sábado, 5 de setembro de 2020

 

Movimento Social Quilombola e o Direito Achado na Rua

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

       

 

EMMANOEL ANTAS FILHO. MOVIMENTO SOCIAL QUILOMBOLA E O DIREITO ACHADO NA RUA: UMA ANÁLISE DA ORGANIZAÇÃO E LUTAS DO QUILOMBO AROEIRA EM PEDRO AVELINO-RN. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Serviço Social e Direitos Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Maria Ivonete Soares Coelho; Coorientador: Prof. Dr. Lauro Gurgel de Brito, Mossoró, 2020, 142 p.

 

         Dupla satisfação me moveu participar da banca examinadora da Dissertação de Mestrado de Emmanoel Antas Filho, objeto deste Lido para Você. De um lado, ainda que virtualmente, em razão do distanciamento social a que obriga a pandemia do Coronavírus, poder voltar a Mossoró, agora na Universidade Estadual, depois de um ciclo rico em interlocução, durante o programa interinstitucional de Doutorado que a minha universidade, a UnB, entreteve com a UFERSA – a Universidade Federal Rural do Semiárido, para qualificar uma turma de seus professores do curso de Direito.

        De outro lado, até como desdobramento daquela experiência que a rigor, ainda tem curso pois, em seguida às defesas de teses que o programa ensejou com total aproveitamento, há continuidade do diálogo que então se abriu, bastando ver a sua projeção nos valiosos trabalhos que hoje circulam nos catálogos editoriais. Agora em agosto mesmo foi publicado Neoliberalização da Justiça no Brasil: Modo Governamental de Subjetivação, Dispositivo Jurisdicional de Exceção e a Constituição como um Custo, de Thiago Arruda Queiroz Lima, pela Editora Lumen Juris. Contribui para a obra com um prefácio e dela fiz uma recensão na minha Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/neoliberalizacao-da-justica-no-brasil/).  

        Também, do professor Olavo Hamilton Ayres Freire de Andrade, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), membro da Banca Examinadora, que participou do programa com tese publicada em 2016 como livro, já referência, Princípio da Proporcionalidade e Guerra Contra as Drogas, pela OWL, já em terceira edição, com edição em inglês pela E-Book Kindle, Proportionality and The War On Drugs: Why banning drugs is unconstitutional.

        Incluo nesse rol altamente representativo o Professor Lauro Gurgel de Brito, co-orientador da Dissertação, docente da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), que cumpriu com brilho os requisitos do programa doutoral UnB/UFERSA, e que participa como coautor, no volume que co-organizei para a Série O Direito Achado na Rua, vol. 9: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico. Na obra, conferir em (https://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/), tem relevo a importante contribuição do professor Gurgel de Brito – Além do Protesto: Movimento Pau de Arara Reivindica a Cidade, um tema desdobrado de sua tese, ela própria, necessariamente, constante da bibliografia da Dissertação de Emmanoel Antas Filho.

        Exalta essa dupla satisfação o valioso e enriquecedor debate proporcionado pelas colegas Mirla Cisne Álvaro Maria Ivonete Soares Coelho, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), respectivamente, examinadora e Orientadora da Dissertação.

        Constato com uma nota de aprovação o cuidado que o Autor demonstra em fundamentar a sua Dissertação com dados relevantes de estudos locais e regionais. Seu co-orientador sabe, ao tempo em que acompanhei o projeto interinstitucional UnB/UFERSA, de doutoramento em Direito, o quanto valorizo e recomendo esse cuidado. Na ocasião, desenvolvendo o meu curso no projeto, fiz incidir na bibliografia autores potiguares, não só porque com isso carrego um tanto de ufanismo, mas porque há na bibliografia norte-riograndense de Direito, contribuições notáveis, entre tantos, Amaro Cavalcanti, Miguel Maria de Serpa Lopes, Miguel Seabra Fagundes e, para mim, em registro duplo, de ufanismo e reconhecimento, meu próprio e querido avô, Floriano Cavalcanti de Albuquerque, sobre o qual e para distingui-lo, escrevi um ensaio que fiz circular no Curso (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Depoimento. In ALBUQUERQUE, Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de. Desembargador Floriano Cavalcanti de Albuquerque e sua Brilhante Trajetória de Vida. Natal: Infinitaimagem, 1a. Edição, 2013). Em aditamento a esse depoimento, remeto à minha Coluna Lido para Você, no Jornal Estado de Direito, conforme https://estadodedireito.com.br/desembargador-floriano-cavalcanti-de-albuquerque-e-sua-brilhante-trajetoria-de-vida/ . Além disso, anoto, entre as opções do Autor, o para mim insuperável Luís da Câmara Cascudo.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

            Na dissertação, tal como mostra a bibliografia, toda uma forte documentação e estudos temáticos de excelente interpretação e boa circulação sobre o tema do escravismo colonial, do desenvolvimento local, regional e do Rio Grande do Norte, sobre protagonismo de movimentos sociais e sobre histórias e modos de vida das comunidades remanescentes de Quilombos, dão a dimensão de pertinência que o tema requer, exibindo um empírico que interpela realisticamente, as abordagens teóricas já disponíveis sobre o tema e que dão sustentação ao empenho explicativo que se desenvolve na Dissertação.

            Ponho em relevo entre esses estudos, sugerindo posterior incorporação ao seu próprio texto, a excelente Dissertação defendida na UnB, em 2019, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, “Entre a Ocupação, a Certificação e a Titularidade da Terra: a Luta pelo Direito à Terra da Comunidade Quilombola de Macambira – RN” de autoria de Áurea Bezerra de Medeiros.    

        Nesse trabalho, sobre o qual também escrevi uma Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/entre-a-ocupacao-a-certificacao-e-a-titularidade-da-terra-a-luta-pelo-direito-a-terra-da-comunidade-quilombola-de-macambira-rn/), Áurea oferece um sumário descritivo do campo que pretende abranger, abrindo com uma introdução histórica, na qual recupera o percurso que vai da escravidão à formação dos quilombos, para abrigar o sentido de reconhecimento dos remanescentes dessas comunidades, a partir de julgamento do Supremo Tribunal Federal, no marco da Constituição de 1988 e, tal como está no artigo 68 da Disposições Transitórias, a designação de direitos das comunidades quilombolas. Sob esse ângulo, ela analisa a decisão do STF sobre a constitucionalidade do Artigo 68 da ADCT e do Decreto 4.887, tal como se deu no julgamento da Adin 3239.

        Em seguida a autora traça “a Longa e Tortuosa Trajetória Sofrida Pela Comunidade Quilombola de Macambira – Detalhamento da Tensão entre a Justiça Estadual, a Federal e o processo Administrativo no INCRA”. Assim ela descreve, com detalhes o Processo na Justiça Estadual, a luta pela terra iniciada em 1997; a Apelação TJRN e Ação de Execução Provisória na Justiça Estadual do RN; o enquadramento da questão na Justiça Federal – Processo nº 0800076-72.2013.4.05.8402; o modo de designação da Comunidade Quilombola Macambira no Processo Administrativo no INCRA; finalizando com uma análise documental crítica desses processos judiciais e administrativo.

        No que é uma singularidade do trabalho, a Autora, indica já no sumário, a sua importante contribuição, para o conhecimento dessa realidade, pois penso que é o único estudo que a focaliza e oferece um retrato da COMUNIDADE QUILOMBOLA DE MACAMBIRA E SUA HISTÓRIA: o seu reconhecimento como comunidade quilombola; esse reconhecimento pela Justiça Federal, no tocante ao seu direito as terras; e, outra singularidade do estudo, a demonstração do conflito presente nesse enquadramento no que designa como “A Comunidade Quilombola de Macambira, as torres de energia eólica um acordo extrajudicial lesivo”.

        O professor Menelick de Carvalho Netto, que também participou no Programa Interinstitucional em Mossoró e que orientou a dissertação de Áurea Medeiros, valoriza conforme eu também o faço, a importância dos estudos de caso, valiosos na configuração das singularidades, assim como em Barro Vermelho e Contente, no Piauí, na pesquisa Rodrigo Portela Gomes cujo trabalho acaba de ser indicado, juntamente com mais outros três, ao Prêmio UnB de Dissertações e Teses 2018/2019, pela Faculdade de Direito da UnB.

        Editado pela Lumen Juris, com igual caraterística – estudo de caso – menciono o livro de Cássius Dunck Dalosto (Políticas Públicas e os Direitos Quilombolas no Brasil. O exemplo Kalunga, Rio de Janeiro, 2016, 243 p.). Pesquisa originada do Programa de Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás, o livro insere no contexto da “história dos quilombos no Brasil”, a experiência de resistência dos Kalungas (Estado de Goiás) e seu processo de luta. É desse processo de luta que trata o livro, luta de resistência “contra a violência perpetrada sobre as comunidades negras no Brasil na busca por reconhecimento e por acesso aos bens e serviços oferecidos pelo Estado… para a conquista por direitos e sua efetivação na realidade social por meio de políticas públicas…”.

        Ainda sobre o estudo de Áurea, sobre o que possa interessar à pesquisa de Emmanoel Antas Filho, está o apreender em ambos, uma realidade em processo, pondo em evidência o conjunto de ameaças que pairam sobre o direito reivindicado. Para Áurea, “no caso da Comunidade (de Macambira), a garantia jurídica de seus direitos esteve todo o tempo sendo tolhida, conseguir a efetivação deste direito tornou-se uma luta desleal, observa-se o período que o processo ficou parado na primeira instância sem ter prosseguimento, e o prazo que não foi concedido a Comunidade para apresentar manifestação sobre o terceiro interessado que iria fazer parte do processo”.

        A dissertação, conforme dispõe o seu resumo, aqui reproduzido para melhor apreensão dos leitores da Coluna Lido para Você “tem o objetivo de analisar o processo de lutas, de reconhecimento e conquistas dos direitos sociais do quilombo da Aroeira, localizado no Município Pedro Avelino/RN, à luz da proposta teórica do Direito Achado na Rua. Nesse sentido, foram investigadas a formação e a origem da comunidade, identificados os interesses e os projetos em disputa pelo grupo, tudo com uma atenção especial em relação às formas de organização, lutas e a configuração como sujeito coletivo de direito e expressão do Direito Achado na Rua. O processo metodológico da pesquisa constou de revisão de literatura sobre as temáticas escravismo, quilombos, movimentos sociais, Direito Achado na Rua e Sujeito Coletivo de Direitos. Ocorreu pesquisa documental junto ao INCRA, à Prefeitura Municipal de Pedro Avelino, à Fundação Palmares e à Associação São Francisco do Quilombo Aroeira, bem como em sites e jornais disponibilizados em plataformas digitais quando as informações tratavam da temática ou dos atos do quilombo. Os estudos relacionados à escravização, quilombos, movimentos sociais e movimentos social quilombola fundamentaram-se em autores clássicos e contemporâneos e a análise foi feita dentro de um contexto histórico e a sua evolução traz diferentes posicionamentos, que contribuíram para apreciação e construção dos resultados. A pesquisa apresenta o termo Movimento Social Quilombola como Sujeito Coletivo de Direito e expressão do conceito de Movimentos Sociais e sua articulação com o Direito Achado na Rua, como materialização das conquistas e lutas do Quilombo Aroeira por Direitos Sociais. Esse se constitui como propósito teórico da dissertação. Para essa articulação, foi abordado o Direito dentro de um processo histórico que emerge da dialética social, não como ordem ou lei, mas como legítima expressão da liberdade, conforme propõe Roberto Lyra Filho, emanando do espaço público e decorrendo dos movimentos sociais quando lutam por direitos sociais enquanto sujeitos coletivos de direitos, tendo como referência empírica o quilombo da Aroeira e seu processo de reconhecimento, entre os anos de 2006 a 2020. Os achados da pesquisa apontam para a confirmação de que o processo de reconhecimento e conquistas dos direitos sociais da comunidade quilombola da Aroeira em Pedro Avelino-RN decorre da sua luta e organização enquanto sujeito coletivo de direitos do movimento social quilombola, constituindo-se, portanto, expressão do Direito Achado na Rua”.

        Vale em sequência a advertência do Autor de que o “viso do trabalho não é na linha de abordagem do escravismo como folclore  ou romantização escorada nos princípios da revolução francesa, mas como símbolo de resistência e de lutas”.

        Isso logo se verá a partir do enquadramento interpelante da leitura crítica que o Autor oferece, retirando do tema qualquer domesticação da crueza da luta por reconhecimento e direitos e do sentido dramático da reivindicação não conformista, mas que que é rebelde e contesta.

        A advertência não é, pois, graciosa, se entre nós, no Rio Grande do Norte principalmente, com os registros folclóricos de narrativas a que nos acostumamos, um pouco românticas, como em Cascudo, ou Gilberto Freyre,  edulcoradas num imaginário que oculta em comportamentos bondosos a dureza de uma estrutura que ultrapassa as biografias e mantêm intactas as condições de espoliação e de opressão.

        A narrativa de Emmanoel, escovando a realidade a contrapelo, fez evocar em minhas memórias juvenis, as crônicas que tantas vezes serviram de cortina para fazer penumbra a uma sociedade patrimonialista, em arranjo decolonial, com os contornos de um legado escravocrata, mesmo entre “bons” senhores de escravos.

        Lembrei-me das estórias do Doutor Loló, o avô da minha querida avó. Presidente da Província no crepúsculo do século XIX, primeiro bacharel (Faculdade de Direito de Olinda/Recife) do hoje Estado do Rio Grande do Norte, nascido em São Gonçalo e Senhor de Engenho em Ceará Mirim. Há um registro genealógico feito por meu tio Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de Albuquerque, já referido, aqui em Moura e Raposo da Câmara no Rio Grande do Norte. Ascendência & Descendência: Colônia, Império, Regência e República (Natal: Infinitaimagem, 2012). O registro é singelo: Jerônimo Cabral Rapôso da Câmara, “conhecido por Dr. Loló faleceu na cidade de São Gonçalo (RN), a 24.05.1900 e, antes de fechar os olhos puxou, como de costume, a barba branca para um lado, olhou para o seu filho Gabriel e falou: ‘Meu filho – Hoje é um dia histórico e bom para se morrer, aniversário da Batalha de Tuiuti!’” (p. 109-110).

        O registro não trouxe outras reminiscências que ouvíamos à mesa patriarcal sobre o nosso ancestral Doutor Loló: Homem de alto poder na Província de grande desapego e generosidade, se alguém em risco ou sob ameaça, tocasse um espaço ou uma superfície qualquer de sua propriedade, bastava dizer ‘valei-me Doutor Loló!!!’, e já ninguém ousava constranger ou ameaçar’” o infeliz.

        E, a estória mais inspiradora. Proprietário de Engenho, senhor de escravos, dava mau exemplo com a sua bondade, pois seus “negros” eram “maluvidos”. A Vila queria uma atitude exemplar, Doutor Loló precisava corrigir o comportamento. Ele aquiesceu, mandou reunir todos na praça na hora da ave-maria e determinou ao feitor colocar dois pelourinhos no coreto. No primeiro, um boneco de pano, em tamanho natural, no segundo o “cancão de fogo”, o escravo mais “celebrento”. E mandou dar 100 chibatadas…no boneco. E a cada golpe, dizia: ‘tá vendo negro, já pensou se isso fosse em você?!”. Claro, não sabíamos então, que o máximo de consciência possível, inscrita num temperamento bondoso não bastava para superar, através da penumbra de rara misericórdia,  a iniquidade da estrutura escravocrata, que mantinha a alienação do humano própria do modo de produção.

        O estudo de Emmanoel Antas Filho contribui para o fortalecimento de consciência, de defesa e de apoio à causa quilombola em nosso País. Ele corrobora para realizar aqueles objetivos que Vilma Francisco procurou estabelecer ao preparar um manual de Direitos Humanos para Quilombolas (Coleção Caminho das Pedras, vol. 1. Rio de Janeiro,  2006 – https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-para-quilombolas/. O Manual, uma iniciativa do PROAC – Projeto de Apoio a Comunidades de Quilombos do Brasil, vinculado ao Instituto Brasileiro de Ação Popular – IbrAP, é fruto de cuidadosa pesquisa e de redação original e sensível e tem a preocupação de situar os direitos fundamentais e os direitos humanos ao alcance dos quilombolas, por meio de uma linguagem que facilita o seu entendimento e as suas condições de exercício.

        Em sua tessitura editorial, a obra, em razão de sua motivação e de seu alcance, não é uma tarefa fácil, mas é uma tarefa urgente. Numa sociedade em que o racismo orienta fortemente as disposições ideológicas desde o pós-abolição (SANTOS, Sales Augusto dos. A Lei nº 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro, in Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade/MEC, Brasília, 2005), assumir atitude, defesa ou firmar a consciência da subjetividade aspirante a direitos iguais e plenos pelos excluídos da cidadania, requer sentido de imediatidade e comprometimento histórico.

        Trata-se, por isso também, quando se cogita de um Manual de Direitos Humanos Quilombolas, de procurar abrir a doutrina jurídica nacional, para a relevância desses direitos, uma vez que “o povo negro teve o seu direito mantido separado da ‘lei oficial’, elaborada e mantida pelas oligarquias econômicas que estavam no poder” (SAULE JR, Nelson, org., A situação dos direitos humanos das comunidades negras e tradicionais de Alcântara, MA – Brasil. Relatório da Missão da Relatoria Nacional do Direito à Moradia Adequada e à Terra Urbana. São Paulo, Instituto Polis, 2003).

        O Manual, vou continuar chamando-o assim, carrega esta pretensão auspiciosa. Além de oferecer aos próprios sujeitos membros das Comunidades Quilombolas o conhecimento que emancipa, colocando o Direito e os meios para os exercer ao alcance de sua capacidade de ação, quer ainda “despertar a consciência da sociedade em geral no sentido de perceber a necessidade que se impõe para o respeito às comunidades quilombolas. Não apenas pela importância simbólica de sua existência concreta, mas pelo reconhecimento dos seus direitos já garantidos e legitimados na Constituição e nos tratados internacionais”.

        Para um País que se construiu sobre bases escravistas, lembra Ivair Augusto Alves dos Santos (Ações afirmativas: farol de expectativas, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al., org. Educando para os Direitos Humanos. Pautas Pedagógicas para a cidadania na Universidade, Porto Alegre: Síntese, 2004), “mais de um século pós Abolição, não foi capaz de elaborar um programa de promoção de igualdade ou um conjunto de políticas sociais que contemplasse a questão das desigualdades raciais”.

        O Manual aponta para esse esforço de construir igualdade. Na medida em que abre o horizonte dos direitos, opera com a expectativa da enorme disposição dos quilombos contemporâneos para se fazerem sujeitos de sua própria inserção. Citando Glória Moura, fonte na qual invariavelmente busco alimento para qualificar minhas reflexões nesse tema, com um pequeno ajustamento de contexto (O Direito à Diferença, in  MUNANGA, Kabengele, org., Superando o racismo na escola. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Brasília, 2005), cuida-se de imagina-los “como fator formador e recriador de identidade – para, através dos direitos fazê-los – veículo de transmissão e internalização de valores que possibilitam a afirmação e a expressão da diferença/alteridade e, ao mesmo tempo, a negociação dos termos de inserção das comunidades rurais negras na sociedade como um todo”. 

        Seu trabalho precede a vertente acadêmica que se debruça sobre o tema e que começa a oferecer reflexões valiosas para a afirmação dos direitos humanos das Comunidades Quilombolas. É o caso da dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UnB), também sob minha orientação, de Emília Joana Viana de Oliveira: Mulheres quilombolas na luta pelo direito à água: uma reflexão a partir do conflito do Quilombo Rio dos Macacos – BA.

        No centro de sua pesquisa se vai constatar a água como elemento central para a produção e reprodução da vida humana, e, também para a manutenção do modo de vida da Comunidade Quilombola de Rio dos Macacos-BA, pela identidade quilombola pesqueira e agricultora no espaço rural. A dissertação apresenta a água como um componente central na disputa pelo território no conflito com a Marinha do Brasil, que executa uma gestão territorial de controle, proibição, violências e restrição do acesso à água, com diversas violações de Direitos Humanos desde a chegada da instituição no território onde já vivia a comunidade e se iniciaram as atividades que envolvem o complexo da Base Naval de Aratu-BA na década de 1950.

        A partir do conflito, vê-se que a práxis de mulheres quilombolas para a manutenção do modo de vida quilombola, que é atravessada pelo racismo e pelo sexismo, tem o papel anunciar que o território também é água, na medida em que lutam para que o processo de regularização fundiária quilombola no contexto de conflito com o Estado, por meio de uma instituição militar, garanta também o acesso aos rios, fontes sagradas e a possibilidade de uso da água de todas as formas necessárias para a garantia do modo de vida quilombola.

A disputa pela compreensão da água como parte do território e como um Direito Fundamental, surge da percepção de mulheres negras nesse conflito e visa a efetivação deste diante do Estado e se aplica a esse, mas também a tantos outros conflitos fundiários no Brasil, marcados pelo racismo desde a colonização, de modo que o olhar para a experiência quilombola, no passado e no presente, evidencia um dos modos de disputa pelo acesso à terra da população negra brasileira, como continuidade da Diáspora Africana. Ao mesmo tempo, amplia a percepção do acesso a água como dinâmica essencial para a manutenção dos modos de vida de acordo com as identidades e as territorialidades.

        As comunidades quilombolas surgem enquanto categoria que abre o reconhecimento jurídico a partir da previsão normativa do art. 68 do ADCT da CF/88, inaugurando a dogmática constitucional sobre os direitos dos povos quilombolas, considerando estes reunidos em territórios coletivos, com a regularização fundiária prevista no Decreto 4887/03, que prevê os procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação, recentemente declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a validade do Decreto 4.887/2003, garantindo, com isso, a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas).

        A Dissertação que comento parte dessa ordem de posicionamento. Para o Autor o trabalho “tem como tema O Movimento Social Quilombola e o Direito Achado na Rua: uma análise da organização e lutas do Quilombo da Aroeira no Município de Pedro Avelino-RN, buscando respostas para o problema que deu impulso inicial à pesquisa, que é saber se o quilombo da Aroeira em Pedro Avelino-RN é expressão do Direito Achado na Rua. Nessa linha, tem-se como objetivo geral analisar se o quilombo da Aroeira em Pedro Avelino-RN é expressão do Direito Achado na Rua, ponto este que terá cada elemento dissecado nos capítulos do trabalho, ficando à cargo da última parte, fazer a articulação entre o que se apreendeu da pesquisa documental, os referenciais teóricos abordados e o quilombo objeto do estudo”.

        Insere-se na motivação do Autor “pesquisar sobre O Direito Achado na Rua, trabalhando-o não como ordem, mas como “legítima expressão da liberdade” (LYRA FILHO, 1982), analisando seus elementos e a relação com as lutas dos movimentos sociais, valendo-se de posicionamentos doutrinários que tratam das formas de efetivas conquistas de Direitos Humanos, com significativa importância dada às contribuições dos Movimentos Sociais e do Direito Achado na Rua como um instrumento de lutas e vitórias”.

        Quer o Autor compreender o do sujeito coletivo de direito, categoria fundante do campo teórico-epistemológico de O Direito Achado na Rua e analisar a sua formação e o seu papel dentro do contexto histórico, de constituição da comunidade quilombola, espaço no qual se forma a subjetividade ativa e instituinte de direitos.

        O processo de titulação da terra correspondente ao território do quilombo, que tramita junto ao INCRA, possui cadastro de todas as famílias até 2013, o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), composto pelo estudo antropológico com entrevistas, fotografias, dados, árvore genealógica, relatos e mapas. Começou a tramitar no ano de 2006 e até julho de 2020 encontrava-se com o relatório concluído e pendente de andamento.

        Com esse aporte empírico possível quer o Autor “fazer a subsunção das categorias descritas na parte teórica do trabalho para explicar como a comunidade se enquadra e se identifica como expressão do Direito Achado na Rua, tomando por base suas ações e conquistas no espaço público, enquanto sujeito coletivo e movimento social quilombola” e, nesse passo, “trabalhado o conceito de Direito Achado na Rua, passando pela sua concepção, objetivos e relevância dentro do contexto social e político,  fazendo a relação com o movimento social,  abordando o Movimento Social Quilombola, identificando-o e analisando-o como Sujeito Coletivo de Direitos” .

        Tomando o território do quilombo  não só como um espaço físico, “mas como lugar onde se tem depositado suas tradições, seus costumes, onde se concentram e se conservam valores étnicos, a linha de investigação percebe o quilombo, com uma ideia de nucleamento, de associação solidária em relação a uma experiência intra e intergrupos, vendo a territorialidade como uma fronteira construída a partir de um modelo específico de segregação, mas que propicia condições de permanência de continuidade das referências simbólicas importantes à consolidação do imaginário coletivo”, o Autor pretende em suma, fazer a articulação das categorias designadas no curso da pesquisa para “demonstrar que o quilombo se configura como expressão do Direito Achado na Rua, por ser imanente de práticas libertadoras do sujeito coletivo na luta por direitos que emergem do espaço público, como legítima expressão da liberdade”.

        Terá alcançado seu intento?

        Ora, o Autor opera com a convicção colhida em sua pesquisa, de que “os Movimentos Sociais não precisam pedir licença para lutar, tampouco para pautar as suas reivindicações políticas na lei ou na autorização dos poderes constituídos. Por essas razões, o direito que dessa organização se origina é puramente humano, democrático, na verdadeira acepção da palavra”.   E que a “sua luta que não cessa, mas, é através do Direito Achado na Rua, com sua afirmação nas ações dos Movimentos Sociais, que respira a liberdade e a participação política, como meio de criação de verdadeiros direitos humanos e de uma democracia substantiva”.

        Daí a relevância das categorias de O Direito Achado na Rua, que o Autor utiliza com pertinência e entendimento preciso, conforme se constata no capítulo 2 da Dissertação, como um instrumento para dar sustentação a essas relações com os Movimentos Sociais e suas lutas políticas, no alcance dos direitos humanos. Com efeito, para o Autor, “o referencial teórico tratado no presente fez constatar os movimentos sociais e o Direito Achado na Rua como instrumentos de luta, molas propulsoras para aquisição de direitos humanos, cidadania e democracia”.

            A análise conceitual e histórica “mostrou que o quilombo deixou de ser somente um aspecto negativo, ilícito e até criminoso, para, diante de uma ressemantização, ser analisado por outros prismas, levando em conta aspectos sociológicos e políticos que passaram a fundamentar as razões da reunião dos negros descendentes de escravos e essa territorialidade que os ligam à terra vindicada”. Assim, “foi trazido um conceito de quilombo que envolve categorias como união, identidade étnica, luta, preservação de valores, sujeito coletivo de direito, resistência e territorialidade. Com essas categorias conceituais veio à baila uma nova percepção de quilombo, com nova interlocução com a sociedade e com o aparato estatal, que passa a se afigurar como o que se denomina de movimento social quilombola”.

        Nesta linha, foi possível abordar, através das fundamentações teóricas, o Movimento Quilombola como um Novo Movimento Social, que transcende as discussões de classe, embora não as exclua. A partir de elementos conceituais coligidos em sua revisão bibliográfica, o Autor acaba por ressignificar o conceito, concluindo por designar quilombos, ao menos para sulear sua abordagem na Dissertação, como “movimentos por direitos e por reconhecimento dos quilombos  como identidade étnica, resistência, luta, preservação de valores; buscando que seja a eles assegurado o território onde encontram-se fincadas suas raízes, bem como as conquistas decorrentes das lutas do povo negro e da população quilombola como sujeito coletivo” (p. 58).

        A organização dessas lutas e a identidade entre os sujeitos que se unem em torno de valores históricos e étnicos, na busca por direitos, os fazem se identificar com projetos convergentes para participar de ações coletivas, a fim de solucionar suas demandas.

        O Movimento Social Quilombola está pautado num referencial coletivo, que baliza suas ações em critérios subjetivos, identitários e comunitários de lutas, vendo o quilombo como um fator de mobilização política, que faz com que esses sujeitos gerem uma identidade entre si. 

        O Movimento Social Quilombola ainda apresenta tímida participação no cenário nacional nesse campo de lutas, mas cada dia vem se afigurando vetor de organização, ciente que o retrocesso não pode ser uma opção palatável, o que levará a implementação de estudos mais aprofundados.

        Ainda segundo o Autor, “os documentos consultados dão conta que o reconhecimento como quilombo e a demarcação das terras em um processo moroso, assoberbado de exigências e investigações jurídicas, sociais e antropológicas é tratado como mais um tópico destes capítulos da resistência e lutas políticas do povo quilombola de Aroeira. Observou-se que as normas que disciplinam o processo de reconhecimento, demarcatório e de concessão do título da terra aos quilombos são objetos de lutas e decorrem, também, das marcas deixadas por esses embates e manifestações. Todavia, ficou claro que, não só no Rio Grande do Norte, mas em todo o Brasil, esse processo de titulação e elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Demarcação (RTDI) são morosos e penosos, sendo o seu andamento um desafio dos quilombos e dos Movimentos Socais Quilombolas, em razão da destinação de poucos recursos financeiros, bem como a secundarização  pelo INCRA à política quilombola, a ausência de agenda com demandas comuns dos quilombos, além da fragmentação das organizações associativas das comunidades”.

        O estudo constata que “no quilombo Aroeira que as conquistas são contínuas, dentre as quais o acesso à políticas públicas e infraestrutura, como a sede própria para a associação e um açude para abastecimento de água para a comunidade, que decorreu da compensação pela instalação de linhas de energia eólica construídas no território do quilombo, melhorando a vida da localidade. O Aroeira é um quilombo de pessoas sofridas, tradicionalmente abandonadas pelo poder estatal. Resistir mais de um século nessa situação mostra a garra que possuem os quilombolas lá fincados. Há pouco mais de uma década passos significativos passaram a ser dados como única saída de quem grita por direitos e percebeu que, para galgar espaços, é preciso uma articulação diferenciada através da organização enquanto, como a Associação São Francisco. Registre-se que não se pode esperar simplesmente da lei a resposta para essas necessidades, bastando lembrar que a escravidão tinha todo amparo do Estado e da legislação da época, como se evidenciou dos referenciais teóricos utilizados.  Todavia, perceba-se que para o êxito dessas reivindicações, especialmente quando se luta por direitos humanos, democracia e cidadania, é fundamental que se dê de forma não segmentada, unindo forças dos movimentos sociais contra toda a estrutura de dominação, vindicando ter em mãos o efetivo poder político”.

        E mais, diz o Autor: “No quilombo Aroeira, em Pedro Avelino-RN, a luta por direitos sociais, dentre os quais os títulos da terra, adicionados especialmente a luta por água potável, moradia e saneamento básico, está em plena efervescência e sua atuação como sujeito coletivo de direitos tem fundamental papel no processo de reconhecimento e conquistas desses direitos.  Nessa perspectiva, é importante ter em mente, e isso já se apresenta claro para os quilombo da Aroeira, que a conquista da demarcação do território é apenas um passo, sendo fundamental que se implementem as políticas subsequentes de reforma agrária e infraestrutura que concebam a qualidade de vida como consequência dos direitos conferidos”.

        Para além de meus próprios escritos, os mais importantes e mais pertinentes inscritos no referencial teórico da Dissertação, consinto que depois da completa e bem posicionada formulação de Mauro Almeida Noleto (Subjetividade Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998 – https://estadodedireito.com.br/subjetividade-juridica-a-titularidade-de-direitos-em-perspectiva-emancipatoria/),  o abalizado e mais recente estudo sobre a aplicação da categoria sujeito coletivo de direito e as estratégias de enquadramento a partir do marco epistemológico estabelecido em O Direito Achado na Rua, foram bem configurados num texto ainda inédito – SUJEITO COLETIVO DE DIREITO E OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: A LUTA POR DIREITOS DE ACESSO À TERRA E TERRITÓRIO – de Clarissa Machado de Azevedo Vaz e Renata Carolina Corrêa Vieira, produzido para o Seminário Internacional O Direito Como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua e que vai integrar o volume 10, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade (no prelo).

        Nesse texto as Autoras revisitam o acervo teórico do tema para articular a questão dos Movimentos Sociais e novos sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direito e o Direito Achado na Rua e, em diálogo com meus conceitos, acertam que “depois de estabelecer as bases sociológicas e filosóficas do conceito, José Geraldo de Sousa Junior conclui, portanto, a fundamentação teórica necessária para a constituição da categoria jurídica “sujeito coletivo de direito”. Segundo o autor, “a análise da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, que se exprime no exercício da cidadania ativa, designa uma prática social que autoriza a estabelecer, em perspectiva jurídica, estas novas configurações, tais como a determinação de espaços sociais a partir dos quais se enunciam direitos novos, a constituição de novos processos sociais e de novos direitos e a afirmação teórica do sujeito coletivo de direito”.

        Para elas, assim como para Emmanoel, é neste ponto, que se enquadra a teoria epistemológica de O Direito Achado na Rua, expressão criada pelo professor Roberto Lyra Filho (1986). Ao reconhecer esse espaço de cidadania ativa como uma experiência emancipatória, Lyra Filho defende que o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão, “enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.  O direito, portanto, se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência), quanto produtos falsificados (isto é, a negação do direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto da consagração do direito”.

         Para as Autoras, é somente nesse sentido que pode se orientar o trabalho político e teórico de O Direito Achado na Rua em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito: 1. determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos; 2. definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e 3. enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direito e estabelecer novas categorias jurídicas, que superem a condição de espoliação e de opressão e estabeleça uma legítima organização social da liberdade.

        A pesquisa também evidenciou a questão identitária, étnico-racial de autodeclaração e orgulho da sua condição de negro quilombola. É essa questão identitária que a luta do quilombo como um sujeito coletivo ajuda a construir, como ocorre quando aqueles que não residem mais na Aroeira se afirmam quilombolas, em razão de terem a consciência que ali estão suas origens e que são parte daquela territorialidade por se sentirem melhor protegidos nesse processo contínuo e histórico de lutas.

        É possível afirmar, consoante os achados da pesquisa, que no quilombo Aroeira a organização e o fortalecimento das práticas de políticas associativas estão em franco desenvolvimento e consolidação, demonstrando-se pela análise da documentação com os referenciais teóricos, que são elas responsáveis, direta ou indiretamente, pelas conquistas que decorrem das lutas como sujeito coletivo.

        Nesse sentido – completa o Autor – “consideramos que os estudos realizados evidenciaram que a hipótese foi confirmada pelos elementos destacados, no sentido de que as experiências do Quilombo Aroeira em Pedro Avelino-RN se constituem expressão do Direito Achado na Rua. A importância do estudo empírico realizado é poder utilizar as vozes do quilombo Aroeira através dos documentos e outros estudos, analisando o lugar da fala dos seus sujeitos e, também, por possibilitar tratar do movimento quilombola como um movimento social responsável pelo surgimento do direito, onde nada havia sido escrito ou pesquisado com um olhar dedicado as suas lutas e ao Direito Achado na Rua, articulando, ainda, dois campos de conhecimento: o Serviço Social e o Direito”.

        As Autoras, assim também Emmanoel, procuraram estabelecer reflexões sobre a categoria jurídica do “sujeito coletivo de direito” e sua relação com os novos movimentos sociais, na busca por direitos, em especial direito à terra e território, e a sua concretização na criação de novos direitos, revelando, ao fim, a atualidade da categoria jurídica “sujeito coletivo de direito” após os seus trinta anos de concepção.

        Nessa observação, extraída do texto de Clarissa Machado e Renata Vieira, coloca-se uma necessária ordem de indagações ao Autor, na perspectiva da dupla confiança que a análise precisa carregar: política e epistemológica. Em tempos agônicos, de travessia entre mundos em transição, pelo esgarçamento dos modos de produção da existência e sua incapacidade de suprir dando equivalência as exigências de necessidade e de liberdade; de fracasso político para mediar as crises dessa travessia, nas tensões entre democracia e exceção; na disputa pelo futuro, nas condições pós-pandemia; o que significa fazer tese nesse contexto e que pode fazer o social organizado, a partir dos sujeitos coletivos de direito inscritos nos Movimentos Sociais?

        Se nos Movimentos Sociais as identidades são móveis, variam segundo a conjuntura, como diz o Autor, na travessia corrente pode-se falar em regresso ou em avanço? Os Movimentos Sociais e os Sujeitos neles inscritos, estão se desmantelando em derrotas ou se reorganizam para reorientar seus projetos e suas formas de luta?

        No Brasil, depois de 2016, com o afastamento de uma governança e seu projeto de sociedade, numa instrumentalização cada vez mais reconhecida do jurídico, há ainda espaço para o Direito, na sua dimensão de “dignidade jurídica da política”, para o reconhecimento dos projetos institucionais-constitucionais no desenho dos Movimentos Sociais, na modelagem emancipatória de O Direito Achado na Rua?

        Para Clarissa Machado e Renata Vieira, aliás, minhas orientandas, que pensam como eu penso, como está assentado em nossas discussões e em trabalhos co-autorais, apesar da  conjuntura política, social e econômica vivenciadas, com uma escalada de retrocesso de direitos e uma ameaça à integridade constitucional-democrática, o “campo prático-conceitual sustentado por José Geraldo de Sousa Junior, que vê nas formas de mobilização e organizações populares, especialmente quando organizadas em movimentos sociais, a emergência de atores e contradições sociais capazes de criar direitos nas suas dinâmicas de afirmação de necessidades não satisfeitas, ao relembrar historicamente das lutas e conquistas que os sujeitos coletivos de direitos construíram ao longo da história, principalmente no período de redemocratização do país, após analisar os avanços em suas conquistas, chega ao atual momento de crise,  no qual observa-se a reorganização desses sujeitos coletivos”.

        As pessoas”, e eu acrescento, assim como os seus movimentos, como diz John Steinbeck, Prêmio Nobel de Literatura (A Rua das Ilusões Perdidas, tradução brasileira do original norte-americano Cannery Row. Rio de Janeiro: BestBolso, 2019, ninguém pode prever como saem das crises: “É que existem duas reações possíveis ao ostracismo social: ou um homem emerge determinado a ser melhor, mais puro e generoso ou desanda para o mal, desafia o mundo e faz coisas ainda piores”.

        A segunda, afirma Steinbeck, “é a reação mais comum ao estigma social”, tão nitidamente identificada na conduta daqueles que deveriam encarnar a retidão de proto-homens, uma vez erigidos à condição de governança mas que indisfarçadamente regridem da posição de guias da comunidade.

        Na primeira, os sujeitos coletivos inscritos em movimentos sociais que se recompõem em face da crise. Que se reorganizam. Uma reorganização não porque estavam desorganizados, mas porque se reinventam nas formas de protestos, unificam pautas e sujeitos, demonstrando a clareza da consciência do que estão enfrentando, focados na resistência, mas construindo, para o futuro (com as reservas utópicas de emancipação), orientadas por um conhecimento que traduza as possibilidades plurais que provenham, diz Boaventura de Sousa Santos, das “práticas políticas que estão nas ruas, nas lutas e que contribuam decisivamente para a construção de um  mundo melhor” (Na Oficina do Sociólogo Artesão: aulas 2011-2016. Seleção, revisão e dição Maria Paula Menezes, Carolina Peixoto. São Paulo: Cortez, 2018), até consumar-se como “legítima organização social da liberdade” (LYRA FILHO).

        Por fim, vencidas as questões que proponho, entendo com o autor da Dissertação, ser possível sim afirmar que o Quilombo Aroeira é, uma expressão de realização daqueles fundamentos que configuram o estatuto político-epistemológico de O Direito Achado na Rua. Do mesmo modo que toda a Banca Examinadora que lhe concedeu a aprovação com louvor, com indicação de publicação, por ter trazido a relevância de um tema tão importante para a análise acadêmica e pelo ineditismo, no Programa de Pós-Graduação em que a Dissertação se desenvolveu, de uma abordagem apta para o interpretar, inscrita nas categorias do campo teórico de O Direito Achado na Rua. 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário