BEAU
GESTE ou O Jeito de Ser Luiz Carlos Sigmaringa Seixas
José Geraldo
de Sousa Junior[1]
Não é só o vocábulo, com a elegância da
língua francesa que expressa a fidalguia, a generosidade e a honradez de Luiz Carlos Sigmaringa Seixas. Seu modo
de ser e agir sempre foi a representação do cavalheirismo que o escritor inglês
Percival Christopher
Wren imprimiu ao personagem título do seu romance de 1924, BEAU
GESTE .
Todos os que conhecemos o Luiz Carlos, sabemos bem desse seu
jeito de ser tomando forma invariavelmente em gestos nobres, porque ao contrário de muitos fariseus e
doutores da lei, sempre foi exaltado sem necessitar sentar-se no primeiro banco
(Lucas, 14).
No
livro organizado por Paula Spieler e
Rafael Mafei Rabelo Queiroz ADVOCACIA
EM TEMPOS DIFÍCEIS Ditadura Militar 1964-1985, publicado pelo FGV, Luiz é
naturalmente um dos entrevistados e, mesmo com um roteiro que apreende em
detalhe a força de uma biografia, pronta para o diálogo, porém sem desvios,
altiva e corajosa, ele próprio
contemporiza o reconhecimento que granjeou para não se deixar envaidecer.
Quando os entrevistadores abrem a
oportunidade para se auto-definir: Doutor
Sigmaringa, gostaria que o senhor ficasse à vontade para dizer as suas palavras
finais, a sua resposta é a sobriedade que não se esbanja em arrogância
narcísica: “Primeiramente, agradecer a escolha de meu nome para este depoimento. Depois,
deixar claro que o meu papel na luta dos advogados de presos políticos não teve a importância de tantos outros colegas. Por fim, dizer que trabalhos desse tipo são
muito importantes, pois ficam como
registro para a memória do país, para a história do Brasil, talvez no seu período mais sombrio. O registro de uma luta
heroica, empreendida por gente
corajosa, e que deve servir de exemplo para as novas gerações. E é também
uma homenagem àqueles que na sua luta contra uma ditadura sanguinária, foram presos, torturados e deram as suas
vidas para que o Brasil retomasse o
caminho da liberdade e da justiça social”.
Esse modo discreto de ser, que vai do
anonimato de uma solidariedade que jamais desassistiu um desvalido, sem exigência de retorno ou um projeto que
valesse o apoio para seu seguro credenciamento, foi o balizador para definir,
aceitando ou recusando, convocações para o exercício de altos cargos, na
administração ou no sistema de justiça. Para ele o exercício de cargos públicas
só pode dar-se por meio de requisitos que se orientem pela função social desses
misteres, jamais pelo obséquio ou o carreirismo. Note-se que nesse quesito se
inclui, três vezes recusada, a indicação de seu parceiro político de anos, o Presidente Lula, que o queria com
assento no Supremo Tribunal Federal.
Os livros e entrevistas que registram a sua
biografia trazem um rol expressivo de situações relevantes nas quais se
distinguiu. Seu colega e irmão por filiação afetiva, no acolhimento patriarcal
que seu pai e nosso mestre comum na advocacia Antônio Carlos Sigmaringa Seixas estabeleceu por agnação,
acompanhei ou compartilhei muitos desses momentos e das tensões que eles
provocavam, na Ordem dos Advogados do
Brasil, no DF, na composição da primeira Comissão de Direitos Humanos
instalada depois da 8a. Conferência Nacional da OAB (1980); na Comissão Brasileira de Justiça e Paz da
CNBB e na fundação da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília
(na continuidade da luta por dignidade, contra a tortura, a violação
sistemática de direitos humanos, mas para inserir na agenda dos direitos
fundamentais os direitos sociais, econômicos e culturais e o reconhecimento político
do protesto e da reivindicação de movimentos sociais até então criminalizados
pela aplicação da legislação de exceção em forma de lei de segurança nacional);
no CEBRADE – Centro Brasil Democrático,
em Brasília, na mobilização pela autonomia e a representação política do
Distrito Federal, em conjunto com as mobilizações por eleições diretas no país,
por anistia e por uma constituinte que permitisse a mediação política para um
regime civil de enunciado democrático, valores que depois ressignificaria na
própria experiência constituinte em seu trabalho de relatoria do capítulo do
Distrito federal e da institucionalização de um ministério público, menos
representação da Coroa e corporativa e mais defensor do povo e da cidadania.
Na costura desse grande tecido para a
confecção do figurino de um novo país, o nosso Luiz alinhava o fio consistente de um cotidiano feito de dias,
noites e madrugadas de escaramuças, de enfrentamentos, num movimento contínuo,
diuturno, sem esmorecimento para resistir e avançar num campo minado, muitas
vezes cruento, sempre em disputa entre a exceção e a luta por democracia. Ora,
o mandado de segurança para assegurar o voto da representação estudantil no
Conselho Universitário da UnB e começar a erodir a intervenção militar na universidade;
ora, a carga nos processos do STM para poder copiá-los e formar matéria
empírica para o projeto Brasil: Tortura
Nunca Mais, à custa de logo o Tribunal, contra as prerrogativas da
advocacia, interditar a retirada de autos do cartório, acessíveis apenas à
consulta em balcão. Ou vamos encontrá-lo em meio à poeira da remoção forçada de
sem-teto na ocupação da Quadra 110
Norte em Brasília, na linha de proteção às violações que seguem tais operações
e a seguir na mobilização em busca de alternativas para assegurar moradia digna
no espírito da Constituição que ajudou a elaborar e da Declaração
do Habitat que inscreveu a moradia no rol dos direitos humanos cogentes, e
assim, contribuindo para as gestões que permitiram a esses cidadãos se
instalarem, contra as políticas de repatriação, onde hoje se encontram no
Distrito Federal, formando a comunidade da Vila
Nova Esperança. Aqui, reproduzindo as mesmas atribuições de defesa de
direitos, tal como em outro momento o fez com colegas da OAB-DF, para garantir
os títulos históricos reivindicados pelo protagonismo da Associação Incansáveis Moradores de Ceilândia.
Os exemplos podem se desdobrar
indefinidamente nessa remissão de testemunho. Já não é o caso, dado o protocolo
da cerimônia de homenagem e as manifestações dos ilustres oradores e oradoras
inscritos para as suas homenagens.
Aqui, me incumbe assinalar
que a mais importante homenagem que se pode tributar a Luiz Carlos Sigmaringa Seixas é a que expresse o seu legado de
homem público, de amigo leal, de companheiro afetuoso, de filho, irmão, pai,
avô, perante a sua comunidade de afetos aqui presente ou representada. Um
legado que o projeta para os tempos presentes, mais uma vez tempos sombrios,
mas que trazem o alento de que enquanto existir compromisso de luta como Luiz
travou, são tempos contados, que mais uma vez serão vencidos.
É nesse ponto que seu legado
contribui para desvelar o que se proclama sob manto da “desburocratização, eficiência e do combate à corrupção”
estatal, mas que alavanca uma
investida armada no País sob a forma de
um golpe contra o Estado, contra a Constituição e a Democracia. Com ações de
intuito reformista, com a Constituição arguida contra a própria Constituição,
para dela extrair-se, com o uso meramente formal de seus enunciados, sob a
ilusão de uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos,
jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, o tremendo
interesse de apropriação do sistema constitucional-jurídico, em
atentado à democracia, num modo de tradução, sem nenhuma sutileza,
do que se tem denominado Estado de Exceção, que se vale da lei para
esvaziá-la de suas melhores promessas, gerando por sua vez um estado de coisas
inconstitucional (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Estado democrático da direita. In
BUENO, Roberto (org). Democracia: da
crise à ruptura. São Paulo: Editora Max Limonad, 2017; SOUSA JUNIOR, José
Geraldo de. Resistência ao Golpe de 2016:
Contra a reforma da Previdência. In RAMOS,
Gustavo Teixeira et al. (coords.). O Golpe de 2016 e a Reforma da Previdência:
narrativas de resistência. Bauru: Canal 6 (Projeto Editorial Praxis),
2017).
Luiz Carlos Sigmaringa Seixas
continua presente entre nós, ele e advogados como José Gerardo Grossi, tantas vezes juntos na mesma trincheira, na
expressão do Gesto Nobre (Beau Geste)
e da disponibilidade solidária para confrontar o arbítrio. Eles nos inspiram
para a tarefa que a conjuntura propõe para aqueles que se comprometem com a causa
democrática, porque a democracia é invenção como nos ensinou José Paulo Sepúlveda Pertence outra de
nossas referências, felizmente ainda na linha de frente da luta democrática,
porque a democracia é obra inconclusa, sempre inacabada.
Mas não é tarefa fácil. Hoje no Brasil,
o cansaço e a decepção parecem também conduzir a um despertar de um
protagonismo prestes a eclodir. Aos poucos vai se revelando um cancro
institucional que se enquistou na tessitura democrática da política e
contaminou a própria história do País. Uma cumplicidade nefasta, ardilosa,
traiçoeira ampliou-se nessa tessitura numa metástase dilaceradora. Setores
institucionais e do sistema de justiça engolfaram-se na necropolítica que
produz a exceção. Gente que se apresenta aliada num arranjo semelhante a um
partido, agora se revelam , não correligionários, mas cúmplices, sacrificam a
ética funcional configurada como “filigrana
jurídica” no descaminho da política e, em última análise, da Justiça.
Contra esse
estado de coisas nos inspira a atuação de Luiz
Carlos Sigmaringa Seixas. Em 2007 colhi dele, também, em longa entrevista
que está publicada no Periódico Observatório
da Constituição e da Democracia (Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n.
17, pp. 12-13), na qual percorrendo os caminhos de uma atuação em defesa dos
direitos humanos, das liberdades públicas e dos perseguidos políticos,
estudantes, sindicalistas, professores e ativistas, durante os anos da ditadura instalada no
Brasil com o golpe civil-militar de 1964, que seu agir, seu modo de ser
político-profissional só pode ser o da “prática da advocacia para a posição de
confronto direto entre a civilidade e o arbítrio”.
[1]
Professor Titular e ex-Reitor da UnB. Discurso proferido na Sessão Solene de
Homenagem aos advogados Luiz Carlos Sigmaringa Seixas e José Gerardo Grossi, na
CIamara dos Deputados, em 1/10/2019.
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