Sonhos que viram pesadelos” para a zona do não-ser: o tráfico de pessoas e a cidadania inexistente
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Sabrina Beatriz Ribeiro Pereira da Silva. DOS “SONHOS QUE VIRAM PESADELOS” PARA A ZONA DO NÃO-SER: O Tráfico de Pessoas e a Cidadania Inexistente. Monografia apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília como requisito para obtenção do grau de bacharela em direito, sob a orientação da professora Doutora Talita Tatiana Dias Rampin, 2022
Tenho Lido para Você, neste espaço, em geral livros, mas também teses e dissertações, às vezes relatórios, sempre com o intuito de sugestões a pesquisadores e a editores. Aqui e ali, por conta de ofício, acabo me deparando com excelentes monografias e TCCs, concluídos depois de sabatinados, e aptos à publicação como artigos e até, boas plaquetes perfeitamente editáveis.
Esse é bem o caso dessa monografia, que tive a oportunidade de examinar na Faculdade de Direito da UnB, integrando Banca Examinadora, que poderia ter sido montada para uma qualificada tese de doutorado: Professoras e Professores: Talita Tatiana Dias Rampin – FD/UnB, Orientadora; Ela Wiecko Volkmer de Castilho – FD/UnB; Marcelo da Costa Pinto Neves – FD/UnB.
A autoria fala pela atenção que deu ao trabalho a super-qualificada banca examinadora. Venho acompanhando a trajetória acadêmica de Sabrina Beatriz Ribeiro Pereira da Silva, com seu sobrenome tão brasileiro, ela própria um ideal tipo de todo o empenho de nossa universidade para se realizar como a universidade necessária proposta por Darcy Ribeiro, capaz de exercer lealdade com o povo e poder contribuir para satisfazer as expectativas do social, até poder se expandir em atualização como universidade emancipatória tal como me empenhei em meu reitorado, para se fazer ainda mais democrática, participativa, inclusiva (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012).
Sobre assim se posicionar, basta ver o depoimento de Sabrina, nos Agradecimentos, nos quais o reconhecimento ao institucional que a acolheu em políticas de acesso e de permanência, foi apto a recepcionar todo o potencial que sua inteligência e caráter e lhe apoiar para que se realizasse em plenitude transportando para o instante de certificação todas as expectativas de um projeto tanto pessoal – projeto de vida, quanto coletivo, de seus familiares, de sua comunidade, de sua raça, de seu gênero, de sua classe – projeto de sociedade. Sabrina revela todos esses vínculos, os apoios que teve, a confiança que conquistou, tudo expresso na qualidade de sua formação, que o tema da monografia expõe, solarmente.
Que o confirme o resumo da Monografia:Qualquer um pode ser vítima da coisificação da pessoa realizada pelo crime de tráfico humano, mas, além do fato de terem sido exploradas e comercializadas como se coisa fosse, o que as vítimas do tráfico de pessoas têm em comum? A partir do método de pesquisa empírica – com a realização de pesquisa participante, entrevistas semiestruturadas – e qualitativa – com revisão bibliográfica, análise documental –, este estudo observou que, tendo essa prática criminosa vínculo direto com a vulnerabilidade socioeconômica e estando a desigualdade social brasileira intrinsecamente relacionada à fatores raciais, existe uma situação de sobre e subintegração que empurra os seres racializados para uma zona de negação de existência, zona do não-ser, que ainda se divide em sub-humanos e não-humanos, que intersecciona questões de orientação sexual e identidade de gênero. Estruturado em três capítulos, esta monografia primeiro desconstrói os mitos e falácias da narrativa “quando o sonho vira pesadelo”; depois apresenta um panorama histórico, organiza dados, ideias e explana o arranjo social nacional do tráfico humano; por fim, o terceiro capítulo foca-se em responder o problema de pesquisa, apresentando dois exemplos de cidadanias inexistentes marcadas pela construção racializada da zona do não-ser e pela subalternidade das identidades de gênero e orientações sexuais que fogem à cis e heteronormatividade do padrão branco.
E o revele o sofisticado sumário do trabalho:
INTRODUÇÃO 1. TRÊS MITOS SOCIAIS QUE CIRCUNDAM O TRÁFICO DE PESSOAS E OS PRECONCEITOS TRADICIONAIS DA CONCEPÇÃO DE “QUANDO O SONHO VIRA PESADELO”
1.1. Mito 1. As máfias internacionais são as principais responsáveis pelo tráfico de pessoas
1.2. Mito 2. Tráfico de gente só acontece internacionalmente
1.3. Mito 3. Perfil das vítimas: Do “Jeca Tatu” ao pânico moral
- TRÁFICO DE PESSOAS: os problemas conceituais, a atual legislação brasileira (Lei n° 13.344/2016) e o descaso com a prevenção
2.2.1. Iniciativa da sociedade civil: Associação dos Travestis, Transexuais e Trangêneros de Goiás (Astral – GO)
2.2.2. Iniciativa da sociedade civil: Projeto Vez e Voz
- ZONA DO NÃO-SER: a cidadania inexistente das vítimas do tráfico de pessoas
3.1. O trabalho escravo contemporâneo e a zona do não-ser
3.2. Cidadania inexistente: o “resgate” das travestis vítimas de exploração sexual
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Ainda antes de ler a monografia de Sabrina, na condição de coordenador acadêmico no projeto Vez e Voz na UnB, eu já vinha me debruçando sobre relatórios e avaliação da execução desse projeto, formulando meus juízos críticos sobre o que ele representa.
Assim é que, depois do exame de relatórios mais recentes pude elaborar artigo de divulgação: “Tráfico de pessoas: crime agravado pela desigualdade social”, publicado no qualificado espaço da REVISTA IHU ON-LINE (https://www.ihu.unisinos.br/611641-trafico-de-pessoas-crime-agravado-pela-desigualdade-social), para concordar com o que é praticado nesse projeto, no sentido, eu disse no texto, de que “Inscreve-se nos esforços para o enfrentamento desse flagelo, o Projeto Vez e Voz desenvolvido na Universidade de Brasília com o objetivo de desvelar uma prática criminosa que acontece demais nas periferias do Brasil. Seu objetivo é levar a temática invisível do tráfico de pessoas às escolas, dialogando com os estudantes, proporcionando informações para que se previnam dos aliciadores. Segundo os coordenadores do projeto, em Relatório, ‘é impossível falar de Tráfico sem falar de vulnerabilidade social, racismo, violência de gênero e sem citar a evidente desigualdade social, em que uns ganham muito e outros nada’”.
Também no artigo fiz remissão, tratando do projeto, ao que disseram sua coordenadora executiva, a educadora popular Rosa Maria Silva dos Santos, e estudante estagiária, Sabrina Beatriz Ribeiro Pereira da Silva, em programa de TV (TVExpreso61 | Programa O Direito Achado na Rua): Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Projeto Vez e Voz (cf. em https://www.youtube.com/watch?v=KaT3sUwW-RE&list=PLuEz7Ct3A0Uj9NU2BYmgSIM0rWv7IRAjK&index=22).
Tenho que elas remetem, em suas manifestações, tal como agora reitera Sabrina na monografia, ao Protocolo de Palermo (2000), texto adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, 2000, ratificado pelo Brasil (Decreto n. 5017/2004), definindo o tráfico de pessoas: “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos”, de onde deriva a atualização do Código Penal brasileiro, com a inclusão tipo definido no artigo 149-A incluído pela Lei 13.344/2016.
Mesmo com essa avançada normativa internacional, ainda é o muito difícil vencer a sutileza ocultadora de “práticas” naturalizadas de relações sociais patriarcais que nem as autoridades de controle criminal, nem os meios de comunicação, nem as muitas catequeses, delas se dão conta. Todavia, como mostra Rosa Maria, elas carregam o núcleo do tipo criminal: o “amor romântico” que encobre o chamado “escravismo branco”; a ilusão do patrocínio na prática do sugar baby e, tão comum no trânsito entre desigualdades, a “generosidade” da casa grande que mantém a senzala quando recruta nas periferias os serviços de jovens que serão acolhidas como parte da família, para serem educadas, terem uma oportunidade, claro, com a retribuição de alguns serviços domésticos, sem limite de jornada, muitas vezes sem salário (porque lhes damos tudo), praticamente em cárcere privado.
A atualidade dessa avaliação, aliás, no mesmo momento em que Sabrina submete sua monografia a julgamento crítico, ela vem toda exposta a crivo social e político em mesa que o Projeto Vez e Voz submeteu ao Forum Social Mundial Temático Justiça e Democracia que se realiza entre 26 e 30 de abril em Porto Alegre.
Nessas expressões concomitantes, cuida-se de afrontar desafios e perspectivas para o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil, que na UnB, desde antes vem sendo campo de sistemática intervenção. Menciono para estabelecer interconexões, ao menos duas obras, “Desafios e perspectivas para o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Série Educando para os Direitos Humanos: Pautas pedagógicas para a cidadania na Universidade Vol. II”. Organizadoras: Nair Heloísa Bicalho de Sousa, Adriana Andrade Miranda e Fabiana Gorenstein. Brasília: Ministério da Justiça / NEP-CEAM-UnB (Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos-Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, Universidade de Brasília), 2011; e “Tráfico de Pessoas e Mobilidade Humana”. Organizadora Maria Lúcia Leal. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2018.
Sobre elas ofereci recensão (http://estadodedireito.com.br/desafios-e-perspectivas-para-o-enfrentamento-ao-trafico-de-pessoas-no-brasil/), para estabelecer pertinência e os vínculos teórico e político que ligam uma a outra obra, na linha de posicionamento a favor do paradigma dos direitos humanos em contraposição à xenofobia e ao apartheid; de defender uma epistemologia de valorização dos sujeitos sociais; de propor o esclarecimento de conceitos capazes de instrumentalizar um movimento em prol da globalização contra-hegemônica, tendo em vista uma ação transformadora capaz de articular “saberes e teorias com práticas concretas de mediação do ser social por meio de alianças locais e transnacionais contra o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual” (LEAL, Maria Lúcia Pinto. Desafios e Perspectivas…op. cit. pp. 31 e 274).
Mas sobretudo para recuperar do corpo das obras examinadas, dois registros que têm inteira vinculação com elementos esgrimidos na monografia.
O primeiro, porque guardando concepção próxima, também apresentada na Faculdade de Direito da UnB, refere a artigo de pesquisador que se fez mestre no Programa de Pós Graduação em Direito (Faculdade de Direito) da UnB, Patrick Noordoven, oferecido como atividade avaliativa da disciplina ofertada O Direito Achado na Rua, no âmbito deste mesmo programa, por isso valendo-se de conceitos e elementos teóricos e práticos de O Direito Achado na Rua, base adequada para a sua pesquisa sobre o tema da adoção internacional e o direito à identidade.
Com efeito, nesse sentido, Patrick Noordoven, conforme ele próprio revela no artigo, entrelaça a sua trajetória de um recém-nascido traficado ilegalmente do Brasil para Holanda e, portanto, privado de sua identidade, à pesquisa que desenvolve atualmente no Programa da Faculdade de Direito da UnB. Patrick, aliando seu percurso à pesquisa e à prática de seu projeto de vida, é fundador da ONG Brazil Baby Affair (http://bit.ly/2MMeOQ8) que auxilia pessoas na luta pelo direito à identidade e pelo direito de conhecer suas raízes e obter acesso às suas origens.
No artigo apresentado, cujo título é The Right to Identity – Conquering Access to Justice in Brazil (O Direito à identidade – conquistando o direito de acesso à Justiça no Brasil), Patrick, ao partir da clareza política de O Direito Achado na Rua, de que o direito, para ser verdadeiramente emancipatório, deve passar pela disputa de sua apropriação e realização, ele reconhece que a legislação de direitos humanos sobre o direito à identidade também precisa ainda ser disputada, sobretudo no Brasil, em que ainda prevalece o entendimento preconceituoso de que seria melhor para uma criança ser adotada por uma família rica do norte-global ao invés de o país prover formas de assistência a uma família carente ou de superar a desigualdade social no país. Conclui o autor, ao final de seu artigo, que O Direito Achado na Rua, em sua perspectiva teórica e prática, representa uma esperança para os movimentos sociais que estão articulados nesta luta, sendo plausível crer que a conquista do acesso à justiça está efetivamente ao alcance dos adotados, pelo menos a longo prazo.
O segundo, o artigo de Luísa Mendes Lara, Direito Achado na Rua e Educação Popular na Prevenção ao Tráfico de Pessoas com Crianças e Adolescentes em Águas Lindas de Goiás: Experiência do Projeto Vez e Voz (pp. 129-138). E a razão decorre de meu vínculo com o projeto, na condição de seu coordenador para o sistema de extensão da UnB. Embora, na prática, o projeto seja auto-gestionado por suas participantes, seguindo o modelo de seu projeto de origem, ainda em execução contínua, o Projeto PLP – Capacitação de Mulheres em Direitos Humanos e Gênero. Finalmente porque o projeto se escora teoricamente em O Direito Achado na Rua, Grupo de Pesquisa (Diretório do CNPq) e Linha de Pesquisa dos Programas de Pós-Graduação em Direito (Faculdade de Direito) e Direitos Humanos e Cidadania (CEAM), combinando, na análise da Autora, os fundamentos teórico-críticos da concepção de Direito que o abriga (Direito entendido com enunciação de princípios de uma legítima organização social da liberdade, conforme Roberto Lyra Filho) e a educação popular (conforme a Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire), uma relação, de resto, perfeitamente estabelecida, entre outros, com mais pertinência, por Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire), em Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. O Direito Achado na Rua vol. 8: Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Brasília: FAC Livros, 2017, edição impressa; edição e-book: http://bit.ly/2wbNe7C).
Nesse material, conforta-se o que parece ser o escopo do trabalho de Sabrina: de um lado, por em relevo o que ela configura como os “três mitos sociais que circundam o tráfico de pessoas e os preconceitos tradicionais da concepção de ‘quando o sonho vira pesadelo’ (o mito das máfias internacionais como as principais responsáveis pelo tráfico de pessoas) – esse primeiro mito se mostra já no subtítulo da matéria que diz: “Em busca de uma vida melhor, mulheres migram para países desenvolvidos, mas acabam caindo nas mãos de máfias internacionais e enfrentando a prostituição, maus-tratos, escravidão e até a morte”. Essa descrição apresenta a ideia equivocada de que as máfias internacionais são as grandes responsáveis pela migração e pela exploração no tráfico internacional de pessoas, porém, em verdade, trata-se de uma narrativa mitológica com potencial de prejudicar o trabalho de prevenção. (O mito de que o tráfico de gente só acontece internacionalmente) – esse segundo mito é a abordagem do tráfico humano como um acontecimento que se dá apenas e tão somente em âmbito internacional. Assim como na matéria “Quando o sonho vira pesadelo” e na novela Salve Jorge, a imagem midiatizada desse tipo de tráfico costuma estar mais atrelada à internacionalização das vítimas. Como será aprofundado em capítulo específico, tal percepção se sustenta a partir do vínculo que o tráfico de pessoas tem com a migração internacional desde a origem de seu conceito. Porém, trata-se de uma narrativa limitada e ultrapassada, pois o tráfico interno de pessoas acontece bastante e tem demonstrado ascendência. (O mito sobre o perfil das vítimas: Do “Jeca Tatu” ao pânico moral) – esse terceiro mito caracterizado por ser uma conclusão preconceituosa de peso dúplice: por uma perspectiva, põe em xeque a mínima capacidade de autopercepção da pessoa vitimada; e, por outra, impulsiona uma espécie de ajuda contraproducente do Estado para “resgatar” quem nem é vítima.
Vem daí duas assertivas fortes na monografia. A primeira, no afirmar que o “tráfico de pessoas é um conceito jurídico, e não é uma categoria sociológica, inventado desde a preocupação e “discursividade da necessidade de policiamento das fronteiras transnacionais”. As rejeições ao tráfico de pessoas negras, dos mais diversos países do continente africano, para práticas escravistas tomaram força na comunidade internacional em meados do século XIX”.
A segunda, diz a Autora, forte na verificação do “recorrido histórico, a conceituação de tráfico de seres humanos presente no Protocolo de Palermo é uma consequência mais elaborada do mesmo debate originado a partir de uma iniciativa branca, eurocêntrica, racista, sexista e, verdadeiramente, pouco (ou nada) preocupada com a dignidade sexual das vítimas, pois, inicialmente, o que se buscava tutelar era uma suposta moralidade pública sexual e a construção de pureza e fragilidade da mulher branca. Todavia, ainda assim, trata-se de um documento oficial elaborado, aprovado e firmado pelas Nações Unidas, destarte foi ratificado pelo Estado brasileiro no ano de 2004 pelo Decreto nº 5.017”.
A articulação desses mitos sobre exibir as contradições de um social clivado de hierarquias e lugares legitimados, acaba permitindo à análise de Sabrina, ainda que que se ancore numa caracterização do fundamento criminal do tráfico mas que vai fixar um achado de sua monografia. Determinar empiricamente a afirmação de um pânico moral que abre ensejo para mobilizar ações de resgate social, mais designadamente uma empreitada moral conforme suas referências teóricas: “As percepções de que “elas não se percebem exploradas” são justificadas pela síndrome pós-traumática de reação aguda ao stress, no campo da ciência é dita psi ou transtorno de adaptação . Nesse caso, a “atuação dos poderes jurídicos, outorgados aos detentores dos saberes ‘psi’ o direito de dizer sobre o outro, é tema relevante de reflexões e debates no campo da sexualidade”.
Na prática, uma modelagem colonizadora, permeada por vises raciais, patriarcais e de classe, segundo o que “se verifica é que o não reconhecimento – por parte das supostas vítimas – de que foram exploradas ou traficadas cria uma situação ambivalente: ora o discurso oficial empregado pelas autoridades desconsidera as declarações das pessoas e as colocam na posição de quem necessita de proteção e ora “as deslocam para a situação de ‘perigosas e bandidas’ [ou cúmplices] ao vincular a prostituição à marginalidade e à (des)ordem pública” .
Com esses pressupostos, Sabrina insere no capítulo que cataloga iniciativas da sociedade civil para descrever o Projeto Vez e Voz:
O Vez e Voz é um projeto de extensão continuada ligado à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). A atuação diária do Projeto conta com a orientação direta das promotoras legais populares (PLPs) e educadoras populares Laerzi Inês e Rosa Maria; na institucionalidade da UnB, por sua vez, é coordenado pelo professor José Geraldo de Sousa Junior e conta com o suporte ativo e atento das professoras Lívia Gimenes e Talita Rampin.
O Projeto Vez e Voz atua por meio de oficinas e a metodologia empregada é baseada nas teorias de Paulo Freire, tanto é assim que o termo “educação popular” é carregado já no nome oficial do Projeto. A educação popular é um movimento pedagógico e político, particularmente latino-americano, e defende que é por meio da educação que podemos conceber estratégias para concretizar transformações sociais a favor dos setores populares, conscientes de que ninguém aprende tudo, ninguém ignora tudo e por isso estamos aprendendo sempre.
O Projeto Vez e Voz foi criado na perspectiva de que promover direitos humanos está além de apresentar aos cidadãos os diversos instrumentos legais, tratados e declarações existentes. Promover direitos humanos comporta, sobretudo, a abertura de espaços para que os indivíduos mais vulneráveis se reconheçam como sujeitos de direito e a partir de suas vivências, consigam identificar e compreender os fatos sociais para que possam verdadeiramente transformar criticamente a sociedade e até o próprio Direito. O nome do Projeto foi pensado já com a finalidade de situar o protagonismo das formações de prevenção e enfrentamento ao tráfico de pessoas.
Portanto, a metodologia do Projeto se fundamenta no pressuposto de que o diálogo problematizador é base para a construção de conhecimentos. A problematização da realidade é necessária para a sensibilização em relação à pobreza, ao racismo, à violência, à injustiça, bem como tudo que ofende a dignidade da pessoa humana. Ao mesmo tempo, tal problematização é crucial para que as/os participantes da ação educativa se sintam mobilizadas/os para agir pela mudança social.
Em síntese, como pondera Rosa Maria Silva dos Santos , não é possível falar sobre o tráfico de pessoas sem falar sobre desigualdade social, racismo, inacesso à justiça, violência de gênero, LGBTfobia, violência contra a mulher, assédio sexual e de outras vulnerabilidades sociais, pois os aliciadores do tráfico humano se aproveitam dessas situações para oferecer à vítima tudo que ela quer, mas no fim acaba tirando tudo que ela tem, o que inclui também a sua dignidade, saúde física, mental, liberdades e até a própria vida.
No ano de 2018, o Projeto Vez e Voz recebeu, da Subsecretaria de Apoio às Vítimas de Violência (SUBAV) – órgão da Secretaria de Estado e Justiça e Cidadania do Distrito Federal (SEJUS-DF) – o reconhecimento aos meritórios serviços prestados à sociedade brasileira. No ensejo das celebrações dos 70 anos de existência da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948-2018), ao Projeto de Extensão Vez e Voz foi conferido o Troféu de Defensores da Justiça e da Cidadania.
Enquanto a OnG Astral encontra grandes adversidades financeiras, sobretudo para manter sua casa de acolhimento, o Projeto Vez e Voz tem “problemas de pessoal”. Quando questionada sobre quais seriam as dificuldades do Projeto, Rosa Maria responde: “Se dependêssemos de dinheiro para existir nem teríamos nascido. É a disponibilidade de pessoas da sociedade, sem vínculo e sem dependência dos governos, que nos mantém vivos”.
Neste ano de 2022, o “Vez e Voz” completa dez anos de existência e é o único grupo da sociedade civil que oficialmente compõe o Comitê Distrital de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, vinculado à SEJUS-DF. Ou seja, para além das atividades nas escolas, cursinhos e institutos, o Projeto também atua na articulação institucional de prevenção e enfrentamento ao tráfico humano, sendo sua autonomia característica fundamental que proporciona a liberdade necessária para opinar e propor, sem a preocupação de desagradar qualquer autoridade política ou administrativa justamente por ser insubordinado e independente.
Um cuidado que não pode ser negligenciado. Embora haja necessária singularidade na construção de sentido intelectual que se manifesta na monografia, a Sabrina não pode desconsiderar o arranjo coletivo que proporcionou muito dos seus achados. O tema que ela realiza em autoria própria, em outro recorte, mas tangenciado, já foi objeto de sua co-autoria em trabalho que precisa ser referido: “Projeto Vez e Voz: a Educação Popular na Prevenção e no Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas nas Escolas do Distrito Federal”, publicado em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; FONSECA, Lívia Gimenes Dias da; BAQUEIRO, Paula de Andrade (Orgs). Promotoras Legais Populares Movimentando Mulheres pelo Brasil: Análises de Experiências. Brasília: Universidade de Brasília, 2019, p. 187-206 – https://drive.google.com/drive/u/1/folders/1PjSpxTzFgSNThU1zyfLKet7vz20eTP7m. Também fiz uma recensão dessa obra, impressionado com o recorte nela exposto de que “Nasce uma Ideia: a Prevenção como Esperança”.
Também nessa linha de referências, Sabrina de novo co-autora, o texto “Projeto Vez e Voz: a Extensão Universitária Popular Trabalhando a Prevenção ao Tráfico de Pessoas na Pandemia da Covid-19”, em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (Orgs). Direitos Humanos & Covid-19. Respostas Sociais à Pandemia. Vol. 2. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022, p. 239-272 (http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-covid-19-vol-2-respostas-sociais-a-pandemia/), centrado na afirmação de que “Quando uma pessoa é explorada numa situação de tráfico, ela é tratada como se coisa fosse, o que gera grandes danos físicos e psicológicos, por vezes irreversíveis, é por isso que a prevenção é o melhor caminho”. Certo que esse trabalho não poderia ser referido aqui agora porque o livro está sendo lançado exatamente hoje. Mas até o depósito da monografia poderá ser incluído nas referências e merecer, quem sabe, uma nota.
Retomando o fio condutor de minha leitura. Muito eloquente, pois, recorrer a Fanon, com a sua metáfora da Zona do não-ser, referida à condição de cidadania inexistente das vítimas do tráfico de pessoas. Conforme Fanon, “Há uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer”.
Encaminhando sua conclusão, em que pese reivindicar o pressuposto incriminador do tipo, o que afirma Sabrina (será uma contradição?!):
“Vê-se, portanto, que condições de desemprego, pobreza, insegurança alimentar e instabilidade residencial é realidade na vida dos seres racializados que se localizam na zona do não-ser. E é importante não se olvidar que essas situações permanecem porque o Estado e toda sua estrutura branca e padronizada fazem essa escolha política. O Brasil não é um país pobre, é um país desigual e sustentado por uma estrutura racista e lgbtfóbica. No que tange à especificidade do tráfico de pessoas, os impactos de fazer parte da zona do não-ser podem ser visualizados em diferentes aspectos e amplitudes. Vejamos a seguir dois exemplos distintos que ilustram a sub-cidadania de vítimas do tráfico de pessoas e do descaso do Estado brasileiro para acolher e integrar, constitutiva de um trabalho escravo contemporâneo favorecido pela zona do não-ser: “o tráfico humano com a finalidade de exploração do trabalho escravo é a modalidade que é mais retratada no Brasil. Nesse momento vale destacar que a invisibilidade do tráfico de pessoas, tanto pela desinformação com pela subnotificação por incapacidade técnica de algumas autoridades, é uma condição que dificulta a observância do verdadeiro panorama dessa prática criminosa”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua |
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