Por Vannessa Carneiro
Brasília, Distrito Federal, Brasil, 19/06/2022.
(Atualizada em 21/06/2022)
Professora do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP), do Centro de Estudos
Avançados Multidisciplinares (CEAM), da Universidade de Brasília – Brasil
Doutoranda do Programa “Human Rights in Contemporary
Societies”, do
Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra – Portugal
Fonte: Vannessa Carneiro, 2022.
Escrevo com esta raiva e esta tristeza. Profunda.
Não trabalho com povos indígenas. Trabalho com Direitos Humanos, especificamente com o tema da Educação em Direitos Humanos. Mas, a última quarta-feira, dia 15 de junho, me atingiu bem no peito. Feriu minha alma. Me feriu, me doeu, me fez sangrar.
Me revoltou e agora sigo “apenas” triste. Triste e indignada. Sabendo
que essa mesma revolta segue, e ainda seguirá perene, em muitos outros
corações. Raiva e medo.
Duas pessoas que lutavam por seus sonhos, suas causas, suas paixões. Que
viviam seus projetos de mundo. De um mundo melhor, mais justo. Assassinadas.
Assassinadas, não: DESTRINCHADAS. Esquartejadas.
Entenderam!?
Es/ qua/r/ te/ jad/o/s...
Quer dizer: Desfaçelados. Desfarelados. Irreconhecíveis
(ou melhor, identificados somente pela arcada dentária).
Peças e partes de corpos mortos com munição de caça, parece que depois queimadas, enterradas e
escondidas. Por, “ao que tudo indica” – para usar um vocabulário “neutro” –,
três homens. Um pescador indicou o lugar dos corpos... Três pessoas que agiram
sozinhas... Sem nenhuma orquestração?! Assim, tão bem premeditado?!
E como você (pessoalmente) se sente ao ler isso?
E como nós (como sociedade) nos sentimos ao viver isso?
CRUEL. DEGRADANTE. UM AVISO: O PRÓPRIO RECADO.
Não conheci Bruno Pereira, embora poderia ter acontecido. Moramos na
mesma cidade, Brasília, compartilhamos amigos em comum... Vizinhos de quadra,
colegas de trabalho. Suas crianças poderiam ter brincado com a minha filha em
um dos nossos parques.
Não conheci Dom Phillips, embora seu compromisso e amor podem ser
percebidos nas falas e nos olhos de duas mulheres; sua esposa e sua irmã. A
esposa pediu que encontrassem com celeridade “o amor da sua vida”. E isso me
abalou profundamente.
A perda de grandes amores
A perda dos/as filhos/as
A perda de pessoas que sonhavam
Um sonho de um novo mundo, de um outro mundo
A perda de protetores/guardiões da natureza, da Terra
Que defendiam, e que VIVIAM, o que acreditavam, o que amavam
Que simplesmente se entregaram e foram até as últimas consequências por
acreditar que um outro mundo era necessário, urgente, possível...
Entretanto;
O céu cai.
O céu já caiu.
O céu continua caindo, novamente.
Numa iminência constante.
Mortes políticas, crimes políticos – que são esvaziados de sua
politicidade, tratados como querelas pessoais. E o mundo segue perdendo
sentido. Deixando para trás muitas/os outras/os. Tantas e muitas e outras. Diversas
perdas irreparáveis.
Acabei de conversar ao telefone com um amigo do Ibama, que trabalhou com
o Bruno. Ele me disse que o Bruno tinha uma agenda que:
“Além de ser muito específica, é muito complexa, muito difícil, muito
arriscada. Então, a pessoa tem que gostar, tem que entender, tem que ir lá para
dentro. Ele era a última barreira entre os povos isolados, os que não querem
contato, com esse avanço da pressão do garimpo, da caça, da madeira, [da
pesca, do tráfico etc.]. Ele era a última barreira. Ele foi o cara que
segurou até hoje esse contato. Esse embate. [...] Aí, agora sem ele, não tem
essa pessoa. Até que daqui a vários anos tenha um concurso na Funai e entre
alguém com a cabeça, com a coragem, com a determinação... É difícil. [...] É
difícil achar uma pessoa assim, que deixa a família por uma causa, como ele.”
Para rebaixar, diminuir, descredibilizar, mentir. Apequenar, banalizar a
situação, o fato.
Reduzi-lo (ou, paradoxalmente, expô-lo por ato falho) para mostrar
talvez sua verdadeira dimensão: suas presenças, “uma aventura não
recomendada”. Realmente, descortinar verdades, não é recomendado.
O atual Chefe do Executivo segue à imprensa dizendo:
“[...] os dois resolveram entrar em uma área completamente inóspita,
sozinhos, sem segurança, e aconteceu o problema...” ;
“[...] mas, por exemplo, esse inglês, ele era malvisto na região, porque
ele fazia muita matéria contra garimpeiro [...]. Então, aquela região
lá, não gostavam dele. Ele tinha que ter mais do que uma atenção redobrada para
consigo próprio”;
“[...] é muito temerário você andar naquela região sem estar
devidamente preparado, física, mente, e também com armamento”.
Dizer isso de:
Um compatriota, um cidadão do seu País, um funcionário público do seu
Estado;
Um estrangeiro, um jornalista em plena investigação, um cidadão do mundo
que tinha o direito inviolável de proteção à vida.
Questionado sobre os desaparecimentos específicos, retrucou: “Eu não
sei ao certo, Leda, mas eu acho que em torno de 60 mil pessoas desaparecem no
Brasil por ano...”.
Essa é a resposta do Chefe de Estado e de Governo. Mais uma vez, um discurso
de ódio. Estupidez, maldade, falta de responsabilidade. Não penso aqui em apontar
culpadas/os, apenas acredito ser importante pensarmos em responsáveis (por ação
e omissão). E se entende por “responsável” mais do que a única, e principal,
“responsabilidade” de lamentar... E continuamos a lamentar e a ignorar...
A posição da nota de luto oficial do Brasil, pela Funai, não menciona o repúdio
vinculado à brutalidade dos crimes, não trata o caso como político, nem faz
indicações ou dá sinais disso. Para, assim, podermos pensar/planejar/construir
outras e novas medidas de monitoramento, de proteção, de denúncia e de defesa sobre
o que acontece hoje no Vale do Javari (e em tantas outras terras indígenas).
Apenas ouço/leio/vejo sucateamento: cortes orçamentários, perseguição de funcionárias/os públicos,
substituições/trocas e recorde de cargos vagos... E silêncio.
Desmonte, ampliação das infrações ambientais
Naturalização da falta de fiscalização e do crescimento do crime
organizado
E satirização: desaparecimentos e mortes brutais acontecem todo dia e em
todo Brasil...
ATÉ QUANDO????
Como Davi Kopenawa bem diz: o nosso mundo, o mundo dos brancos, dos napë, é o mundo
das mercadorias, do consumo. Nossa sociedade é a sociedade da barganha. Tudo
tem preço. A vida tem preço. As vidas têm seus preços.
Pergunto: Quantas vidas, quantos anos, quanto estudo, quanta técnica, quanta
prática, quanta coragem e quanto amor vai levar para (não) substituirmos
Bruno e Phillips?
Como esse meu amigo disse: realmente, é muito difícil de substituir. Mesmo
sabendo que todas/os somos insubstituíveis. No caso deles, o tempo é ainda mais
largo.
Domingo, dia 19 de junho, fui para rua – para o Eixão Norte –, participar
de um ato simbólico de protesto in memoriam. Para não
esquecer. Para não esquecermos.
Fonte: Vannessa Carneiro,
2022.
É essa a pedagogia da infâmia que temos o dever de denunciar.
“Não gostavam dele...”; Por que mesmo?! Ah, deveriam estar armados e preparados
física e psicologicamente...
Uma anedota no mínimo curiosa: incentiva-se o armamento da população, enquanto no caso de órgãos como
a Funai o ideal é ter suas/seus agentes desarmadas/os.
Bem, esta dita “área completamente inóspita” – onde se é “muito
temerário andar” e até agora sem errata ou pedido de desculpas –, não era
um ambiente turístico, mas, sim, o palco da VIDA de alguém que vivia e
lutava lá há pelo menos 10 anos. Que não só reconhecia a região muito bem, como
também era muito bem reconhecido dentro dela. Liderava excursões de
fiscalização, de proteção, de divulgação. Falava mais de quatro línguas nativas
de lá. Servia como um guia e apoiador essencial de operações complexas dado seu
profundo conhecimento. VIVIA A FLORESTA e cada curva de seu rio.
Bruno e Phillips sabiam de toda a “economia” ilegal que rondava aquele
território. Sabiam e denunciavam. Denunciavam, por meio da Univaja – que segue,
ao contrário do que a Polícia Federal (PF) alega preliminarmente, dizendo que o
crime tem, sim, mandante: Organizações criminosas; donos do tráfico
(cocaína, madeira, ouro/garimpo, pesca, caça ilegal etc.). Por isso, eram (e
muitas/os ainda seguem sendo) ameaçados.
Segundo a Univaja, em distintos ofícios enviados a várias autoridades
competentes: "Descrevemos nomes dos invasores, membros da organização
criminosa, seus métodos de atuação, como entram e como saem da terra indígena,
os ilícitos que levam, os tipos de embarcações que utilizam em suas atividades
ilegais".
Junto com Bruno, perdemos uma importante camada/muro (do lado dos
brancos, do poder do Estado – e não do Governo – e de outras instituições), que
auxiliava a blindagem daquela parte da floresta contra o caos da fumaça dos
seres das epidemias.
Junto com Dom Phillips, perdemos um olhar atento, comprometido e honesto
pelo grito e pela denúncia ampla, para fora. Perdemos seu livro e todas as
informações coletadas. Hoje minimizadas: um silenciamento compactuado, por meio
de vistas grossas.
Como cidadã brasileira, mulher e mãe;
Que respeita e ama a Natureza
Que respeita e ama a Floresta
Que respeita e ama os Povos Indígenas
Que respeita e ama pessoas que lutam contra todos os tipos de injustiças
e de barbáries
Não posso ficar sem me pronunciar e dizer que não é somente lamentável
essas vidas tiradas... Lamentável é pró-forma...
É ULTRAJANTE, É INDIGNANTE, É REPULSIVO
Essas e tantas outras mortes.
E não me interessa saber quem matou, mas quem foi que mandou matar;
Como disse Sônia Guajajara: “Quem MANDOU MATAR?”
A quem beneficiou essas perdas? O que se pretendia esconder, acabar,
dizimar?
Quem é conivente (tácita ou explicitamente) com esses assassinatos?
Quem compactua na teima em permanecer de olhos fechados?
Quem...?
Por cada indígena
assassinada/o – Que segue RESISTINDO há mais de 500 anos, como diz
Ailton Krenak
Por cada apoiadora/r branca/o morta/o
Por cada defensora/r da fauna, da flora,
A FLORESTA NÃO TEM PREÇO!
É essa a pedagogia da vida que quero construir e vindicar! A
da revolta e a da raiva como um ato político necessário, sempre! Que
mobiliza além. Como dizia Paulo Freire.
É essa a pedagogia da politicidade em cada ato social que
escolhemos ter ou pontuar, nos posicionando sempre que necessário, sempre!
Que mostra de que lado estou. Pois, aqui há lados: pró-sistema (pró-banalização) ou anti. Não só
neste caso injusto, mas em muitos outros casos.
É que, para mim, esse foi o pedaço que parou na garganta e que me fez
gritar!
De dor, de inflamação, de indignação. Bruno e Phillips poderiam
ser eu.
Mais do que “meus sentimentos” ou meu desejo de “conforto ao coração” das
famílias. Minha resposta é:
EU REPUDIO ESSES ASSASSINATOS ESQUARTEJADOS! ME INSUBORDINO A ELES.
Seis homens da Polícia Federal, em Tabatinga, para uma fronteira de 8,6
milhões de hectares... Indicam-na como quase o tamanho de Portugal.
LACUNAS QUE FICAM PARA TODAS/OS E EM TODOS OS LADOS.
Fragmentos de partes e peças do tecido social: Famílias, sociedade, Estado.
Tragédias como essa que, com certeza, infelizmente, se repetirão... Sem
dúvida.
Assassinatos de lideranças e/ou grandes especialistas que não cessam.
Mas que devem SIM acender nossa MEMÓRIA, nossa indignação; que devem sim
nos INFLAMAR, nos MOBILIZAR para REPUDIAR tais fatos a cada momento em que
ocorrem.
Nossa vontade de busca pela verdade e pela responsabilização
Nossa vontade da força coletiva, cada vez maior, para juntas/os gritarmos
por justiças;
Legal, jurídica, social, econômica, cognitiva.
Não basta falar, mas, sim, fortalecer concretamente as lutas pessoais e
coletivas. E a nossa certeza
de que teremos, sim, que seguir cobrando, para sempre, e em qualquer Governo. Lembrando
das vidas de antes, de hoje e de depois. E por isso a essencialidade de
RESPONSABILIZAÇÃO e REPRESENTAÇÃO/REPRESENTATIVIDADE.
Os fatos estão aí. É “apenas” requerido olhar com os olhos “de ver”.
Mas, é tudo muito triste.
Pelas vidas dos que estão morrendo por um/neste sistema já morto.
Fonte: Vannessa Carneiro, 2022.
Fontes consultadas:
- Vídeos
https://www.youtube.com/watch?v=5lQxxUy4Eak
https://www.youtube.com/watch?v=6ER6sML1S2s
https://www.youtube.com/watch?v=7H4gvuRknko
https://www.youtube.com/watch?v=7pCU_ySw3II
https://www.youtube.com/watch?v=aUBz2oWfsek
https://www.youtube.com/watch?v=jkfJBSpjF48
https://www.youtube.com/watch?v=kfbOfaEbLm4
https://www.youtube.com/watch?v=Uy-c9EOB7bA
- Reportagens
https://alicenews.ces.uc.pt/index.php?lang=1&id=39285
https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/06/5015935-governo-perdeu-controle-da-regiao.html
https://www.inesc.org.br/fundacao-anti-indigena-um-retrato-da-funai-sob-o-governo-bolsonaro/
https://infoamazonia.org/2022/06/16/entrevista-carlos-travassos-vale-do-javari/
*Último acesso em 21 de junho de 2022.
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