quarta-feira, 12 de outubro de 2022

 

Guia prático de proteção à violência política para defensoras e defensores de direitos humanos

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

Guia prático de proteção à violência política para defensoras e defensores de direitos humanos / Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. — 1. ed. — Rio de Janeiro: Artigo 19. Justiça Global e Terra de Direitos: 2022. 55 p. Acesse o Guia em https://comiteddh.org.br/

Realização Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. Organização da publicação Agnes Karoline de Farias Castro, Alane Luzia da Silva, Amara Hurtado, Anna Carolina Murata Galeb, Antonio Francisco de Lima Neto, Guacira Cesar de Oliveira, Maria Tranjan S. do Prado, Luciana Pivato e Tatiana Lima. Co-realização Artigo 19, Cfemea; Justiça Global e Terra de Direitos. Redação e Edição Textual Antonio Escrivão Filho

 

Muito oportuna a elaboração desse Guia, organizado por um conjunto de entidades e de especialistas reconhecidamente qualificados e atentos ao monitoramento de sociedade civil para a proteção de direitos humanos e de seus defensores e defensoras.

Não é só o crescente de violência que se instala no país, a partir de uma política de morte que é a face cruenta do processo de acumulação e de exploração neoliberal em curso com uma capatazia instalada na governança desde 2016.

Em texto Marcelo Arruda: uma vida imolada ao livre exercício dos direitos políticos e da democracia, pela barbárie, lançado na Coluna de Justiça e Paz, assinado por Eduardo Xavier Lemos, presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília e por mim  (https://www.brasilpopular.com/32880-2/), chamamos a atenção para essa realidade, agravada em sua configuração política, notadamente na conjuntura em que esse modelo parece estertorar.

Conforme dissemos nesse texto “se faz necessário um olhar mais atento da sociedade civil e das autoridades, inclusive com a destinação de uma comunhão de forças e grupos especializados para tratar da violência nas eleições de 2022. Aqui falamos de um verdadeiro agrupamento dos tribunais eleitorais com as procuradorias e as forças policiais, amparados pela sociedade civil organizada, tendo por escopo garantir eleições livres e democráticas no Brasil nesse ano, garantindo a todo cidadão (eleitor ou elegível) o exercício pleno de seus direitos políticos”.

Dramático também é a intensificação de violência extrema contra aqueles segmentos cuja cultura e prática social mais se contrastam com a voragem canibalizadora do modelo exploratório: os camponesas e os indígenas.

Tratei disso também, no mesmo Jornal, ao comentar a recente publicação do Relatório do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, organismo da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, conforme https://www.brasilpopular.com/as-chamas-do-odio-e-a-continuidade-da-devastacao-relatorio-do-cimi-sobre-violencia-contra-os-povos-indigenas/, mobilizado por sua apresentação em mesa-redonda na UnB – Universidade de Brasília.

Sobre esse evento e o Relatório em seu conteúdo, também a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília dedicou uma edição de seu programa radiofônico de Justiça e Paz, entrevistando formuladores do projeto presentes na mesa-redonda (https://www.youtube.com/watch?v=UX20i7RxVwc).

Tudo isso realça a relevância e a oportunidade de elaboração e publicação do Guia.

Visto em seu conteúdo, o Sumário é auto-explicativo:

INTRODUÇÃO

  1. Apresentação Institucional
  2. O Guia: Proteção à Violência Política Para Defensoras e Defensores de Direitos Humanos
  3. PERCEPÇÃO: O QUE É, QUANDO OCORRE E QUAIS OS TIPOS DE VIOLÊNCIA POLÍTICA?
  4. O que é violência política?
  5. Quando ocorre violência política?
  6. Quais os tipos de violência política?

CONCLUSÕES

  1. PROTEÇÃO: O QUE POSSO E DEVO FAZER?
  2. Análise de risco
  3. Estratégia de proteção
  4. Proteção digital
  5. Medidas de vigilância em atividades
  6. Proteção jurídica
  7. Autocuidado e cuidado coletivo

CONCLUSÕES

III. RESPONSABILIZAÇÃO: COMO DENUNCIAR AMEAÇAS E AGRESSÕES?

  1. Por que e para que denunciar uma ameaça ou agressão?
  2. Para quem e onde faço uma denúncia?
  3. Como faço uma denúncia?

CONCLUSÕES

O que o material oferece, tratando-se de elaboração por organismos de assessoramento e monitoramento de políticas, guarda pertinência com reflexões desenvolvidas em ambiente acadêmicos de pesquisa, valendo por em relevo, o trabalho de Luís Gustavo Magnata Silva   Quem Defende os Defensores? Do Reconhecimento à Construção de uma Política de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos no Brasil, Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, área de concentração em Direitos Humanos, em 2014.

Integrei a Banca Examinadora da Dissertação, presidida pelos meus queridos amigos, o Professor Doutor Sven Peterke, Orientador, da Universidade Federal da Paraíba e também integrada pela Professora Doutora Maria de Nazaré Tavares Zenaide, também da Universidade Federal da Paraíba. Nazaré é uma das forças constituintes do Comitê Nacional de Educação para os Direitos Humanos, um dos organismos desmantelados na sanha necropolítica de um governo inteiramente hostil aos direitos humanos. Comprometida com os direitos humanos como sempre foi não se rendeu, e com seus companheiros do Comitê desmantelado pela exceção, articulou imediatamente uma forte resposta social que levou à instituição da Rede Brasileira de Educação para os Direitos Humanos, atualmente uma força galvanizadora regional e nacionalmente para a manutenção da agenda necessária de afirmação dos direitos humanos no país.

O trabalho de Luís Gustavo Magnata Silva procurou “realizar uma análise interdisciplinar, a partir da teoria crítica dos direitos humanos, sobre a situação de risco e vulnerabilidade que assola os defensores de direitos humanos no Brasil. Ao longo dos últimos trinta anos esses atores sociais vem se destacando, com participação direta, nos temas mais emblemáticos que o Brasil já enfrentou: reabertura da democracia; memória verdade e justiça; reforma agrária; situação prisional; violência institucional, entre outros. Desde o fim da década de 1990, a sociedade civil organizada e os movimentos sociais documentam as violações sofridas pelos defensores, ao mesmo tempo em que, exigem políticas públicas e a criação de espaços institucionais que garantam a participação social nos processos de tomadas de decisão dos temas importantes para o país. Esses atores demonstram ter uma grande capacidade catalisadora de demandas e por isso se colocam na linha de frente correndo sérios riscos de vida. Apesar dos esforços de evidenciar a situação de vulnerabilidade sofrida pelos defensores de direitos humanos as respostas do Estado parecem ser insuficientes. Para a realização da análise, neste contexto multidimensional, será lançado mão de documentos jurídicos nacionais e internacionais, relatórios e cartas públicas de instituições de direitos humanos, relatórios oficiais de organismos internacionais e processos judiciais que evidenciam a relação entre a atividade exercida pelos defensores e os riscos sofridos pelos mesmos”.

Bem desenvolvido ele considera que:

Uma violação de direitos humanos traz consigo vários aspectos que são evidenciados por este ator. Assim como as violações de direitos humanos são múltiplas e possuem conexões as respostas a esses necessitam ser múltiplas, duradouras e eficazes.

A ideia da criação da política de Estado não é de por si só resolver todos os problemas identificados aqui. Mas uma política de Estado, em uma democracia, tem a prerrogativa de ser fio condutor do comportamento das esferas públicas que devem incidir em longo prazo para uma mudança comportamental também dos espaços privados.

A proteção aos defensores de direitos humanos representa proteger a integridade e dignidade daqueles que tem coragem de lutar pelo bem estar do próximo. A negativa deste direito, pode ser a afirmação de que lutar por direitos, por cidadania não é viável.

Porém não será uma política que irá garantir a vida dos defensores, mas uma mudança social e cultural de longo prazo. Aliás, nenhum defensor estará cem por cento seguro – e ninguém tem esta segurança, é impossível fornecer essa certeza e seria incoerente cobrar essa margem zero de insegurança – porém um processo de atuação multidimensional sobre os problemas enfrentados trará uma resposta que atingirá a toda uma coletividade, reforçando e construindo democracia.

Uma política precisa fomentar a transformação social, mas são as pessoas que tem a capacidade para colocar em prática as mudanças necessárias para trazer os pressupostos iniciais de vida digna.

As políticas reivindicadas pelos DDH, não tem finalidade em si própria. A escolha de demandar por respostas em forma de criação e efetivação de políticas públicas se demonstra como um caminho viável para outros caminhos possíveis.

Nesse diapasão a educação tem o poder de reconhecer, redescobrir e provocar reação das pessoas. E a educação em direitos humanos se apresenta como uma importante estratégia de emancipação social. Através dela se pode trabalhar os vários aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais da sociedade humana, de suas relações e instituições.

A educação em direitos humanos precisa ser uma medida permanente, uma ação constante e transversal para o desenvolvimento social e institucional da democracia e que precisa permear desde as ações dos defensores até a criação das diretrizes das políticas públicas.

Quanto mais se difundir uma prática emancipatória de direitos humanos mais a democracia se fará presente e menor a chance das violações não serem identificadas e ficarem sem a resposta necessária.

 

Mas ele também demonstra que é possível reconhecer na atuação dos órgãos do sistema interamericano de direitos humanos um movimento que procura avançar e adensar esses fundamentos de proteção.  Magnata Silva traz como exemplo o caso do agricultor brasileiro João Canuto de Oliveira, uma liderança camponesa no oeste do Pará que dois dias antes de sua execução registrou queixa crime informando as autoridades sobre ameaças de morte que sofrera. O caso, diz Magnata Silva – foi submetido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1997, “que findou por decidir, pela responsabilização do Estado. Na época, o Brasil foi “condenado” “por falhar ao não fornecer a devida proteção quando ele relatou às autoridades estaduais e federais competentes, que tinha recebido ameaças de morte (…), pela ineficácia do Estado na condução de uma investigação eficiente e processos judiciais subsequentes ao seu assassinato[…]”.(ComIADH, Relatório 24/98, Relatório Anual 1997, p. 379”.

O certo é que, conclui o Autor da Dissertação:

afirma a Corte IDH que existe uma “obrigação especial dos Estados em garantir que os indivíduos possam exercer livremente suas atividades de promoção e proteção dos direitos humanos sem temor de ser alvo de atos de violência de qualquer natureza.” (Corte IDH. Caso Huilca Tecse vs. Peru. Sentença de 3 de março de2005, parágrafo 78.).

Em sentença recente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) afirmou o dever dos Estados de proteger os DDH de modo eficaz, acrescentando que eles “”têm o dever de fornecer os meios necessários para os DDH de conduzir suas atividades livremente” e devem “abster-se de impor restrições que dificultem o desempenho de seu trabalho, e conduzir investigações sérias e eficazes de todas as violações contra eles, impedindo assim a impunidade”(CorteIADH, Case of Kawas-Fernández v. Honduras, Sentença, 3 de abril de 2009, § 45).

 

Em complemento ao Guia, vale à pena conferir o Programa de Justiça e Paz, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (https://www.youtube.com/watch?v=D2bry8-Fhqg), no qual a vice-presidenta da CJP Ana Paula Daltoé Inglêz Barbalho, também âncora do Programa, entrevista a organizadora Luciana Pivato e o autor do texto Antonio Escrivão Filho. Eles dão ênfase ao propósito de extrair do Guia o seu alcance duplo de simultaneamente se constituir instrumento de formação de agentes do sistema e de conhecimento de ativação do sistema de proteção.

Num quadro acentuado pelo desencadear de múltiplos aspectos de violência e violações, eles apontam para o incremento de um tipo difuso dessa violência que se materializa em ocorrências potencializadas por discursos autorizativos de autoridades (desde o Presidente da República e de outros agentes públicos que intensificam os registros.

Iniciativa dos mesmos organizadores, despontando o protagonismo do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, o Guia segue o cuidadoso estudo Vidas em luta: criminalização e violência contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil : volume III / Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos ; organização Layza Queiroz Santos … [et al.]. — 3. ed. — Curitiba: Terra de Direitos, 2020.

O Dossiê Vidas em Luta é um registro sobre as violações e violências perpetradas contra defensoras e defensores dos direitos humanos no Brasil. E também um documento de análise da capacidade de cidadãos e cidadãs, organizações e movimentos avançarem na luta para efetivar, restaurar e reparar direitos, sobretudo para aqueles e aquelas que se levantam para fazer justiça para si e para o coletivo.

Iniciativas, portanto, para dar relevo à disposição de procurar “incidir no empenho de construção de políticas de estado para efetivar um sistema de proteção” e que protejam os defensores e as defensoras e impeça a impunidade dos perpetradores.

E um estímulo que valoriza essas vidas em luta.  O estado brasileiro foi condenado nesta terça-feira 04/10) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e considerado como responsável pela violação dos direitos à verdade, à proteção e integridade da família de um defensor de direitos humanos. O processo marca uma resposta a 40 anos de impunidade. Segundo a sentença, o que se registrou foi uma “grave falência” do Estado nas investigações sobre a morte violenta de Gabriel Sales Pimenta, “e pela situação de absoluta impunidade em que se encontra o homicídio na atualidade (https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/10/04/brasil-e-condenado-por-corte-interamericana-em-caso-de-morte-de-ativista.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola).

Para Helena Rocha, codiretora do programa para o Brasil e Cone Sul do CEJIL, organização que levou o caso à Corte, “a sentença confirma o que vários órgãos internacionais têm afirmando sobre o grave cenário de violência sistemática contra pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil e atribui ao Estado uma responsabilidade agravada de protegê-las e de investigar qualquer ato ou ameaça que venha a ser sofrido por elas”. “Para isso é fundamental desenvolver instrumentos de enfrentamento à impunidade estrutural de esses casos e promover políticas públicas efetivas para sua proteção” (https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/10/04/brasil-e-condenado-por-corte-interamericana-em-caso-de-morte-de-ativista.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola).

Vale pôr em relevo da sentença, o que se pode considerar uma mensagem. Na decisão, a Corte destacou que o trabalho das defensoras e defensores de direitos humanos é “fundamental para o fortalecimento da democracia e do Estado de Direito”. O documento ainda fala na necessidade de erradicar a impunidade relacionada a atos de violência cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos, “pois resulta um elemento fundamental para garantir que possam realizar livremente o seu trabalho em um ambiente seguro”(https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/10/04/brasil-e-condenado-por-corte-interamericana-em-caso-de-morte-de-ativista.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola).

Nessa linha de atenção e de medidas denúncia, responsabilização e reparação, a Corte ordenou, conforme a decisão,  medidas que devem ser adotadas, contidas no princípio alargado de reparação que vem adensando: (i) criar um grupo de trabalho com a finalidade de identificar as causas e circunstâncias geradoras da impunidade e elaborar linhas de ação que permitam superá-las; (ii) (publicar o resumo oficial da Sentença no Diário Oficial da União, no Diário Oficial do Estado do Pará e em um jornal de grande circulação nacional, assim como a Sentença, na íntegra, no sítio web do Governo Federal, do Ministério Público e do Poder Judiciário do Estado do Pará; (iii) realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação com os fatos do presente caso; (iv) criar um espaço público de memória na cidade de Belo Horizonte, no qual seja valorizado, protegido e resguardado o ativismo das pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil, entre eles o de Gabriel Sales Pimenta; (v) criar e implementar um protocolo para a investigação dos delitos cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos; (vi) revisar e adequar seus mecanismos existentes, em particular o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas, nos âmbitos federal e estadual, para que seja previsto e regulamentado através de uma lei ordinária e tenha em consideração os riscos inerentes à atividade de defesa dos direitos humanos; e (vii) pagar as quantias fixadas na Sentença a título de dano material, imaterial, custas e gastos.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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