quarta-feira, 10 de março de 2021

 

Cidadania e Contratos Atípicos de Trabalho

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

Cidadania e Contratos Atípicos de Trabalho. Marcos Francisco Reimann. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2002, 224 p.

 

           Segue firme e com preparação bem consistente a iniciativa de convocação de um Fórum Social Mundial Temático Democracia e Sistema de Justiça, para confrontar sobretudo no Brasil, a voragem neoliberal desdemocratizante e destituinte de direitos, profundamente antipovo, hostil à cidadania, aos direitos humanos e aos trabalhadores.

           Relativamente às motivações e às mobilizações que concorrem para a instalação dessa edição temática do FSM, o documento de convocação e a lista inicial das entidades e coletivos que se associaram para o promover, dei notícia aqui neste espaço (http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/).

           Entretanto, essa ordem de preocupações se encontra também numa ampla frente de posicionamentos políticos, funcionais e acadêmicos que se confrontam à direção da voragem neoliberal, que ganhou espaço no Brasil e mostra como logo a seguir, às movimentações com perfil de golpe de estado, as reformas política, trabalhista, previdenciária seguiram a lógica da hegemonia do capital em relação ao trabalho, agudizada, na conjuntura por uma opção econômica que naturaliza a morte (o desgoverno antipovo) mercadorizando a vida, neste mês de março que mal se in icia (4/3) chegando à cifra imoral de um morto a cada 45 segundos.

           Recuperando um poema trágico (Anne Philipe, Spirale, Paris: Gallimard – coll. Folio, 1971, p. 45-48) diante do horror de uma estatística de mortalidade infantil no Brasil:

“’Au Brésil, trois cent mille enfants, chaque année meurent de faim’. Trois cent mille divisé…..

…Un enfant au Brésil meurt de faim

Toutes les deux minutes.

On peut les imaginer rassemblés sur la place de la Concorde ou sur les pistes d’Orly. Quelqu’un, pendant une année entière, sans dimanches ni jours fériés, va de l’um à l’autre et passe moins de deux minutes auprès de chacun d’eux. Le temps de leur fermer les yeux.

Ou encore,

Un homme qu’on appellerait ‘le plus grand criminel de l’histoire’, sans prende le temps de manger ni de dormir, fusille un enfant toutes les deux minutes pendant trois cent soixante-cinq jours…”

Este homem”, agora, com a mortalidade desgovernada, “fusila” uma pessoa a cada 45 segundos.

           Seja na destituição de direitos histórica e cruentamente conquistados, seja no desmantelamento das estruturas de proteção funcional e de orientação das políticas, seja na logística exposta com a extinção do Ministério do Trabalho, com suas atribuições transferidas ao Ministério da Economia, juntamente com a competência de segurança e saúde do trabalhador, temos que o maior efeito-demonstração dessa inversão hierárquica, que é o centro do debate justrabalhista hoje no Brasil, está na ampliação da autonomia negocial, não como reconhecimento da subjetividade jurídica do trabalhador e do seu dever de resistência mas, num ponto nevrálgico apontado por Helena Martins de Carvalho, em dissertação defendida na UnB:  “A ampliação da autonomia negocial coletiva trazida pela Lei n.o 13.467/2017 deve ser interpretada sistematicamente, porquanto situada em um ordenamento jurídico coeso e dotado de princípios gerais consagrados pelo Constituinte originário a fim de balizar a atuação legislativa posterior, além daqueles previstos em normas internacionais das quais o Brasil é signatário, que configuram o resultado de processos históricos de amadurecimento social, inadmitindo retrocesso em matéria de proteção ao valor da dignidade no trabalho”.

           A propósito dessa dissertação, sobre a qual desenvolvi neste espaço uma coluna específica (http://estadodedireito.com.br/a-dimensao-da-saude-no-direito-fundamental-ao-trabalho-digno-uma-analise-justrabalhista-do-trabalho-na-limpeza-urbana-do-distrito-federal/), tenho com Maurício Godinho Delgado por certo, que “o norte das alterações introduzidas por meio da Lei da Reforma Trabalhista (que) é, de fato, o objetivo de reduzir a extensão da imperatividade de distintas regras justrabalhistas, flexibilizando e restringindo direitos e garantias individuais e sociais asseguradas aos trabalhadores no universo das relações empregatícias”.

           Ainda avancei mais nesse tema no momento em que a convite da organização editorial, contribui para avaliar a fortuna crítica do artigo 6º da Constituição Federal e as ameaças em curso para fragiliza-lo, conforme a obra Comentários Críticos à Constituição da República Federativa do Brasil. Gabriela Barreto de Sá, Maíra Zapater, Salah H. Khaled Jr, Silvio Luiz de Almeida (Coordenadores); Brenno Tardelli (Organizador). São Paulo: Editora Jandaíra (Carta Capital), 2020 (cf. nesse espaço Lido para Você, meu comentário em http://estadodedireito.com.br/comentarios-criticos-a-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil/).

           Na linha de comentários celebratórios, contribui para o repertório de análises sobre os 30 anos, numa entrevista  que realça a incompletude concretizadora do projeto ainda em construção da Constituição de 1988 e as tensões que ele vivencia, nesse contexto de retirada de direitos (http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7230-a-constituicao-e-ainda-projeto-de-construcao), numa publicação do IHU-Unisinos (IHU On-Line, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 519, ano XVIII, 9/4/2018, p. 67-71): o processo em curso teve início com o afastamento da presidenta da República eleita, se faz atentado à Democracia, à Constituição e, em última análise, aos trabalhadores, com a Constituição arguida contra a própria Constituição. Ou ainda com iniciativas de reformas constitucionais e legislativas, retirando direitos, transferindo ativos e reorientando o orçamento público para transferir o financiamento de políticas sociais para subsidiar a lucratividade financeira e industrial em nítido movimento de estrangeirização O que nos impõe postura de engajamento, resistir em face de ameaças e avançar sem temer enfrentamentos, sabendo que as energias utópicas acumuladas nessa experiência podem animar o protagonismo que mobilize, nas crises, as forças emancipatórias do social.

           Para mim, os direitos inscritos no art. 6º da Constituição de 1988, resumem e traduzem o grande programa social formulado pelos Movimentos Sociais (Populares e Sindicais). Agora, sob ataque direto justificando.cartacapital.com.br/2016/09/12/direitos-sociais-garantidos-pela-constituicao-estao-sob-ataque-de-um-governo-ilegitimo-2/, tal como conferido pelo professor Pedro Pulzatto Peruzzo, abre-se a perspectiva de que o próprio Judiciário, que sobre esse dispositivo pouco tivesse diretamente constrangido as promessas nele contidas, ao contrário, como mostra o professor Peruzzo, houvesse inclusive iniciado uma hermenêutica de proibição de retrocesso social, sustentando haver obstáculo constitucional à frustração e ao seu inadimplemento pelo poder público, ou em perspectiva de controle constitucional de políticas públicas, tenha afastado a dirimente da reserva do possível que  não se constitui justificativa para que o Poder Público possa se eximir das obrigações impostas pela Constituição, renda-se ao movimento neo-liberal de desconstituição desses direitos e do programa social nele investido.

           Daí a questão que me acode nessas circunstâncias, fragilizados em suas lutas os seus principais protagonistas e desassistidos do estatal que devia ser o seu ponto de ancoragem, a de saber se estarão os operadores de direito à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional, assim como esteve em tempos difíceis o Supremo tribunal Federal, para lembrar com Victor Nunes Leal a necessidade que tem a jurisprudência, inclusive do STF, de andar nas ruas, para que a promessa do Direito não se torne vazia. Em voto célebre contra as interdições da ditadura ao exercício de greve, esse grande juiz afastou aplicação porque segundo definiu em voto “a lei não pode exigir do operário que ele seja herói ou soldado a serviço do patronato”.

           Agora, repito a questão: estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua HOMILIA Adoração do Santíssimo e Bêncão Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, nesse 27 de março de 2020?

           Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”?; e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, conforme sustenta a autora da Dissertação, em sua conclusão, para buscar (p. 144) “para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade”?

            Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.

           Base do humanismo do século XIX o trabalho se constituiu fonte de riqueza e condição fundamental de toda a vida humana. Engels, na esteira do pensamento de Marx chega a erigir o trabalho como princípio mesmo da humanização, indicando, na Dialética da Natureza (A Humanização do Macaco pelo Trabalho), ter o trabalho criado o próprio homem.

           Na filosofia do agir humano, inscrita na ética do cristianismo, é a condição do trabalho que vai ganhar centralidade não somente para orientar a conduta de dignidade do membro da comunidade, tal como orienta Paulo (2 Tessalonicenses 2-10: “De fato, quando estávamos entre vocês, demos esta norma: quem não quer trabalhar, também não coma”); mas assim também como princípio político de constituição da comunidade, conforme ainda Paulo e expressamente Lucas (conf. Atos 34-35: “Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro e o colocavam aos pós dos apóstolos; depois ele era distribuído a cada um conforme a sua necessidade”). Curioso que a máxima dessa ação tenha alcançado a pregação anarquista e comunista do século XIX e tenha sido transposta diretamente por Marx, para núcleo constitutivo de sua crítica ao Programa de Ghota (plataforma partidária socialista adotada pelo nascente Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) em seu congresso inicial em 1875): “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.”.

           Mesmo o liberalismo, na principiologia de seu fundamento ideológico originário, cuidou também de inserir o trabalho na categoria dos direitos humanos, movendo-o no percurso de sua ressignificação histórica para fazê-lo abrigar-se como direito fundamental inscrito na atual Declaração Universal dos Direitos Humanos.

           Esse é o ponto de partida do estudo de Marcos Francisco Reimannnesse livro que traz o selo prestigioso de Sergio Antonio Fabros Editor: Cidadania e Contratos Atípicos de Trabalho. Desenvolvendo um tema que já fora objeto de sua atenção acadêmica, em estudo que publicou com a co-autoria de Márcia de Melo Maertins Kuyumjian (Direito Humano e Direito Social: para onde vai o trabalho?, in Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, abril-junho/2001 – ano 38 – nº 150), depois objeto de uma pesquisa acadêmica no Programa de Pós-Graduação em Política Social, do Departamento de Serviço Social, da Universidade de Brasília, o autor afirma a sua convicção de ser o trabalho “criação e referência de humanidade”, simbolizado numa “profusão de figuras” que se projetam por meio de diferentes modalidades que ganham conteúdo social preciso dentro de um contexto histórico e, nesse processo, “expressão real e humana”.

           O estudo de Marcos Francisco Reimann contido em seu livro, se coloca pois, na mesma perspectiva preconizada em obra célebre de Roberto Lyra Filho também oferecida em sua singularidade pelo catálogo de Sergio Antonio Fabris Editor. Refiro-me ao influente texto de 1982, Direito do Capital e Direito do Trabalho, no qual o autor, entre outros achados preciosos para fixar a sua concepção de direitos verdadeiramente humanos, senão sob o pressuposto de extinção da exploração econômica e também do fim de todo tipo de opressão, sem o que a dignidade humana é impossível, alude à necessidade de “uma práxis voltada, segundo as aptidões de cada um, para a sociedade em que todo Direito seja Direito do Trabalho”.

           Trata-se, aí radicava o seu programa de orientação dirigida aos juristas, de dar-se conta, tal como fizemos muitos de nós, de enfibrar nossas atitudes sociais e teóricas, especialmente, assim o formulamos em programa próprio (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; AGUIAR, Roberto A. R. de (orgs), Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, Série O Direito Achado na Rua, v. 2, Curso de Extensão Universitária a Distância, Brasília: Universidade de Brasília, Editora UnB/CEAD, 1993), “nesse terreno em que o processo de conquistas graduaispelo exercício de pressões emancipatórias mais problematiza a questão do direito, tornando necessário avaliar os aportes teóricos e as mediações políticas em condições de esclarecer as interconexões entre práxis social e prática intelectual dos vários operadores jurídicos”.

           Marcos Reimann dá-se conta, como indica o título do seu livro, dessa intrincada combinação de elementos, dessa interconexão de fatores econômicos, sociais, políticos, culturais que conduzem à construção dos direitos humanos e da cidadania, cujo processo tem no trabalho uma centralidade essencial, na medida do protagonismo histórico dos trabalhadores que forjaram com suas lutas sociais, ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, os direitos sociais, levando-os à constitucionalização.

           Mas, dá-se conta também e conduz sua análise com bem documentada fundamentação teórica, dos impactos da pós-modernidade e dos efeitos da globalização sobre o trabalho, retirando-o de seu contexto social de centralidade, a partir do que, precarizado, flexibilizado, para usar a linguagem neo-liberal, o trabalho, como diz Boaventura de Sousa Santos (Reinventar a Democracia, Cadernos Democráticos 4, Lisboa: Fundação Mário Soares/Gradiva Publicações, 1998), “apesar de dominar cada vez mais os valores das pessoas, está a desaparecer das referências éwticas que sustentam a autonomia e a auto-estima dos sujeitos”, ocasionando o que Laymert Garcia dos Santos denominou de “perda do humano inscrito no caráter do investimento competitivo” para caracterizar esse processo (Tecnologia, perda do humano e crise do sujeito de direito, in OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI, Maria Célia. Os Sentidos da Democracia. Políticas do dissenso e hegemonia global. Coleção Zero à Esquerda. Petrópolis: FAPESP/Editora Vozes, 1999).

           Com efeito, em primoroso estudo acerca da reinvenção da democracia (op. cit.), Boaventura de Sousa Santos identificou um conjunto de elementos de integração do que chamou “consenso democrático liberal” para acentuar, nesse conjunto, como marco de um contrato social fundador da modernidade, liderado pelo movimento operário, o primado do direito e dos tribunais para assegurar a concretização de suas expectativas de inclusão social numa sociedade solidária.

           Em estudo que realizei, tendo essa análise como pano de fundo (Trabalho e Cidadania: Dignidade Humana e Projeto de Vida. Brasília: Revista do Tribunal Superior do Trabalho, vol. 67, nº 2, abril/junho de 2001), saliento o papel que o trabalho desempenhou nesse processo para instaurar vias de acesso à cidadania, indicando as circunstâncias históricas de extensão aos trabalhadores dos direitos civis e políticos ou a conquista de direitos novos concretizados pelo agir coletivo dos próprios trabalhadores, como o próprio direito do trabalho e os direitos econômicos e sociais.

           Entretanto, tal como descreve Boaventura de Sousa Santos, num contexto crescente de globalização dos mercados, que permite criar riqueza sem criar empregos, a erosão consequente dos direitos, combinada com o aumento do desemprego estrutural, leva os trabalhadores à perda de seu estatuto de cidadania.

           Trata-se, diz ele, de uma realidade na qual se aprofunda uma “lógica de exclusão” gerando precariedade da vida, quando então “o trabalho deixa cada vez mais de sustentar a cidadania e, vice-versa, esta deixa cada vez mais de sustentar o trabalho: ao perder o seu estatuto político de produto e produtor da cidadania, o trabalho reduz-se à penosidade da existência, quer quando existe, quer quando falta”.

           O livro de Marcos Francisco Reimann, sem perder de vista esse quadro e forte numa orientação que procura colar-se ao esforço de “redescoberta democrática do trabalho como condição de reconstrução da economia como forma de sociabilidade democrática” (SANTOS, Boaventura de Sousa op. cit.), analisa os contratos atípicos ou alternativos recentemente introduzidos ou objeto de alteração na legislação brasileira, com o álibi de reduzir o desemprego mediante mudanças no ordenamento trabalhista, e os impactos dessas novas modalidades contratuais na construção da cidadania.

           Em resumo sugerido pelo próprio autor, na primeira parte da obra são analisados, em primeiro lugar, as razões do capital, e suas artimanhas de reestruturação produtiva, trazendo impacto no processo legislativo de mudanças; em segundo lugar, analisa-se o neoliberalismo como a ideologia que pretende atribuir racionalidade ao capital e às suas relações com os direitos sociais, especialmente os trabalhistas. Na sequência, examina a flexibilização jurídica e suas relações com a ineficácia econômica da legislação, considerando a profundidade das mudanças que chegam a atingir os princípios do Direito do Trabalho.

           Na segunda parte de seu livro, o autor tendo como referência a concepção derivada da construção de uma cidadania regulada, como razão de uma política social, juntamente com a ideia de opacidade da legislação como fator de ineficácia social da regulação jurídica e as características das relações entre o contrato de trabalho e o contrato social, identifica as dificuldades e os limites efetivos, de realização das promessas legislativas, nos planos social e econômico.

           Na terceira parte de seu texto o autor analisa, em suas singularidades, as diversas modalidades de contratos de trabalho atípicos ou alternativas introduzidos ou modificados na legislação, nos primeiros cinco anos do governo Fernando Henrique Cardoso, marco da clivagem neoliberal atualmente base da governança e da gestão da economia.

           Por isso que o corte empírico temporal não data a análise, uma vez que o autor opera com recursos teóricos e metodológicos que lhe permitem captar o significado da “profusão de figuras no trabalho”, no processo de “encaixe e de desencaixe” das relações sociais, para aludir a duas categorias analíticas utilizadas por Anthony Giddens e que ele adota. Assim é, que, não inserido no horizonte de análise do texto, porque a ele posterior, o projeto que pretende colocar os acordos e convenções coletivas num patamar de validade superior ao da legislação, encontra na argumentação do livro uma tomada de posição que repudia essa possibilidade aberta de renúncia a direitos em decorrência de negociações fragilizadas pela subordinação da autonomia sindical e política a fatores econômicos e antecipa a preparação de um repertório de medidas deverá produzir em sequência ao avanço de modelo de acumulação.

           Com efeito, Cidadania e Contratos Atípicos de Trabalho orienta-se em sentido inverso ao movimento que retira as referências sociais do Direito do Trabalho. Para o autor, pressentindo essa direção neoliberal desconstituinte, cabe ao Estado assumir a garantia dos direitos mínimos constitucionais para todos os trabalhadores. O autor faz, pois, coro à melhor direção de expectativas que decorrem das condições que confiam na redescoberta democrática do trabalho quando se tem como horizonte o sentido globalizado de sua inserção na luta pelos direitos humanos, e das reservas inclusive utópicas, para armar resistências democratizantes e de salvaguarda da dignidade humana do trabalho. De fato, como acentua Boaventura de Sousa Santos, contra a voragem neoliberal que se arma no horizonte do tempo, é necessário aí “desenhar um novo e mais arrojado arco de solidariedade adequado às novas condições de exclusão social e às formas de opressão existentes nas relações na produção, extravasando assim o âmbito convencional das reinvindicações sindicais, ou seja, nas relações de produção” (op. cit.).

           No momento em que escrevo esta Coluna, os diferentes Grupos Operacionais que organizam o Forum discutem suas atribuições, entre elas a de configurar os eixos de orientação da dinâmica reflexiva e participativa do encontro, um dos eixos ainda em processo de discussão que quer acolher o debate urgente e necessário sobre Democracia, Desigualdades, Capitalismo e Sistema de Justiça.

           Isso porque, quando se discute “acesso a direitos e de busca de eliminação das desigualdades, essenciais à democracia, não raro, a discussão  se intersecciona com o tema do capitalismo, da dissolução das relações sociais, com os modelos econômicos adotados em determinados momentos históricos, na relevância de um sistema público de regulação e de proteção social, temas que se imbricam e que têm dimensão material que se traduz na repartição e investimento da riqueza produzida numa sociedade, assim como dos recursos naturais que sustentam o modelo de desenvolvimento entendido como equilibrado do ponto de vista social e ambiental e na regulação pública de proteção. A intersecção entre capitalismo, modelos econômicos implementados é vital para a própria Democracia que é sequestrada pelos modelos que afirmam e aprofundam as desigualdades sociais e interagem com a ideia de Justiça e com os sistemas de Justiça existentes”.

           Cito de memória um conjunto de enunciados que os organizadores trouxeram para a discussão, ainda não finalizada, mas que em tudo coincide com as preocupações que por toda a parte, advertem para o movimento anti-humano que o neoliberalismo promove hoje na sua exacerbação capitalista, e que vem alcançando seu máximo implemento de desumanização no contexto atual da pandemia do coronavírus que expôs o caráter perverso, genocida e tenebroso da opção política, animada por governos, no sentido do primado da economia em detrimento da vida e da própria sobrevivência do planeta.

           Neste eixo pretende-se discutir, entre outros, temas: as desigualdades sociais aprofundadas pela ação disruptiva do capitalismo e formas de limites e ou de superação; as desigualdades sociais e seus impactos na democracia; o papel de uma regulação pública que a todos busque incorporar; o papel e a atuação do Poder Judiciário e seus limites na colocação de freios à sua ação, e ao papel do Judiciário diante das reformas liberalizantes, inclusive, da trabalhista e da previdenciária; e, ainda, mais especificamente, em relação: a) à reconfiguração dos mundos do trabalho e das formas de ação coletiva; b) à cidade; c) à segurança pública; d) às desigualdades sociais; e) à defesa do direito de propriedade e à sua função social; f) ao uso e ocupação do solo; g) ao manejo dos recursos naturais; h) ao sistema de saúde e i) aos atos de corrupção.

           As interpelações que são levadas ao Forum Social Mundial Temático de 2022, seguem a mesma linha de confrontação ao capitalismo desumanizador. E coincidem na sua ênfase com as posições mais solidárias que querem trazer para o centro da política o humano como dignidade contra a coisificação do econômico sobretudo na sua forma capitalista que, como diz o Papa Francisco, opera uma “economia que mata”.

           “A justa distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera filantropia. É um dever moral. Para os cristãos, o encargo é ainda mais forte: é um mandamento. Trata-se de devolver aos pobres e às pessoas o que lhes pertence. O destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina social da Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada. A propriedade, sobretudo quando afeta os recursos naturais, deve estar sempre em função das necessidades das pessoas. E estas necessidades não se limitam ao consumo. Não basta deixar cair algumas gotas, quando os pobres agitam este copo que, por si só, nunca derrama. Os planos de assistência que acodem a certas emergências deveriam ser pensados apenas como respostas transitórias. Nunca poderão substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre, criativo, participativo e solidário”, afirmou o Papa Francisco, num discurso considerado por lideranças dos movimentos populares como ‘irretocável“, proferido no Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, no dia 09-07-2015 (http://www.ihu.unisinos.br/169-noticias/noticias-2015/544477-qesta-economia-mataq-afirma-papa-francisco).

           O livro de Marcos Franscisco Reimann foi e ainda é uma leitura de advertência num ambiente conformado e que procura recuperar o horizonte solidário do direito do trabalho como alternativa civilizacional. A concertação social num palco globalizado não é um destino. É um campo de discussão e dele nada que diga respeito à vida dos trabalhadores, sua dignidade e seu projeto pode ser descartado, pelo menos, sem luta.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5

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