domingo, 12 de outubro de 2014

Moro na rua do Penedo da Saudade (Cartas do Mondego)*



Patrick Mariano**

Coimbra, 8 de outubro de 2014

Por pura coincidência, sentei para escrever essa carta quase no exato momento em que, há duas semanas atrás, embarcava sob as primeiras e desejadas gotas de chuva de Brasília. As águas que escorriam pelo lado de fora da janela do avião eram, também, as minhas naquele momento a escorrer pelos olhos e as que, nos últimos dias, havia compartilhado com amigos e amigas que tanto me fizeram melhorar em um contato sempre alegre e afetuoso.
Ainda sem saber ao certo o que encontraria pela frente ficava, durante as horas de viagem, a relembrar os instantâneos dos momentos com cada um e cada uma que amava. E eram tantos que pouco me sobrava para prestar atenção na refeição que o serviço de avião oferecia.
O mapa com o avião em rota é a primeira coisa que olhamos. O visor mostrava a Ilha de Lanzarote e Casablanca. O primeiro, lugar de Saramago. Casablanca, um dos filmes mais lindos que já assisti. Como não associar a cena final do avião partindo, com a minha atual? Começava a entender que, em uma viagem como essa, desbravamos o lugar e, nesse ato, terminamos por nos desbravar.
A chegada cheia de malas, o trem, a estação e o medo do desconhecido. Me confundi na parada e tive que descer em Mealhada, uma pequena aldeia naquele vasto mundo que agora passava a me pertencer. Desconfiado, como todo interiorano, pedi informações para uma senhora e, de cara já percebi ser suficiente um sorriso e delicadeza para se conseguir as coisas em qualquer lugar do planeta.
A cidade de Coimbra é cheia de encantos e histórias. Também, são séculos e séculos em cada pedra, ladeira e beco. Interessante descobri-la aos poucos e sem pressa. O tempo é uma das coisas que mais me chamou atenção. De repente, tive tempo para caminhar, tomar um café e conversar. Talvez uma das coisas mais ricas de se estudar fora é retomar o próprio tempo. A vida no Brasil, tão corrida e cheia de estresse no serviço público aos poucos dava lugar à uma nova contagem de tempo.
Temos que reaprender a gerir o tempo e criar uma rotina de estudos disciplinada. É impressionante como as leituras rendem e o tanto que temos ainda a ler.
Come-se bem em Portugal. Para quem gosta de doce é uma festa. Esses dias, em uma feira de doces medievais experimentei um, não porque seja lá fã de doces, mas porque a receita era de 1519. Como resistir a um trabalho manual de cinco séculos?
Os pratos são uma perdição. O leitão é o mais famoso, mas há também a alheira, um defumado que os judeus faziam com carne de ave para despistar a inquisição, misturando-se com os locais que devotam a carne de porco. Há, também, a chanfana, um delicioso prato de cabra ao vinho. Para alguém que viveu por entre os interiores de Minas Gerais, São Paulo e Paraná como eu, não poderia ter acertado mais em cheio o lugar de se doutorar.
Pode se contar parte da história do próprio país pela Universidade de Coimbra, uma das mais antigas do mundo. Estudantes de 90 países desfilam por suas escadas e ladeiras. Aliás, ladeiras e escadas é o que não nos falta. Até elaboramos uma frase adaptada: no fim sempre tem uma ladeira ou escada, se não tem uma ladeira ou escada é porque ainda não se chegou ao fim.
Justamente esse movimento frenético de estudantes a subir e descer as escadas é que faz com que Coimbra seja um espaço privilegiado de contato para entender as mudanças e transformações pelas quais passa a Europa.
Andar pelas repúblicas da Sé Velha é um passeio interessantíssimo. Há as feministas, anarquistas, comunistas e socialistas, muitas com mais de 50 anos de história. Caminhando por entre elas se chega, sem perceber, à casa do grande Zeca Afonso, um dos maiores da música de intervenção, nossa música de protesto.
Essa vida acadêmica que pulsa, também é vista nas capas pretas da Praxe, ideal mais tradicional e formalista do ensino e que inspirou Harry Poter. Nas repúblicas mais contestadoras, não é raro ver enforcamentos simbólicos desses trajes tradicionais nas fachadas das casas. Seja no calor ou no frio, lá estão essas capas a caminhar pelas subidas e descidas de Coimbra.
O continente está em crise. Principalmente os países do sul, Espanha, Portugal, Grécia são as maiores vítimas da aceitação da cartilha neoliberal levada à risca pelos donos da Comunidade Europeia. E, como sempre nesses casos, quem paga a conta é o povo. Pela primeira vez os novos portugueses herdarão um país pior que receberam dos seus pais. Cortes nos direitos sociais adquiridos faz com que se rasgue a Constituição da República Portuguesa - um dos textos constitucionais mais belos da história.
É de lá que vem, logo de início:
ARTIGO 1º Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes.
As políticas neoliberais estão a atacar a Constituição da República Portuguesa e os direitos dos portugueses. Perguntei a um fotógrafo o porque de não haver revoltas quanto a esse estado de coisas. Me disse que aqui as coisas viram de uma vez, como na revolução de Abril e que a ideia de que está ruim, mas poderia ser pior, acaba por impedir maiores gritos do povo contra esse desmonte do estado de bem-estar social.
As aulas se dão às sextas e sábados e a turma é formada por portugueses e brasileiros. Há uma riqueza nessa troca em razão das diferenças conjunturais e de como o direito tem suas nuances próprias em cada continente.
Os portugueses sabem dar nome às coisas. A rua das flores, rua dos gatos, rua da saudade, pátio do portão de ferro e os arcos do jardim expressam a poesia que se encontra caminhando por entre as pedras portuguesas da cidade, aliviando as subidas e escadas.
Por sinal, esses dias, ao explicar para o vendedor de móveis usados o lugar em que morava - a fim de receber a escrivaninha que havia adquirido – disse, sem perceber ou elaborar com mais tempo, uma frase que depois virou um bom resumo ou metáfora desses parágrafos anteriores todos:
Venha pela avenida dos arcos do jardim e dobre a segunda à esquerda, certo? Eu moro na rua do Penedo da Saudade. 

*As “cartas” têm sido publicadas neste Blog como impressões/reflexões de viagens para intercâmbio e estudos de pós-graduação de membros dos vários coletivos que se encontram nos Diálogos Lyrianos. Assim, estão aqui colecionadas as Cartas de Nagoya (Diego Nardi), as Cartas da Áustria, Finlândia, Alemanha e agora da China (Layla Jorge Teixeira Cesar), as Cartas do Gotemburgo (Ana Luiza Almeida e Silva), as Cartas da Indochina (Luiza Valladares). Agora começam a chegar as Cartas do Mondego, de Patrick Mariano (quem sabe, pelo talento [**] e pelo estilo ele se inspire em Saramago e seu belíssimo "Viagem a Portugal" e em Eduardo Lourenço e sua "Mitologia da Saudade") e, em breve de Lívia Gimenes. Os dois estão em Coimbra para seguir programas de pós-graduação.

**Patrick Mariano é advogado da RENAP (Rede Nacional de Advogados Populares) e está em Coimbra em Programa de Doutoramento. Ele integra o coletivo Diálogos Lyrianos e é autor do livro 11 Retratos por 20 Contos. 












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