Supremo Tribunal Federal e Neoliberalismo
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
CAIO SANTIAGO FERNANDES SANTOS. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E NEOLIBERALISMO: UMA ANÁLISE DO PERÍODO PÓS-1988. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, 260 p.
O livro, no prelo, já para lançamento pela Editora Lumen Juris , cujo selo dá relevo a algumas de minhas publicações (e que em breve, ao que tenho notícias, estará abrindo uma coleção para acolher o Professor Boaventura de Sousa Santos), é resultante de Tese de Doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor Celso Fernandes Campilongo e coorientação do Professor Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra), aprovada por banca em 20/08/2019.
Já nos agradecimentos o Autor registra, para além do preito de gratidão a seus orientadores, não só pelas referências intelectuais que aplicaram ao processo de elaboração, mas ao ambiente de acolhimento para a serenidade necessária à execução da obra; revela igualmente o movimento de transformação da tese em livro, uma outra etapa diligente necessária a uma boa edição e seus requisitos próprios.
Essa disposição já se mostra notável, fiel ao escopo da obra centrada na análise do papel do Supremo Tribunal Federal após a Constituição brasileira de 1988, enquanto localização do tema de estudo no campo destacado da Sociologia da Justiça e dos Tribunais.
O Sumário enquadra bem o roteiro para a compreensão dos objetivos da obra. A partir da Introdução, um capítulo inicial focaliza a Sociologia do Direito e os Tribunais, localizando o tema em Boaventura de Sousa Santos e no formalismo jurídico de Hans Kelsen; reivindica uma Sociologia dos Tribunais no Brasil, pela mediação do Estado brasileiro no contexto internacional, pela atuação de grandes grupos econômicos brasileiros, pela atuação dos movimentos sociais, pelo desenho institucional e o perfil dos magistrados e em face da recepção de teorias críticas ao formalismo jurídico. Então aborda o Supremo Tribunal Federal, traçando o seu panorama e a incidência de sua atuação a partir de casos que põe em tela de discussão.
O que o Autor se propõe, ele esclarece na Introdução, seguindo Boaventura de Sousa Santos é “analisar os tribunais em sociedade. A premissa teórica fundamental é que, para explicar a atuação dos tribunais, é necessário considerá-los não como um objeto isolado, mas sim inserido na sociedade. Os tribunais estão submetidos a diferentes influências e pressões oriundas de grupos e classes sociais com interesses diversos. Nesse sentido, as práticas dos tribunais são em alguma medida reflexo dessas pressões, as quais podem contribuir para que se afastem de ideais liberais. Sem considerar essas pressões oriundas do contexto político brasileiro, não é possível explicar a atuação dos tribunais. Além disso, a própria reação dos tribunais a essas pressões também tem relação com o contexto político, uma vez que os magistrados estão inseridos na sociedade. Dessa forma, a sua atuação pode refletir valores políticos e vínculos sociais, por exemplo. A tendência de se considerar os tribunais como um objeto isolado é comum na área do direito e na ciência política contemporânea, que tendem a focar em diversos fatores institucionais dos tribunais e perder de vista o contexto mais amplo em que sua prática está situada”.
Compreendo perfeitamente a preocupação do Autor em adotar esse ponto de partida. Há alguns anos tive o ensejo de coordenar pesquisa empírica seguindo protocolo do Ministério da Justiça, por suas Secretarias de Assuntos Legislativos e de Reforma do Judiciário, visando a criação de um Observatório do Judiciário.
Esse projeto ganhou relevo e passou a constituir um destaque da Série Pensando o Direito, UnB/UFRJ, PNUD/Secretaria de Assuntos Legislativos/Ministério da Justiça, Brasília, nº 15/2009. A Série, dentro da qual por meio de chamada em edital o protocolo de pesquisa foi estabelecido, remonta a uma conjuntura de forte mobilização democrática dentro do princípio de inserção do Estado e de sua alta burocracia no paradigma de governança participativa, nos marcos da Constituição de 1988, uma condição que desde os acontecimentos de 2016 (afastamento da Presidenta da República), entra em refluxo, num claro processo de desconstitucionalização e de desdemocratização do País.
Neste trabalho foi possível estabelecer pesquisa com assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
Em contrapartida, pediam esses prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.
Voltei a me defrontar com essas interpelações quando fui chamado a participar da banca e depois prefaciar o livro NEOLIBERALIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO BRASIL: MODO GOVERNAMENTAL DE SUBJETIVAÇÃO, DISPOSITIVO JURISDICIONAL DE EXCEÇÃO E A CONSTITUIÇÃO COMO UM CUSTO. THIAGO ARRUDA QUEIROZ LIMA. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020.
Escrito num cenário de exceção já delineado, mas sem que se fizesse tão agudo quanto no contexto da pandemia que passou a assolar o mundo, e sem que o trabalho pudesse sequer imaginar tal cenário, o livro se abre, a partir de um conjunto de enunciados oriundos de atores pertencentes ao campo jurídico brasileiro, com a problematização acerca dos influxos que pressionam, hoje, o Poder Judiciário do país.
O Autor admite não ser possível, diante que foi exposto ao longo do trabalho, desprezar ou ignorar o que está em jogo. Discorrendo, em meio a uma guerra epistêmica, e agora em meio a uma crise total, estão a ser, ele diz, definidos os destinos do direito nacional. O que emergirá após o cenário de crise, que já não é só política? Esse é o ponto, e é toda a nossa cultura jurídica que está em questão. A revolução jurídica que se anuncia, indissociável de uma “reforma dos juristas”, tem alcance muito maior do que eventuais mudanças legislativas. Ao se remodelar o comportamento dos que decidem quanto à própria aplicação – ou desaplicação – da lei, altera-se algo muito mais profundo e relevante, que é o modo de produção de verdades jurídicas estabelecido no país.
No fundo, me deslocando um tanto para uma outra perspectiva que não aquela focalizada pelo Autor para enquadrar a mesma ordem de problemas, o que está em causa, não é só reivindicar, a modernidade de um sistema, inclusive de acesso à justiça, mas um repensar e reorientar a própria concepção de justiça para a qual ter acesso, o que modifica muito a percepção sobre modernidade e governamentabilidade. E isso não pode ocorrer sem que se abra o tema, não só aos sujeitos econômicos no mundo dos negócios, mas à participação popular porque, como eu próprio já afirmei, as Reformas do Judiciário em curso atingem o núcleo central, funcional, organizativo do sistema de justiça como estrutura de poder mas não o abre à participação social democrática. O tipo de acesso à justiça que tem sido debatido é ainda o “acesso a um sistema de justiça patrimonialista, sexista, patriarcalista, que criminaliza os movimentos sociais”. Uma reforma do judiciário de raiz precisa ser construída pelos movimentos sociais, e, neste sentido, requer abrir espaços de articulação das grandes pautas que envolvem a democratização da justiça (http://www.jusdh.org.br/2014/12/19/reforma-do-judiciario-precisa-de-participacao-popular/).
É nessa linha de interpelação que se localiza, por exemplo, o trabalho Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos, estudo coordenado e redigido por Antonio Escrivão Filho (Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil/Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), maio de 2018).
Com efeito, na mesma linha de sua tese de Doutorado, a que se pode ter acesso pelo Repositório de Teses da UnB – Mobilização social do direito e expansão política da justiça: análise do encontro entre movimento camponês e função judicial. 2017. 315 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017 – Escrivão Filho oferece o resultado de uma pesquisa que tem por objeto o fenômeno de encontro entre o movimento social e a função judicial no Brasil, analisando a experiência do movimento camponês a partir da década de 1980, com foco empírico (primário e secundário) e bibliográfico nos conflitos fundiários e no MST, observando a sua capacidade de reivindicação e mobilização constitutiva (criação) e instituinte (efetivação) de direitos.
Neste cenário, segundo o resumo do trabalho, observa-se um fenômeno de expansão política da sociedade brasileira, e com ela uma dialética de expansão política do direito, no bojo da ativação social dos direitos fundamentais. De modo complementar, neste período observa-se ainda a densificação das funções de controle judicial sobre a sociedade e os entes estatais, o que, por via de consequência, proporciona uma potencial transferência da deliberação de assuntos de elevada intensidade política para a arena judicial – como a relação ‘Estado-sociedade’ inscrita nos direitos fundamentais- culminando, enfim, no fenômeno identificado pela noção de expansão política da justiça. Identifica-se, assim, que a análise da mobilização social do direito realizada pelo movimento camponês, e o respectivo padrão de enfrentamento judicial com proprietários, tanto pode ser melhor analisada sob o enfoque da expansão política da justiça, como fornece elementos para a própria compreensão do fenômeno da expansão judicial no Brasil, a partir do regime de enunciado democrático.
Esse é o mesmo cenário, embora alargado em alcance histórico e político, no qual Escrivão, aqui denominando contexto, instala sua análise sobre o Supremo Tribunal Federal em face dos direitos humanos. Trata-se, diz ele (pp. 5-6) de reconhecer a política como o campo constitutivo (de criação) e instituinte (de efetivação) de direitos, a partir do que antigos e novos movimentos sociais, urbanos e rurais, comunitários e eclesiais, locais e nacionais, de gênero e étnico-raciais entram em cena, primeiro deslocando o lócus da ação política dos espaços institucionais para achá-la na rua, espaço público por excelência, depois, ocupando também os espaços institucionais para então disputar a participação no próprio processo constituinte de 1987-88. Assim que, se não parece Possível afirmar a existência de um regime democrático sem direitos fundamentalmente referidos à cidadania – ou seja, às garantias de dignidade, bem estar social e participação ativa na vida política da sociedade – não soaria lógico conceber um regime de direitos sem identificar que, por detrás da sua conquista, traduzida em reconhecimento jurídico-institucional, estão os sujeitos que irromperam a história, superando violências, exploração e opressões cotidianas para, a cada novo momento, a cada nova emergência em luta social, afirmar novos direitos.
Seja sob a perspectiva com que trata Caio Santiago o tema, seja naquela a que remete abordagens quais a de Antonio Escrivão, do que se cuida é conferir a ocorrência de uma expansão política do judiciário em face de sua interação com o sistema político e a sociedade civil. E de modo mais preciso, a necessidade de considerar nesse processo, não bastar compreender a ideologia que compromete a ação individual de juízes sem entender o fluxo de interação ideológica entre tribunais e academia, mídia, grupos sociais organizados e outras instituições políticas.
Não é difícil estimar, adverte Escrivão, um potencial curto-circuito, quando se constata a súbita sobrecarga política sobre uma estrutura destreinada a participar democraticamente da deliberação sobre conflitos de elevada intensidade política, econômica e social, na medida da Formula que alia expansão política e blindagem institucional e em oposição à sua abertura democrática ao dialogo nos termos da participação e controle social.
De certo modo, eu já havia antecipado essa sobrecarga, ao examinar esse tema a partir de uma questão política que me havia sido formulada por um sindicato de servidores do judiciário como tema de um de seus congressos: é possível uma sociedade democrática com um poder judiciário conservador? Minha resposta, à altura, trilhou a mesma senda que Escrivão Filho percorre agora em seu estudo (Que Judiciário na Democracia?, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008): A resposta, obviamente, é não. Não é possível uma democratização plena da sociedade se uma de suas instituições essenciais se conserva como modelo instrumental resistente porque ele se tornará obstáculo à própria mudança. Esta é sem dúvida a questão candente hoje, em nosso pais, quando se coloca em causa o problema de sua democratização e se identifica no judiciário a recalcitrância que é social e teórica para a realização de mudanças sociais, conferindo à regulamentação jurídica das novas instituições o seu máximo potencial de realização das promessas constitucionais de reinvenção democrática.
Para Escrivão Filho, voltando ao texto de sua pesquisa, ao contrário da disposição de fomentar noções de autonomia e independência concebidas como princípios políticos próprios da função judicial diretamente referentes à garantia da sociedade contra a arbitrariedade do Estado, as alianças então construídas sobretudo durante a mediação constituinte (1988), ao invés de forjar requisitos de neutralização do sistema – reconhecimento ontológico da condição política da justiça – deixou que esse se visse permeado pela ideologia da neutralidade – enredando-o em injunções a serviço da reprodução das tradições de uma cultura institucional acostumada e orientada à manutenção do status quo.
Eis o tamanho do desafio que se coloca para a sociedade na qual se constitui a expressão de soberania popular que deve designar o perfil do Judiciário no desenho da institucionalidade em construção.
Ou ainda pior, tudo isso ainda com o que estamos assistindo agora em nosso próprio País, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de seus enunciados, como por ocasião do afastamento da Presidenta da República, numa aplicação de retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material; na seletividade de decisões envolvendo lideranças de oposição político-partidária; na tipificação criminal do protesto social; na judicialização da política; tudo levando à configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado de Exceção Democrática, que se vale da lei e da Constituição para esvaziá-las de suas melhores promessas (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Estado Democrático da Direita, in BUENO, Roberto, org., Democracia: da Crise à Ruptura. Jogos de armar: reflexões para a ação. São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, pp. 407-424).
O livro, conforme esquematiza o próprio Caio Santiago, está organizado em três capítulos: “No primeiro apresentam-se as bases teóricas para o desenvolvimento de uma sociologia dos tribunais com foco na análise do seu papel em conflitos políticos. Essas bases residem sobretudo na obra de Boaventura de Sousa Santos. Além disso, discute-se a possibilidade de se incorporar aspectos do formalismo jurídico de Kelsen para análise dos tribunais. No segundo capítulo, desenvolve-se um quadro teórico sobre a atuação dos tribunais no Brasil no período pós-1988. Com base nos trabalhos de Santos e de autores brasileiros, com destaque para Armando Boito Jr. e André Singer, são discutidas as variáveis que influenciam a atuação dos tribunais nos conflitos políticos. As três primeiras variáveis (contexto internacional, grandes grupos econômicos brasileiros e movimentos sociais) referem-se mais diretamente ao contexto político, do qual se originam diversas pressões sobre os tribunais. As outras variáveis (desenho institucional, perfil dos magistrados e teorias do direito) têm mais relação com a reação dos tribunais a essas pressões. O terceiro capítulo tem um caráter empírico e está voltado para a análise do Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Judiciário brasileiro, à luz do quadro teórico desenvolvido no segundo capítulo. Para isso, são adotadas duas abordagens complementares: um panorama e um estudo de caso. A abordagem panorâmica é realizada por meio da análise de acórdãos de julgamentos emblemáticos do tribunal no período pós-1988. O estudo de caso aprofunda-se na atuação do STF no HC 126.292 e na Medida Cautelar das ADCs 43 e 44, e articula distintos métodos de pesquisa, como análise de processos judiciais, de documentos diversos e de entrevistas de profissionais do direito. As análises empíricas são precedidas de breves reflexões sobre o estudo de caso, os métodos de pesquisa adotados e seus potenciais e limites para análise dos tribunais”.
Para o Autor, “em que pese a existência de decisões que contribuíram para a inclusão social no período pós-1988, o STF forneceu consistentes contribuições para a agenda neoliberal nos julgamentos sobre taxa de juros, privatizações de empresas estatais, valor do salário mínimo e persecução criminal de agentes que integravam governos que promoviam a agenda neodesenvolvimentista. Enquanto nos anos 1990 prevaleceu um neoliberalismo com algum respeito a direitos individuais e à democracia, nos anos 2010 o tribunal facilitou a emergência de um neoliberalismo autoritário, que reduz direitos individuais e ataca a democracia. Nesse sentido, o aspecto conservador, de contribuição para o avanço do neoliberalismo no Brasil, foi o prevaleceu na atuação do STF até 2018”.
Claro que em sua abordagem, assim como nas de outros analistas a que fiz referência, em Caio Santiago a observação sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal focaliza com mais nitidez a sua vinculação com a agenda neoliberal. Ele cita nesse sentido, minha colega de universidade, Talita Rampin, a partir de sua tese de doutoramento, aliás, desenvolvida sob minha orientação.
Com efeito, em sua tese, Talita Rampin partindo de um mapa conceitual no qual, de modo completo, cabal, enquadra o acervo teórico e de ideias da Justiça, para considerar que enquanto fenômeno social, algo que se experimenta no mundo dos fatos, na realidade social, a justiça é multifacetada, plurívoca. Como ideia, a justiça pode expressar valores ou interesses derivados da correlação de forças de poder existentes em uma determinada sociedade. Enquanto teoria explicativa, a justiça pode auxiliar para a compreensão das relações de poder em um determinado contexto. Atenta ao enfoque proposto por Roberto Aguiar (O Que é Justiça. Uma Abordagem Dialética. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1984), Rampin identifica em sua enunciação do que é justiça, a sua implicação com as práticas sociais, pois, como registra a autora, ele considera que não é possível desenvolvermos uma concepção dialética da história, do conhecimento e do homem e continuarmos a encarar a justiça como um princípio ou conjunto de princípios que pairam no absoluto de topos uranon, destacando, ainda de Aguiar, a alternativa que apresenta, vale dizer, tal como ela destaca no seu mapa das teorias, a da dialética social da justiça. Citando Roberto Aguiar (1984: XII), a dialética social da justiça significa tomar partido ao lado dos dominados, dos oprimidos, dos reprimidos e das minorias ou seja, passar pela mudança social, pela derrubada de poderes discricionários e pela transformação da economia em favor dos dominados.
Com Aguiar, a autora participa do entendimento de que não há consenso sobre o que é justiça, sendo, contemporaneamente, um tema que desafia conhecimento e posicionamento, política e epistemologicamente, vale dizer, as atenções correntes: “A justiça está em disputa: interessa ao mercado, que a incorpora como fator incidente sobre a segurança jurídica dos contratos e a livre circulação de mercadorias; interessa ao Estado de direito, que a incorpora como vetor de orientação política, materializada em garantias para a realização da cidadania, e como instrumento de resolução de conflitos e reconhecimento de direitos e interesses, tais como o acesso aos bens jurídicos considerados essenciais para a manutenção da vida; e interessa, entre outros, às ciências, que a incorporam como objeto de investigação e buscam explicar o fenômeno desde diferentes perspectivas, metodologias e áreas de conhecimento (RAMPIN, 2018: 65)”.
Mas o que Caio Santiago, extrai de Talita Rampin, ao trazê-la como fundamento para o seu trabalho, é a identificação de “outra agenda objeto de diversas influências internacionais”, muitas conferidas nos protocolos de financiamento dos Sistemas de Justiça pelo Banco Mundial, não apenas para os interesses de “estabilização dos negócios no período neodesenvolvimentista” mas para exercitar pressões sobre os tribunais brasileiros (cf. RAMPIN, Talita Tatiana Dias. Estudo sobre a reforma da justiça no Brasil e suas contribuições para uma análise geopolítica da justiça na América Latina. Tese de Doutorado em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2018).
Em linhas gerais, diz Caio, “realizar uma análise sobre a condição da justiça na sociedade moderna é considerar, em alguma medida – quer dizer, sem olvidar as experiências de justiça que emergem do pluralismo jurídico – o modo como a mediação de valores normativos e institucionais orientados para a solução de conflitos e controle da relação entre Estado e sociedade, se expressa desde a imposição do monopólio estatal de aplicação do direito, através do poder judiciário”.
De fato, com o advento da modernidade, cogitar sobre a justiça é cogitar da sua expressão como mediação institucional estatal, nos termos da função judicial. E cogitar da sua função judicial como expressão da justiça, por seu turno, significa identificar que o exercício do poder de decidir quem está certo ou errado em face de um conflito jurídico, se constituí como um dos poderes politicamente delegados pela sociedade, ao Estado.
Desse modo, o exercício da função judicial como expressão da justiça estatal se apresenta, no desenho institucional do Estado Moderno, como o exercício de uma função eminentemente política, que por seu turno fundamenta o seu exercício de aplicação do direito sobre os estritos referenciais jurídico-normativos em perceptiva material e procedimental.
A par desta consideração, o que parece importante reconhecer, neste sentido, é que em primeira e última instância, o referencial de legitimidade do exercício da função judicial é encontrado na soberania popular. Sendo este o ponto que nos permite, finalmente, cogitar acerca de uma práxis de justiça fundada nos direitos humanos, uma vez que, à revelia da tradicional e conservadora cultura de hermetismo jurídico e judicial, parece ser possível e necessário trazer para o âmbito da concepção e do desenho político de justiça estatal, o referencial da participação e controle social.
E neste sentido, parece pertinente também compreender os contornos políticos assumidos pelo sistema de justiça brasileiro nas últimas décadas, mais precisamente no que diz respeito ao que a literatura convencionou denominar de fenômeno de expansão política da justiça, e que, por seu turno, confere ainda mais relevo ao debate sobre uma práxis democrática de controle e participação social na justiça, forjada e inspirada nos valores da educação em direitos humanos.
Desse modo, na nova ordem constitucional o poder judiciário se vê, assim como toda a institucionalidade estatal e a sociedade, diante de desafios históricos para a reconstrução da sua função social. E nesse processo, acicato pelas tensões da conjuntura, no Brasil especialmente, mais que nunca vale a advertência de J. J. Gomes Canotilho, no sentido da atenção ao Direito Constitucional, “com o olhar vigilante sobre as exigências do justo, com base em teorias de sociedade e de justiça”.
Não é diversa a percepção que traz em sua leitura da obra, o cientista político Armando Boito Jr, da Unicamp: “Este livro de Caio Santiago representa uma contribuição muito importante para a compreensão da atuação jurídica e também política do Supremo Tribunal Federal. Sem ceder a simplismos, Caio Santiago expõe para o leitor diferentes facetas, à primeira vista contraditórias, dessa atuação. Examinando cuidadosamente inúmeros processos e decisões da instância superior do Judiciário brasileiro, Caio Santiago mostra que se o STF tem recebido positivamente ações que favorecem a manutenção do modelo capitalista neoliberal no Brasil, a Corte tem também acolhido ações que contribuem para a modernização dos costumes na sociedade brasileira. No primeiro caso, a Corte favorece minorias econômicas cujos interesses se opõem aos da grande maioria da população; no segundo, favorece a democracia. Numa sociedade politicamente dividida como a brasileira, tal atuação do STF causa muita polêmica e pode desagradar a gregos e troianos.”
De notar, portanto, o tamanho do problema no qual nos situamos nesta complexa relação política entre o desenho institucional da justiça, a democracia e os direitos humanos no Brasil: se por um lado atingimos um estágio político e social no qual se vislumbra confiar ao Poder Judiciário a função de solucionar ou intermediar conflitos sociais de alta intensidade política, como a efetivação ou proteção contra a violação de direitos humanos, de outro lado é justamente essa hipótese que desperta o alerta e sérias preocupações acerca da legitimidade e capacidade institucional do Poder Judiciário para lidar com tamanho alargamento político das suas funções.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua |
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