quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

 

Introdução crítica ao direito à saúde

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

Série O Direito Achado na Rua, vol.4: Introdução crítica ao direito à saúde. Organizadores: Alexandre Bernardino Costa, José Geraldo de Sousa Junior, Maria Célia Delduque, Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira, Sueli Gandolfi Dallari. Curso de Extensão Universitária a Distância. Brasília: Universidade de Brasíla/CEAD-CEAM-Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos e FIOCRUZ, 2009, 460 p.

(https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/39282/2/O%20Direito%20Achado%20na%20Rua.pdf)

             A condição da pandemia trazida pelo Covid19, se no mundo trouxe o inesperado, por ter chegado de improviso e nos ter surpreendido, diz o Papa Francisco (Mensagem para o 4º Dia Mundial dos Pobres, 13/06/2020), “impreparados, deixando uma grande sensação de desorientamento e impotência”, para aqueles que têm responsabilidade comunitária e competência de gestão, e sabem como agir, ela não “chega de improviso” e nos convoca a agir.

         Para o Papa, sob essa perspectiva, ela representa a abertura de “caminhos de esperança”. Para Francisco (Carta Encíclica Fratelli Tutti sobre a Fraternidade e a Amizade Social. São Paulo: Edições Paulinas, 2020), “recente pandemia permitiu-nos recuperar e valorizar tantos companheiros e companheiras de viagem que, no medo, reagiram dando a própria vida. Fomos capazes de reconhecer como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns que, sem dúvida, escreveram os acontecimentos decisivos da nossa história compartilhada”.

Fonte: PixaBay

            Ao apresentar a obra, deste Lido para Você, quarto volume da Série O Direito Achado na Rua – Introdução Crítica ao Direito à Saúde, no contexto de uma concepção que capta o Direito em movimento ao impulso do social, indicamos desde logo, que no caso específico do direito à saúde, não se pode perder de vista o quanto a articulação de movimentos sociais, sobretudo nos anos 1980, contribuiu para a criação dessa ideia no imaginário do Direito, constituindo a arquitetura de um sistema de proteção à saúde sólido e eficaz.

          Com efeito, o movimento social pela reforma sanitária se configurou como um dos mais fortes protagonistas durante o processo constituinte que desaguou na Constituição de 1988 e teve, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília, em 1980, um momento de definição de novas diretrizes para o sistema de saúde no Brasil.

          Nesse processo, construiu-se a ideia de um sistema de saúde no Brasil (depois traduzido na Constituição), na representação de um Sistema Único de Saúde (SUS), baseado na descentralização das ações e serviços de saúde, com direção única em cada esfera de governo, atendimento integral e universal com prioridade para as atividades preventivas e participação social para a definição e o controle das ações do sistema.

          Pode-se dizer ter sido essa experiência, carregada de ampla participação política dos sujeitos sociais e presença ativa na esfera pública – a rua – para formar opiniões, o fator que conduziu o problema da saúde, até aí visto apenas como uma carência da vida cotidiana, para integrá-lo à categoria de direito social positivado, inscrito na Constituição sob a designação geral de “saúde direito de todos e dever do Estado”.

          É isso que dispõe hoje a Constituição (artigo 196), erigindo a saúde em direito garantido por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e outros agravos e ao acesso igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

          Para mim, enquanto compromisso de co-organizador da obra, permaneceu a lealdade trazida nesse enunciado, de tudo quanto se expressou na mobilização social traduzida pelo Movimento Sanitarista brasileiro quando esboçou, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, a concepção e o desenho de um sistema que veio íntegro para a Constituição de 1988. E de minha parte com a gravidade de ter participado da construção do modelo, integrante que fui do primeiro painel Saúde como Direito Inerente à Cidadania e à Personalidade, logo após a abertura com a presença do Presidente da República, expondo o tema A Construção Social da Cidadania, anais p. 61-69.  (http://www.ccs.saude.gov.br/cns/pdfs/8conferencia/8conf_nac_anais.pdf).

          Essa lealdade, compartilhada pelos meus colegas co-organizadores, se expressa no Sumário, que  abre com a apresentação da Série, contida na ideia de O Direito Achado na Rua: uma ideia em movimento, Alexandre Bernardino Costa e por mim, como co-coordenadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, logo a seguir, a estrutura da obra.

          UNIDADE I – CONSTRUINDO AS BASES DA DISCUSSÃO, Módulo 1 – Cidadania e direito à saúde, André-Jean Arnaud e Wanda Capeller; Módulo 2 – Pluralismo Jurídico e Regulação (oito tendências do direito contemporâneo); José Eduardo Faria; Módulo 3 – Consolidação do Direito Sanitário no Brasil, Fernando Mussa Abujamra Aith; Módulo 4 – Uma visão internacional do direito à saúde, Daisy de Freitas Lima Ventura.

          UNIDADE II – EVOLUÇÃO DO DIREITO À SAÚDE, Módulo 1 – O conteúdo do direito à saúde,  Sueli Gandolfi Dallari; Módulo 2 – Tijolo por tijolo: a construção permanente do direito à saúde, Maria Célia Delduque e Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira; Módulo 3 – O Sistema Único de Saúde, uma retrospectiva e principais desafios, Ximena Pamela Diaz Bermúdez; Edgar Merchan-Hamann; Márcio Florentino Pereira; Roberto Passos Nogueira; Sérgio Piola e Déa Carvalho; Módulo 4 – Ética Sanitária, Dalmo de Abreu Dallari.

          UNIDADE III – A SAÚDE COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL, Módulo 1 – Drogas e criminalidade,  Roberto Lyra Filho; Módulo 2 – Fragmentos de discursos construídos a várias vozes: notas sobre democracia, participação social e Conselhos de Saúde, Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira; Módulo 3 – Algumas considerações sobre a influência da saúde nos contextos de inclusão social: o caso dos portadores de sofrimento mental, Janaína Penalva; Módulo 4 – Saúde mental no contexto do Direito Sanitário, Tânia Maria Nava Marchewka; Módulo 5 – Direito à saúde de grupos vulneráveis, Adriana Miranda e Rosane Lacerda; Módulo 6 – Vigilância em Saúde do Trabalhador, Jorge Mesquita Huet Machado; Módulo 7 – A cidadania encarcerada: problemas e desafios para a efetivação do direito à saúde nas prisões, Fábio Sá e Silva

          UNIDADE IV – DO DIREITO ÀS AÇÕES CONCRETAS, Módulo 1 – Áreas de controvérsia: o Caso da Biodiversidade, Boaventura de Sousa Santos; Módulo 2 – A saúde e o meio ambiente: políticas públicas coincidentes?, Maria Célia Delduque e Lenita Nicoletti; Módulo 3 – Financiamento da Saúde: ferramenta de concretização do direito à saúde, Swedenberger Barbosa; Módulo 4 – Educação em Saúde, Luiza Aparecida Teixeira Costa e Dirce Guilhem; Módulo 5 – Acesso a medicamentos: direito garantido no Brasil?, Ramiro Nóbrega; Módulo 6 – Sistema Federativo e Saúde: descentralizar o SUS, Humberto Jacques de Medeiros.

          UNIDADE V – INSTITUIÇÕES E SAÚDE, Módulo 1 – Judicialização desestruturante: reveses de uma cultura jurídica obsoleta, Jairo Bisol; Módulo 2 – O Tribunal de Contas da União e os Conselhos de Saúde: possibilidades de cooperação nas ações de controle, Maria Antônia Ferraz Zelenovsky; Módulo 3 – Fiscalização da Saúde e um novo Direito Administrativo, Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira.

          UNIDADE VI – OS DESAFIOS EMERGENTES DO DIREITO À SAÚDE, Módulo 1 – Paradoxos da proteção jurídica da saúde, Laurindo Dias Minhoto; Módulo 2 – Terrorismo, direitos humanos e saúde mental: o caso do campo de prisioneiros de Guantánamo, Cristiano Paixão; Módulo 3 – Propriedade Intelectual e Patente Farmacêutica, Márcio Iorio Aranha; Módulo 4 – Preparação para emergências de Saúde Pública no Brasil, Eduardo Hage Carmo; Módulo 5 – Genoma, pesquisa com seres humanos e biotecnologia: proteção pelo direito, Volnei Garrafa; Módulo 6 – Saúde: direito ou mercadoria?, Guilherme Cintra.

            Assim, numa emergência composta de impulsos de exceção, o jurídico é chamado a se constituir como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso no País e à banalização da vida pela ação de governança absolutamente incompetente para agir no enfrentamento à pandemia, mesmo contra um Judiciário às vezes recalcitrante ainda claudicante por conta de seus desacertos recentes.

          É um alento em meio à desorientação funcional e errática de autoridades das quais um mínimo de coordenação devesse ser esperada, concedendo que não se atenham a intenções dolosas, constatar a mobilizada resposta social de defesa sanitária e de respeito à cidadania.

            Algo que ultrapassa “todos os limites” ao impulso da “estupidez assassina” que implica o próprio “presidente diante da pandemia de coronavírus” ao ponto de uma “irresponsabilidade delinquente”, que sequer finge “capacidade e maturidade para liderar a nação de 212 milhões de habitantes num momento dramático da sua trajetória coletiva”  É o que diz em editorial o Jornal Folha de São Paulo (O que Pensa a Folha, 12/12/2020), ao apostrofar: “Chega de molecagens com a vacina!”.

          Com mais de 180 mil pessoas que já morreram de Covid-19 no Brasil pela contagem dos estados, subestimada e com a epidemia voltando a sair do controle, o jornal considera “o presidente da República, sabotador de primeira hora das medidas sanitárias exigidas e principal responsável por esse conjunto de desgraças”, largando a população “abandonada pelo governo federal”, em “descaso homicida!”.

          Por isso começam as mobilizações da Sociedade Civil, tal como a campanha Vacinas Já!, lançada nesse 10 de dezembro (dia universal dos direitos humanos), pela Comissão Justiça e Paz de São Paulo  exatamente “pelo direito de todo ser humano à vacina gratuita contra o Covid-19”,  chamando o País a se unir “para assegurar o direito humano à vida , garantido pelo art. 5o da Constituição Federal”, pois “a vida de todo ser humano importa”.

            Assim, é com o valioso respeito e consideração ao acumulado democrático de políticas públicas e sociais, sobretudo na área de saúde, que desde a Constituição de 1988 foi considerada direito de todos e dever do Estado, por meio de um sistema único de atenção universal mantida pelo orçamento público.

            Ainda bem que se assiste nessa quadra de desconstrução de políticas, o engajamento para a defesa desse modelo de atenção, não só por meio de atuação de defesa do sistema público de saúde e de seu principal instrumento o SUS, como acontece agora com a Campanha O Brasil Precisa do SUS. Soa como uma canção ouvir Caetano Veloso entoar que no “Brasil tão desigual precisamos defender o SUS como nossa maior política pública social”.

          Uma nota de relevo para a edição. Todas as ilustrações, capa e entre-unidades são criações artísticas de portadores de sofrimento psíquico, cujos créditos autorais estão assinalados na obra. A seleção artística resultou do cuidado baseado na construção do sujeito considerando-o na sua integralidade e buscando sua inclusão social por intermédio da arte e novas linguagens.

          Essa disposição pode ser atribuída a uma das expressões fortes da concepção do SUS que, em seguida a sua implantação orgânico-participativa conforme um sistema de conselhos, para o exercício democrático-participativo, tanto deliberativo quanto no exercício do controle social da política, que tem se revelado tão rico na expansão desses fundamentos.

          Um aspecto eu gostaria de pôr em relevo, o que deriva da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS), designada na Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013, no que esta visa colocar as práticas populares em saúde em um plano mais amplo, de forma democrática e com participação social.

          Essa política, conforme o pactuado e expresso nessa regulamentação, reafirma o compromisso com a universalidade, a equidade, a integralidade e a efetiva participação popular no SUS, e propõe uma prática político-pedagógica que perpassa as ações voltadas para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a partir do diálogo entre a diversidade de saberes, valorizando os saberes populares, a ancestralidade, o incentivo à produção individual e coletiva de conhecimentos e a inserção destes no SUS.

          Notáveis, em termos de enunciado burocrático, os princípios que a orientam e que poderiam ser extraídos dos melhores repertórios do campo epistemológico que formam o acervo dos estudos sobre emancipação social: diálogo; amorosidade; problematização; construção compartilhada do conhecimento; emancipação; e compromisso com a construção do projeto democrático e popular.

          E pasme-se, é a norma que os designa em sua conceituação:

           Diálogo “é o encontro de conhecimentos construídos histórica e culturalmente por sujeitos, ou seja, o encontro desses sujeitos na intersubjetividade, que acontece quando cada um, de forma respeitosa, coloca o que sabe à disposição para ampliar o conhecimento crítico de ambos acerca da realidade, contribuindo com os processos de transformação e de humanização”.

          Amorosidade “é a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da sensibilidade, propiciando ir além do diálogo baseado apenas em conhecimentos e argumentações logicamente organizadas”.

          Problematização “implica a existência de relações dialógicas e propõe a construção de práticas em saúde alicerçadas na leitura e na análise crítica da realidade”.

          Construção compartilhada do conhecimento “consiste em processos comunicacionais e pedagógicos entre pessoas e grupos de saberes, culturas e inserções sociais diferentes, na perspectiva de compreender e transformar de modo coletivo as ações de saúde desde suas dimensões teóricas, políticas e práticas”.

          Emancipação “é um processo coletivo e compartilhado no qual pessoas e grupos conquistam a superação e a libertação de todas as formas de opressão, exploração, discriminação e violência ainda vigentes na sociedade e que produzem a desumanização e a determinação social do adoecimento”.

          Compromisso com a construção do projeto democrático e popular “é a reafirmação do compromisso com a construção de uma sociedade justa, solidária, democrática, igualitária, soberana e culturalmente diversa que somente será construída por meio da contribuição das lutas sociais e da garantia do direito universal à saúde no Brasil, tendo como protagonistas os sujeitos populares, seus grupos e movimentos, que historicamente foram silenciados e marginalizados”.

          Assim, numa emergência composta de impulsos de exceção, o Jurídico é chamado a se constituir como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso no País e à banalização da vida pela ação de governança absolutamente incompetente para agir no enfrentamento à pandemia.

          Mas a resposta cabal, contra essa incompetência delinquente (consta que o Tribunal Internacional Penal começa a examinar a denúncia de conduta genocida na omissão em face da saúde dos povos indígenas no contexto da pandemia), virá mesmo do social organizado. Aqui neste espaço da Coluna Lido para Você fiz referências a algumas dessas ações da sociedade organizada e também de edilidades inscritas em compromisso com a cidadania.  Três cidades em São Paulo acabam de receber prêmio de Cidade Destaque no Enfrentamento ao Covid19. Entre elas Araraquara, pela capacidade de testagem e de baixa letalidade e pela enorme contribuição municipal especialmente dos profissionais de saúde para fazer frente à crise sanitária instalada e crescente por falta de uma coordenação nacional.

          Também começa a Campanha #O Brasil Precisa do SUS, em defesa desse programa formidável atualmente sob ameaça em face da sanha neoliberal privatizante e da atitude anti-povo inscrita nas políticas sociais federais. A força acumulada pelo movimento sanitarista brasileiro que logrou imprimir na Constituição de 1988, o conceito de saúde como direito de todos e dever do Estado, bem público, fora do comércio, se mobiliza junto com intelectuais, artistas para a defesa de sua institucionalidade democrático-participativa (https://www.viomundo.com.br/blogdasaude/notaveis-da-saude-engenharia-advocacia-educacao-e-artes-convidam-hoje-as-14h-lancamento-da-campanha-pelo-sus-videos.html?fbclid=IwAR29X52MHvkPH0MYk_g8GZZlEnpVz0g79L1O1XdMP3mEEMhFWiZpSk-sfRU).

          Se inscreve nessa mobilização a obra Direito Sanitário. Coletânea em Homenagem à Profa. Dra. Maria Célia Delduque (Brasília: Matrioska Editora, 2020). Organizada por Sandra Mara Campos Alves e Amanda N. Lopes Espiñeira Lemos, reunindo um notável arco dos melhores intérpretes do tema, o livro é uma homenagem a uma das organizadoras da obra tema deste Lido para Você, mas é, antes de tudo, conforme diz Sandra na dedicatória manuscrita no exemplar que me ofertou, o resutado de um trabalho “sempre juntos na defesa do direito à saúde”.

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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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