Ludmila
Cerqueira Correia*
Coimbra, 09 de agosto de 2015.
Estávamos perdidas, procurando a entrada do
Negócio para assistir à segunda parte da peça. Ao perguntar a um grupo de
pessoas onde ficava a rua do teatro, uma delas respondeu: - Não sei que rua é
essa, mas os amigos de vocês que também carregam cravos vermelhos foram por
aquele lado ali.
Os cravos vermelhos nos foram dados no
espetáculo “Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas”**, em uma menção à
Revolução dos Cravos, ocorrida em 25 de abril de 1974 em Portugal, um dos três
momentos/períodos trazidos nas cinco horas de espetáculo naquela noite.
Acessar a memória significa, também, saber
utilizar os instrumentos e mecanismos disponíveis para chegar ao ponto,
momento, que se quer debruçar e refletir. Por isso, não é só um ajuntamento de
livros, fotos, panfletos e músicas que vai dar conta do que se pretende com
esse tema: resgatar e registrar as memórias de períodos de ditadura e de regime
de exceção. E, mais, ainda, saber o que vai fazer com isso tudo, ou seja, com
as narrativas escancaradas e, muitas delas, trazidas à luz anos depois do
ocorrido, com destaque para os discursos de pessoas comuns, as que não
constituem o grupo dos “protagonistas militares e políticos”.
Ouvir Tanto Mar, na voz de Chico Buarque,
nos levou de Portugal ao Brasil, num emaranhado de questões que confrontam as
diferenças e semelhanças nos percursos das ditaduras nos dois países. A tortura
é uma delas, utilizada indiscriminadamente naqueles regimes de exceção e, ainda
hoje, uma mácula lá e cá.
Claro, é pouco tempo vivendo aqui, e por
isso não arriscaria afirmar se esse tema é ou não prioridade nas pautas
nacionais. Por enquanto, fico com o conteúdo do espetáculo (baseado na pesquisa
de doutorado da atriz que o interpreta, Joana Craveiro) e com um dado
significativo ali destacado: em Portugal não há nenhuma política de memória,
verdade e justiça sobre o regime ditatorial do Estado Novo.
No livro “As clandestinas”, Ana Barradas
narra uma das medidas de Salazar, em outubro de 1945: “preocupado com a euforia
antifacista, proclamou que Portugal era uma ‘democracia orgânica’”. Nesse
percurso, aprovou o decreto-lei n. 35.043 instituindo o habeas corpus, que segunda ela, “de tão restritas que eram as
condições para a sua concessão, acabava por ser de quase nenhuma aplicação:
tinha de ser requerido por um advogado, que se sujeitava a uma avultada multa e
à suspensão de três a doze meses do exercício da advocacia, se o Supremo
Tribunal indeferisse o decretamento de tal medida. Além disso, prometia-se
cadeia ao defensor do réu preso, como ‘castigo’ de ter perdido a acção”***.
Como não se lembrar da ditadura
civil-militar (1964-1985) no Brasil, mas também dos dias atuais em que uma
elite raivosa clama por um novo golpe militar e a pauta prioritária do governo
federal no Congresso Nacional é um projeto de lei antiterrorismo?
Ao mesmo tempo em que o Brasil inicia sua
incursão pelas políticas de memória e verdade, seja com a Comissão Nacional da
Verdade ou com outros mecanismos esparsos, o impulso pela aprovação do referido
projeto de lei pode acarretar uma série de violações das liberdades públicas e
dos direitos fundamentais. Significa colocar na berlinda, mais uma vez, os
movimentos sociais e reivindicações populares, ao associá-los com práticas com
a finalidade de provocar “terror”, a partir de razões de “política” ou
“ideologia”.
No percurso brasileiro, memória, verdade e
justiça não podem ficar restritas ao período de 1946 a 1988 (que inclui a
ditadura civil-militar). Há crimes anteriores e mais recentes para os quais
ainda não se tem uma resposta do Estado, e para citar apenas um exemplo neste
século, o genocídio do povo negro é o que me chama mais atenção, seja com os
Crimes de Maio de 2006 em São Paulo****, seja com a Chacina do Cabula, em
Salvador, neste ano de 2015*****. Para estes, o estado brasileiro não garante
memória, busca da verdade e, muito menos, justiça.
As cinco horas do espetáculo me balançaram,
como num mar revolto entre as memórias daqui, ainda tão vivas em muitas pessoas
daquela plateia, e as memórias do Brasil, ainda cruas e a sangrar.
*
Ludmila Cerqueira Correia é doutoranda em Direito, Estado e Constituição
no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, integrante
do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, bolsista CAPES em estágio
doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, professora do
Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba e
Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania (Centro de
Referência em Direitos Humanos da UFPB).
** Ver: <http://www.zedosbois.org/events/um-museu-vivo-de-memorias-pequenas-e-esquecidas-teatro-do-vestido-2/>
*** BARRADAS, Ana. As clandestinas. Lisboa: Ela por ela,
2004.
**** Ver: <http://maesdemaio.blogspot.com>
***** Ver: <http://reajanasruas.blogspot.com>
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