Carta ao Direito Achado na Rua.
Do céu de Brasília, 15 de dezembro de 2019.
Querido professor José Geraldo (Zé),
Finalmente, escrevo minha carta. Mas não a escrevo desde Lima, como o
senhor me pediu. Escrevo desta ponte, por você imaginada, e que agora trilho,
ida e volta e ida, entre Brasília e Lima, após o Seminário dos 30 anos de O
Direito achado na Rua. Aqui me permita um parêntese nestas linhas
introdutórias. Compreendo agora o que é esse momento de estar em suspensão
diante de um turbilhão de emoções, e aqui remeto a carta tão emocionante de Isis,
também escrita em transito há pouco tempo atrás. Esse momento de solidão, em
que já sozinhas nos deparamos com todos os sentimentos e sensações juntos a uma
só vez: a melancolia acompanhada já da nostalgia que trazem as partidas, e a
ansiedade confundida com a alegria que as chegadas trazem. Entre a despedida e
o encontro, escrevo esta carta.
Hoje, por coincidência (ou não), o facebook me trouxe uma recordação. Se
tem uma coisa que gosto nesta ferramenta moderna de comunicação, são essas
lembranças que aparecem quando a gente menos espera. Curiosamente, recebi uma
notificação de que há exatos dois anos, recebia de presente o seu livro “O
Direito como Liberdade”, nele estava escrito uma dedicatória, mais ou menos
assim: “Querida Renata (Rê), na
expectativa de que os termos aqui propostos possam gerar projetos de vida
comuns..”.
Não poderia imaginar, há dois anos atrás, que estaria hoje voltando
depois da realização desse lindo encontro em Brasília. Tampouco, poderia
imaginar que estaria voltando de Brasília para Lima. O projeto comum, traçado
em tímidas linhas, parece que encontrou um solo fértil, generosamente cultivado
ao longo desses anos. Deste cultivo, junto com tantas outras sementes
germinadas, nasceu este grande evento celebratório, que foi nosso Seminário
Internacional dos 30 anos do Direito como Liberdade. Um evento que reuniu os
mais jovens estudantes da graduação de vários rincões do Brasil, Turmas do
PRONERA, Assessorias Jurídicas Populares, lideranças de movimentos sociais,
pesquisadores e pesquisadoras de todas as partes do Brasil, o mais alto
intelecto de pensadores e pensadoras da teoria crítica do direito e do
pluralismo jurídico. Foram mais de 400 trabalhos recebidos, 27 oficinas, mais
de 500 pessoas frequentando os jardins, as salas de aula, o auditório, os
espaços, entre sorrisos, produção intelectual, abraços e experiências
compartilhadas. E eu, estava lá.
Percorrendo a história de O Direito Achado na Rua, e sua larga e fecunda
trajetória, me parece pouco o tempo em que nossos caminhos se cruzaram. Porém,
tenho não apenas a sensação, como a certeza de que sempre caminhamos juntos.
Esse direito que “é, sendo” proposto como libertação dos oprimidos e oprimidas,
esse direito como “legítima organização social da liberdade”, sempre esteve em
mim. Sempre fui Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR) sem saber. Lyra Filho,
em seu artigo “Pesquisa em QUE Direito” (1984), gentilmente nos fala “se você
produz, intelectualmente, coisas harmonizáveis com os nossos princípios, já
entrou, sem sabe-lo”. E, assim, ouso assumir meu papel nessa escola desde
quando meus motivos para ingressar na Faculdade de Direito sempre foram o de
lutar pelos oprimidos e oprimidas de minha região, no caso, os povos das
florestas.
Me atrevo a dizer, hoje, com muita consciência, de que o percurso de minha
história atual se confunde com o percurso de O Direito Achado na Rua em minha
vida. (Re)construiu não apenas a minha mirada profissional, mas ofereceu as
ferramentas de reconstrução de minha subjetividade, ressignificando a minha
própria existência. Aqui começo a compartilhar um pouco dessa trajetória.
Saindo de uma crise de depressão grave, após um divórcio traumático,
decidi voltar a Academia depois de uma longa viagem pela Amazônia Brasileira,
seguida de uma incursão pelas Guianas e Suriname. A reconexão com a minha
terra, me remeteu a um desejo sempre existente em mim: produzir
intelectualmente e por meio de uma práxis
emancipatória contribuir para a luta dos povos indígenas. Assim cheguei aos
corredores da Faculdade de Direito da UnB, decidida a re-começar, encontrei ali
um homem de cabelo branco, estatura média, magro, com um chapéuzinho panamá e
um sorriso gracioso, sempre andando com uma pastinha na mão direita, com um ar
jovial e alegre. Meu primeiro pedido como aluna especial na sua turma foi
indeferido. Lembro-me da sensação de tristeza quando vi que tinha sido negado
meu pedido. Com toda razão, ele não me conhecia. Diante de uma turma
concorrida, com tantos pedidos para deferir, por que me selecionaria, vindo eu
sem nenhuma referência? Me bastou um sorriso, para que então mudasse o cenário (aqui
agradeço a intervenção de Zizi, se não fosse o sorriso dela, talvez meu pedido
continuasse indeferido).
Comecei a frequentar suas aulas, era agosto de 2017. Esperava
ansiosamente as sextas-feiras, que sem dúvida, eram minhas melhores horas da
semana. Ali escutava sobre um tal direito que poderia ser emancipatório, um
direito que poderia libertar os oprimidos, novos encontros, novos caminhos,
novas chaves de acesso para um mergulho interno que começaria nessas tardes de
sextas-feiras. Ali encontrava também palavras que ecoavam em minha alma ao
mesmo tempo que estabelecia uma ponte de reconciliação com o direito. Dizia
sempre aos amigos que aquelas tardes me ensinavam não apenas sobre teoria
crítica do direito, mas aprendia sobre a existência humana, eram aulas e
classes de ensinamentos sobre a vida e de como ser gente.
Aos poucos, foi chegando ODANR em minha vida, carinhosamente foi se
acomodando nas prateleiras da minha estante de livros, nas minhas tardes de
sexta-feira, nas minhas manhãs de domingo nas caminhadas no parque Olhos
D’água. Os caminhos foram se costurando, tecendo histórias de vida, projetos em
comum. A parceria construída a doses de cumplicidade foi se solidificando. Por muito tempo me perguntava: “por onde eu
andava que não conhecia essas pessoas?”, “O que eu estava fazendo que ainda não
tinha lido esse livro?”, “por onde eu andava que não frequentava esses
lugares?”. Sempre me foi tudo tão familiar, aquela doce sensação de quando encontramos
um velho conhecido que há muito não vemos. Me parecia tudo muito
incompreensível não estar neste lugar antes.
Voltando após este Seminário, refletindo sobre o percurso de O Direito
Achado na Rua, penso que o nosso encontro se deu no momento certo. O encontro
me proporcionou não apenas o mergulho mais profundo com a teoria crítica do
direito, como também me ofereceu as ferramentas necessárias para meu processo
pessoal e subjetivo de emancipação. Como ninguém se emancipa sozinho, me
reconheço em um duplo movimento de libertação, nesse movimento dialético: a
minha, que atravessa esse coletivo; e a do coletivo, que atravessa a minha.
Juntos lutamos pela emancipação dos sujeitos coletivos de direito; nesse “é,
sendo” eterno.
O Direito Achado na Rua marca um divisor de águas na minha vida; de
fato, um recomeço, novas páginas em branco a serem escritas, novas
possibilidades, novas amizades, novas esperanças, novos sonhos, novos e velhos
encontros comigo mesma. Sem O Direito Achado na Rua, não estaria aqui hoje
voltando para Lima. Aqui me alegro de poder compartilhar um pouco do que este
encontro reverberou nesses últimos três meses.
Me atrevo a dizer que sem O Direito Achado na Rua, não existiria esse
encontro com las calles de Lima, cujo
ensurdecedor barulho de suas buzinas anunciam os efeitos de um neoliberalismo nefasto
já incorporado no quotidiano, na vida e na subjetividade dos limeños. Sem O Direito Achado na Rua,
não caminharia num frio intenso por meses, sob um constante céu gris, que me
traria mau humor e saudades de Brasília (ali descobri que não há nada melhor do
que o calor e o céu azul do cerrado).
Sem ODANR, não haveria este encontro com as ruas tomadas em uma
convulsão social por protestos, que culminou na dissolução do congresso
peruano. Na minha primeira semana em Lima, acompanhei as marchas que tomavam as
calles de Lima sobre o signo “Que se
vayan todos”, vozes de um povo cansado de um fujimorismo enraizado, porém ainda
sem alternativas para disputar um projeto de sociedade de libertação de seu
maior algoz: o neoliberalismo implementado pelo ditador peruano de forma tão
atroz, cujo projeto de poder continua encrustado nas elites peruanas que detém
a maioria no Congresso e em toda a institucionalidade.
Sem ODANR, não caminharia pelas charmosas vielas de Barranco, onde ali
encontraria meu cantinho dessa cidade, o Café “Gato Tulypan”, um lugar que
reúne arte independente e música criolla, que resiste como um centro cultural
por insistência e valentia de seu jovem curador, Patrício. Sem ODANR, não
encontraria na rua Quilca e seus
antigos sebos, as primeiras edições das poesias de Cesar Vallejo e seus
Heraldos Negros, não encontraria o Perú indígena, do Amauta Mariátegui, não
conheceria a Miraflores de Vargas Llosa, e o pôr do sol do oceano pacífico. Sem
ODANR, não existiria as prosas de domingo no Mercado de Jesus Maria com o
senhor Rafael, que sempre tem o melhor queijo andino para oferecer daquela
semana ou mesmo aquela imensidão de frutas, batatas, vegetais, que sem saber os
nomes levaria para casa cheia de receitas após divertidas conversas com algumas
mulheres no mercado – sempre com um rol de ingredientes que eu dificilmente
entendia.
Sem ODANR, não existiria o encontro com a Amazônia peruana e a recepção
calorosa da caudalosa chuva, que só o calor e a humidade provocada pelas
árvores centenárias da Amazônia nos oferece; não sentiria esse sentimento de
chegada, de volta ao lar, ao ver o céu desabar em forma de água, ali entendi – e senti - que não existem fronteiras
que separam as árvores, os rios e os povos. Sem ODANR, não haveria uma viagem
de avião, avioneta, caminhão, barco, chalupa, dois dias e meio rio adentro para
chegar ao Pueblo Ashuar del Pastaza,
não encontraria ali este povo alegre, que escuta canções tão semelhantes àquelas
acostumadas a ouvir nos rincões mais profundos do Pará. Não conheceria mulheres
e homens guerreiros, que lutam contra a exploração do extrativismo, combatendo
vorazmente os projetos de mineração e lotes petroleiros, projeto colonialista
que continua sendo a matriz econômica peruana; não tomaria banho no rio com as
mulheres ashuares, e descobriria que o
que temos em comum além do sorriso e a condição de ser amazônica, é a
dificuldade de se expressar em castelhano – nossa língua materna é outra.
Sem ODANR, não teria meu encontro com as Rondas Campesinas, o maior
movimento do campesinato peruano, não chegaria a 4.200 metros de altitude nos
Andes peruanos, em Cajamarca, para conhecer um povoado campesino (descendente
de indígenas) de mil habitantes, cujo modo de vida está imbricado com a
proteção de seu território, suas lagoas, sua água, sua vida; não seria
convidada a desayunar em suas casas,
a almoçar no melhor (e mais modesto) restaurante do povoado; não voltaria com
eles em uma Kombi, ouvindo seus cânticos de melodia triste, mas que anunciam a
vitória após conseguirmos visitar as lagoas de Yanacocha, e atravessar as
tranqueiras que lhes impediam de pisar em seu território sagrado depois de nove
anos; não chegaria com eles até Quito, depois de 40 horas de estrada, para a
reunião da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para apoia-los na
defesa no caso Conga, projeto de mineração de extração de ouro maior da América
do Sul, que secaria todas as suas lagoas e acabaria com toda a água da região. Não
participaria de um evento sobre consulta prévia na Universidade andina Simón
Bolivar, e não conheceria as lideranças indígenas que protagonizaram uma série
de protestos anti-neoliberais contra medidas autoritárias de um governo que
lhes traiu, e que inaugura uma série de insurgências populares em toda nuestra latino-américa.
Sem ODANR, não existiria tardes e tardes compartilhadas com toda a
equipe do Instituto Internacional de Derecho y Sociedad, tantos aprendizados
entre sorrisos e guloseimas peruanas, fartura e abundância de tantos sabores
deste Peru. Foi por meio de ODANR, que também encontrei a querida Raquel
Yrigoyen Fajardo, que me abriu as portas para todos esses novos encontros, por
meio do pluralismo jurídico, da litigância estratégica, amizade também tecida a
base da cumplicidade e confiança. Também pelo ODANR, cheguei na Universidade
San Marcos, para as minhas aulas de antropologia da Amazônia, com a professora
Luiza Elvira Belaunde, que me colocou em crise com todo meu marco teórico da
minha pesquisa de dissertação de mestrado e que me faz voltar cheia de dúvidas –
terei que me entender depois com meu
orientador.
Foram tantos os encontros proporcionados por meio deste primeiro
encontro com O Direito Achado na Rua, que me caem as lágrimas só de pensar. E
já sinto saudades daquele que sorri um sorriso sempre esperançoso e que levanta
o chapeuzinho para se despedir, me fazendo rir e chorar ao mesmo tempo. Já
sinto saudades dos que ficaram e sinto saudades de tudo aquilo que ainda não
vivi.
Volto a Lima feliz, ansiosa para a chegada nesse novo lar, que aprendi a
amar, que me abriu novos caminhos e que expandiu a minha alma. Volto a Lima
para encerrar esse ciclo de tantas novas Renatas, de tantos novos começos, de
tantas e múltiplas possibilidades. Mas volto mais feliz ainda porque sei que
meu retorno a Brasília se aproxima e com ele novos desafios, novas aventuras,
novos caminhos nesse grande coletivo que é O Direito Achado na Rua.
Queria lhe dizer, professor José Geraldo, que trago O Direito Achado na
Rua comigo para onde quer que eu vá, pois já não sei onde ele começa e onde eu
termino.
Obrigada Zé,
Obrigada Professora Nair,
Obrigada a todos e todas que juntos compartilhamos estes últimos três
dias de seminário, que estiveram presente e espiritualmente conosco.
Obrigada a todos que são e constroem a Nova Escola Jurídica Brasileira,
Nair.
Com amor,
Brasília, 15.12.2019
Mulher Ashuar, Territorio Ashuar del
Pastaza, 30.10.2019
Com os movimentos sociais, Universidade Simón Bolivar, Quito, 13.11.2019
Pôr do sol no Oceano Pacífico - Lima, 13.10.2019
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