sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Cartas de Oviedo. Ou seriam cartas de Catalunha? O referendo da discórdia.



Por Patricia Becker*

Manda o bom senso que quando não se sabe alguma coisa o melhor remédio é dizer simplesmente “não sei”. Escrevo esta carta para dizer que não sei e não entendo o que ocorre atualmente em Catalunha.

Desconheço as causas do independentismo Catalão assim como desconheço o processo histórico de formação territorial do Estado espanhol, que remonta um sem fim de disputas, rebeliões, reinados, guerras, conquistas e reconquistas ao longo de séculos e mais séculos de história. Me impressionou muito, portanto, a emergência de tantos especialistas nas minhas redes sociais durante os conflitos envolvendo o referendo 1-O. Entre minhas ignorâncias, tenho apenas algumas desconfianças: comparar o independentismo nacionalista Catalão com o processo de independência de Portugal é anacrônico. Me parece que comparar acontecimentos históricos de um período em que ainda não existia uma ideia de nação com um independentismo nacionalista contemporâneo, não seja uma leitura razoável. Ainda que existam acontecimentos que se cruzam em uma história remota.

Dentre os argumentos a favor da independência catalã, o que mais simpatizo é aquele que visa combater a monarquia. Entretanto, estou certa de que os espanhóis republicanos que desejam uma transformação política profunda não moram somente na Catalunha. Tive o prazer de conhecer muitos deles por todas as partes. Seria a independência Catalã uma solução para os problemas da coroa, da democracia espanhola, ou da crise pós 2008? Tenho algumas dúvidas.

Mas como não sou especialista no assunto, me dou o direito de palpitar assim como faria qualquer pessoa sentada em um bar. E como se diz aqui em Espanha, “voy directo al grano”: meu problema com o tema é que não gosto de nacionalismos. Nem espanhóis, nem catalãs, nem brasileiros. Tenho certa dificuldade de simpatizar com sentimentos nacionais, mas tento sempre me perguntar “de onde vem” o dito nacionalismo: vem de cima ou vem de baixo? Nesse sentido, estou plenamente consciente que um nacionalismo vindo dos Estados Unidos não possui o mesmo poder e nuance política de um nacionalismo vindo da Bolívia, por exemplo. Contextualizar é preciso, logicamente. Entretanto, no que diz respeito à Catalunha, continuo sem entender: afinal de contas, vem de cima ou vem de baixo? Ou ainda, seria possível que um nacionalismo venha realmente de baixo?

Sem tanta fama, o movimento “O Sul é meu país” realizou um plebiscito informal no Rio Grande do Sul em 07 de outubro de 2017 para saber se a população quer se separar do Brasil. Parece piada pronta, mas não é. O movimento se baseia em razões históricas que remontam rebeliões do período imperial, bem como a formação étnica e cultural da região. Entre um dos argumentos, está a tributação: segundo militantes da causa, o sul do país “dá mais do que recebe”, devendo sustentar regiões mais pobres do país. Este nacionalismo vem de cima.

Queria poder ver a questão da Catalunha com a mesma nitidez com que vejo o separatismo do sul do Brasil. Mas não é assim tão fácil. Na Catalunha existem movimentos independentistas consistentemente de esquerda e de direita. Os de esquerda, costumam amparar-se no direito à “autodeterminação dos povos”, na luta contra a monarquia, na preservação da cultura. Já os de direita costumam utilizar argumentos econômicos, além dos culturais, visto que Catalunha é uma das regiões mais ricas da Espanha que constantemente afirma estar sofrendo injustiças políticas e tributárias. Alguns especialistas apontam que o problema consiste no fato de que Catalunha possui um grande poder econômico, mas não consegue ter um poder político equivalente a nível nacional. Haveria então, sugerem, que equilibrar essa balança. Parece que na lógica da política atual quem tem mais dinheiro deveria mandar mais.

Sobre as problemáticas culturais, tenho também outras desconfianças. Possuir um idioma comum e, supostamente, uma cultura comum dá o direito ou cria a necessidade de formar um Estado? O conceito clássico de nação - um povo com origens étnicas, culturais e linguísticas em comum que compartilham um território - ainda tem validez nos tempos atuais? Barcelona, capital catalã, é um exemplo emblemático do caldeirão cultural, linguístico, migrante, extra-europeu, que abunda Europa. Europa continua sendo europeia? Ou vivemos hoje em Estados multi-transculturais, de alta circulação de pessoas e culturas?  Qual é a voz dos imigrantes no novo país catalão?

Apenas perguntas. Apenas especulações. A questão é tão complexa que chego a ter medo de manifestar qualquer pensamento sobre ela, e o clima por aqui não é de grande estímulo ao debate. Existem muitas nuances. A falta de diálogo do governo do PP, o agravamento da crise diante da violência da Polícia Nacional, as evidentes violações de direitos, incluindo os de liberdade de expressão e de organização. A previsão legal de um referendo consultivo versus a proibição constitucional de fragmentação do território. A legalidade do referendo versus o direito de desobediência civil. O estatuto das Autonomias em Espanha. Etc.

Entre o independentismo de Catalunha e a unidade espanhola, eu fico com a luta imigrante. Ao menos essa eu tenho certeza que vem de baixo.

*Patrícia Vilanova Becker, integra o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; mestranda em Direito pela UnB, mestre pelo Master´s Degree in Women's and Gender Studies (Gemma) pela Universidade de Bolonha e Universidade de Oviedo. Doutoranda em Género y Diversidad pela Universidad de Oviedo.

Um comentário:

  1. Valeu à pena esperar sua nova postagem. Como sempre Patrícia, o seu texto revela argúcia e estilo oferecendo uma narrativa instigante e propositiva. Suas questões inquietam e interpelam, por cima e a partir de baixo, a direita e a esquerda, foram de lugares-comuns.

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