir recorrências e não premiar contraventores que lesam a humanidade, o país e o povo.

Diz o seu texto: “Uma das mais eficazes ferramentas do capitalismo, especialmente em sua versão neoliberal, é a capacidade de inverter todas as pautas. Antes mesmo de Lula sair vencedor da eleição já escutávamos intelectuais liberais falando em anistia e em pacificação. As mesmas pessoas que passaram quatro anos numa boa vendo Bolsonaro afundar o Brasil em violências de todos os tipos, da lentidão para comprar vacinas até a congratulação a policiais que se comportavam como milicianos passando pelos inúmeros sigilos de 100 anos em qualquer suspeita de malfeito ou corrupção, agora pedem que Lula e sua turma sejam os pacificadores. Querem que aqueles que passaram quatro anos sendo abusados sejam os pacificadores. Não haverá pacificação sem punição. Não haverá pacificação sem a construção de um espaço de memória, de investigações e confrontos a respeito de um passado nem tão distante como o da ditadura. Agora é a hora de colocar todo esse horror na mesa e fazer uma autópsia do que passamos. Investigar, processar, punir”.

Bastaria incluir no libelo o horror da gestão necropolítica da crise sanitária. Talvez por isso o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que foi o Relator da CPI da Covid, afirme que uma anistia a Jair Bolsonaro (PL) não acontecerá. “Bolsonaro está apavorado, querendo uma anistia, um acordo de não punição. Mas isso, na circunstância em que ele criou no Brasil, é difícil de acontecer”. É preciso, ele diz, “dar consequência a todas as investigações, inclusive aquelas que foram postas pela CPI. Não dá para passar pano nisso. Bolsonaro é responsável por uma grande quantidade de mortes no Brasil. A CPI demonstrou que se ele tivesse feito a sua parte, comprado as vacinas no momento em que foram oferecidas, nós teríamos salvo uma quantidade significativa de vidas”. (https://www.brasildefato.com.br/2022/11/13/renan-calheiros-afirma-que-bolsonaro-esta-apavorado-e-que-anistia-nao-acontecera).

Eis que o insuspeito Estadão, em matéria de Opinião (Editorial), também indica a necessidade de atribuir “responsabilidade jurídica de Bolsonaro”. Para o Jornal, “Não basta o juízo político das urnas. Se há indícios de que a lei penal foi descumprida, é preciso investigar. A paz não é fruto da impunidade, mas da efetiva igualdade de todos perante a lei” (https://12ft.io/proxy?q=https%3A%2F%2Fopiniao.estadao.com.br%2Fnoticias%2Fnotas-e-informacoes%2Ca-responsabilidade-juridica-de-bolsonaro%2C70004158307).

Para o Jornal, “os quatro anos de governo produziriam um respeitável passivo jurídico, com incidência direta na esfera penal”, que não pode ser desconsiderado: “O País precisa exatamente disso: investigação serena e criteriosa, dentro da mais estrita legalidade, respeitando as competências competentes, para apurar os indícios de crime e as respectivas responsabilidades, de forma a permitir depois, quando for o caso, a aplicação, pelas vias judiciais competentes, das penas legais cabíveis. Não se trata de perseguir ninguém. Mas não é plausível que, diante de tantas projeções – pequenos ou grandes, como, por exemplo, são as suspeitas envolvendo o MEC –, nada seja investigado. Jair Bolsonaro não está acima da lei. A tão necessária pacificação nacional não virá da impunidade, mas da efetiva percepção de que todos são iguais perante a lei”.

Os relatórios que têm sido apresentados pela Equipe de Transição escancaram esse descalabro em todas os setores econômicos, sociais, políticos, culturais, sanitários, educacionais e de assistência social.

Colho em matéria do importante site IHU – Instituto Humanitas, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), a revelação de que livros didáticos na Noruega já trazem a tipificação de genocida ao Presidente Bolsonaro (https://www.ihu.unisinos.br/categorias/624413-editado-na-noruega-o-primeiro-livro-didatico-com-bolsonaro-como-genocida):

Antes mesmo de terminar o ‘serviço’, Bolsonaro entra para a história, como um líder que promoveu o genocídio de seu próprio povo, através do negacionismo na pandemia. E eu acrescentaria ‘através de nebulosas transações, visando propinas, envolvendo membros das Forças Armadas, conforme demonstrado na CPI pelo Senado brasileiro’.

O livro se chama Fabel, foi editado e lançado na Noruega pela editora de livros escolares Aschebourg Undervisning, e é aplicado nos três anos finais do Ensino Médio para a matéria de Norueguês.

Bolsonaro ilustra o texto sobre ‘Teorias de conspiração’, com a reprodução na legenda inclusive de uma das famosas frases negacionistas e de desprezo à vida humana, de Bolsonaro, que ele agora nega ter proferido.

Há um outro texto, na página seguinte, intitulado ‘Um Brasil condenado’, aqui traduzido:

‘O Brasil é o quinto país mais populoso do mundo. Durante a pandemia, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, foi um dos maiores negacionistas da corona do mundo. Enquanto o mundo inteiro ficava em casa durante a pandemia, ele fazia aglomerações ao redor de si e dava ‘toca aqui’ em apoiadores que se amontoavam ao redor dele. ‘Uma gripezinha’, assim ele chamou a Covid-19, doença que matou três milhões de pessoas só no primeiro ano de pandemia. Apesar da pandemia ter se espalhado em tempo recorde no Brasil, ele chamou a corona de uma ‘histeria da mídia’. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fazia coletivas de imprensa diárias com atualizações sobre o desenrolar do contágio no país. 260 000 pessoas morreram de Covid-19 no primeiro ano de pandemia no Brasil. Quando Mandetta criticou publicamente a forma de Bolsonaro conduzir a pandemia, ele foi desonerado’.

            Considero de suma importância que os Organizadores de Direitos Humanos no Brasil 2022 Rede Social de Justiça e Direitos Humanos encaminhem para a área de direitos humanos da Equipe de Transição o circunstanciado trabalho que realizaram. Ele certamente contribuirá para a redefinição das políticas nesse âmbito. E em boa hora.

 

 

 

 

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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