Ilmo. Sr.
Professor George
Bandeira Galindo
MD Diretor da
Faculdade de Direito da UnB
No último dia 30, o Supremo Tribunal Federal aprovou a colocação do
busto de Victor Nunes Leal na sala própria da mais alta Corte de Justiça de
nosso País. Uma justa e corretíssima homenagem a uma das mais proeminentes
figuras públicas do Brasil, advogado, jurista, sociólogo, político, escritor,
professor, foi Ministro naquele Tribunal, não obstante a maneira brutal, em
tempos de obscurantismo, como foi interrompida a sua judicatura no STF.
Nascido em 11 de novembro de 1914, este é, portanto, o ano do seu
centenário e, certamente, essa é a razão que motiva a decisão de tão eloqüente
celebração. De algum modo, reconhecimento e desagravo.
Cumpre o seu dever o Supremo em honrar aquele que foi um de seus
mais destacados membros, suficientemente profícuo para inscrever na história
substantiva de nosso tribunal constitucional, no curto tempo em que nele teve
assento (de 1960 até 16 de janeiro de 1969, quando foi afastado
por força do Ato Institucional nº 5 (AI-5),
de 13 de dezembro
de 1968),
um legado no qual se inclui, além de votos magistrais, a criação e o primeiro procedimento
de institucionalização das denominadas súmulas
da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Tal é a
estirpe de juiz que encontra em Victor Nunes
Leal, o seu mais bem desenhado modelo.
Com efeito, já
o disse em outro lugar (Floriano Cavalcanti de Albuquerque, um Juiz à Frente de
seu Tempo, in Albuquerque, Marco Aurélio
da Câmara Cavalcanti de, Desembargador Floriano Cavalcanti de Albuquerque e sua
brilhante trajetória de vida, Infinitaimagem, Natal, 2013), texto célebre de
Anatole France, Prêmio Nobel de Literatura de 1921, um dos fundadores da Liga
dos Direitos do Homem, notável escritor que tratou frequentemente o tema da
justiça e da condição do jurista, traduz bem e com notável antecipação, questões
sérias que se colocam ainda hoje como desafios à magistratura. O texto se
intitula Os Íntegros Juízes e nele o
escritor procura transmitir a impressão retida da observação de um quadro de
Mabuse (Jan Gossaert), talvez a mesma que se possa perceber na pintura de van
Eyck (o Políptico de Gantes), em que
são figurados também os juízes íntegros, tal como são conhecidos.
De sua observação, diz Anatole, pode-se
concluir ter o mestre dado aos dois juízes o mesmo ar grave de doçura e de
serenidade. Mas, vistos os detalhes que caracterizam um e outro, pode-se ver
que eles, no entanto, são diferentes, na índole e na doutrina. Um traz na mão
um papel e aponta o texto com o dedo; o outro ergue a mão com mais benevolência
do que autoridade, como que a liberar um pensamento prudente e sutil. São
íntegros os dois, conclui o escritor, mas é visível que o primeiro se apega à
letra, o segundo ao espírito.
Em outro texto
sobre este tema (A Lei é Morta o Juiz é
Vivo), alinha parêmias do célebre magistrado Magnaud erigido, na doutrina e
na literatura (Victor Hugo, em
Os Miseráveis), em
expressão de aplicação equitativa do Direito, com a fórmula, ensina Carlos Maximiliano,
“decidir como o bom juiz Magnaud”.
Seu ponto de partida é trazer a Justiça para o social, de modo a permitir um
processo de aplicação que leve a ultrapassar as condições limitadoras de seu
momento de produção: “Enquanto a
sociedade for fundada na injustiça, as leis terão por função defender e
sustentar a injustiça”.
Por isso o
chamamento que faz Anatole France ao juiz vivo para se posicionar ativamente em
face da lei morta: “A bem dizer, eu não
teria muito receio das más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes.
Dizem que a lei é inflexível. Não creio. Não há texto que não se deixe
solicitar. A lei é morta. O magistrado é vivo; é uma grande vantagem que leva
sobre ela. Infelizmente não faz uso disso com freqüência. Via de regra, faz-se
mais morto, mais frio, mais insensível do que o próprio texto que aplica. Não é
humano: é implacável. O espírito de casta sufoca nele toda simpatia humana. E
vejam que só estou falando dos magistrados honestos”.
Daí a
necessidade de os juízes se darem conta, como mostra Bistra Apostolova (Perfil e habilidades do jurista: razão e
sensibilidade, Notícia do Direito Brasileiro, nº 5, Faculdade de Direito da
UnB, Brasília), de que prefigurar o sentido dos conflitos é a tarefa que lhes
cabe e que mediá-los requer compreender o significado que eles alcançam em seu
próprio tempo. Como disposição e como atitude, sem o desespero aniquilador que
Tolstoi impõe ao juiz de sua narrativa (A
morte de Ivan Ilich), para abrir-lhe a consciência que desnuda a sua
trajetória profissional, social e familiar como “monstruosa mentira camuflando vida e morte”.
No plano das
habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis
profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria
subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente
e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este
sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial
Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja,
para caracterizá-las como “ingrediente indispensável ao pensamento público, com
condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade
social”.
É essa estirpe
de juízes que, no Supremo Tribunal Federal - Victor Nunes Leal e Evandro Lins e
Silva - souberam exercitar a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a
falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar,
“a justiça não deve encontrar o empecilho
da lei”. Provedores de uma justiça poética esses juízes, lembra Josaphat
Marinho em discurso de homenagem a Víctor Nunes Leal na UnB, citando Aliomar
Baleeiro, levam a jurisprudência do Supremo a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida
nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a
aresto”.
Não são de agora, todavia, as citações de reconhecimento às
notáveis contribuições de Victor Nunes e, em seu centenário, iremos assistir
muitas outras homenagens que advogados, sociólogos e escritores irão lhe
prestar. Nesse campo, não deixará de luzir o relevo que ganhará a sua notável
tese de concurso sobre a formação do município brasileiro, que mereceu de Antonio
Cândido a distinção de constituir-se um dos 10 livros que ele selecionou para
bem conhecer o Brasil. Para Cândido (Prefácio em Coronelismo, Enxada e Voto): “Da Proclamação da República até 1930 nas
zonas adiantadas, e praticamente até hoje em algumas mais distantes, reinou a
oligarquia dos proprietários rurais, assentada sobre a manipulação da política
municipal de acordo com as diretrizes de um governo feito para atender aos seus
interesses. A velha hipertrofia da ordem privada, de origem colonial, pesava
sobre a esfera do interesse coletivo, definindo uma sociedade de privilégio e
favor que tinha expressão nítida na atuação dos chefes políticos locais, os
“coronéis”. Um livro que se recomenda por estudar esse estado de coisas
(inclusive analisando o lado positivo da atuação dos líderes municipais, à luz
do que era possível no estado do país) é Coronelismo, enxada e voto (1949), de Vitor Nunes Leal, análise e
interpretação muito segura dos mecanismos políticos da chamada República Velha
(1889-1930)”.
Penso, Senhor Diretor, que não pode faltar nas homenagens
que se multiplicarão, a Universidade de Brasília e a nossa Faculdade de Direito.
A UnB, sobretudo, teve em
Victor Nunes, não apenas um de seus mais brilhantes
professores, mas um protagonista que se mostrou imprescindível no convencimento
do Presidente Juscelino para a criação da própria universidade. Roberto A.
Salmeron em seu livro A Universidade
Interrompida: Brasília 1964-1965 (Editora Universidade de Brasília,
Brasília, 1ª edição, 1999; 2ª edição, comemorativa do cinqüentenário da
universidade, 2012) faz a crônica desse protagonismo, exercido na condição de
Chefe da Casa Civil da Presidência da República. Mas essa participação ganha
mais intensidade na própria narrativa de Victor Nunes lançada em seu discurso
de retribuição à homenagem que a universidade lhe prestou em 1984 ao lhe
conferir o título de Professor Emérito.
A passagem está publicada em opúsculo editado pela UnB por
ocasião da efeméride, reunindo as atas, os memoriais, os discursos e os atos
constitutivos da alta distinção estatutária (cuja cópia anexo) e é pertinente
recolher o episódio descrito pelo personagem que o protagonizou: “Minha vinculação a esta Universidade data
de antes de sua fundação, quando Darcy Ribeiro, convidado por Cyro dos Anjos,
que era Subchefe da Casa Civil, se empenhava de corpo e alma naquela cruzada.
Israel Pinheiro, presidente da Companhia Urbanizadora da Nova Capital, receiava
os possíveis tumultos de uma universidade funcionando em Brasília, e Juscelino
hesitava, embora ela estivesse prevista no plano de Lúcio Costa. Oswaldo
Trigueiro, grande conhecedor de História, em almoço comigo e Cyro dos Anjos,
lembrou um episódio que poderia influir no espírito do Presidente, o do
epitáfio de Thomas Jefferson, por ele mesmo escrito. No seu breve texto, o
grande estadista omitiu ter sido Secretário de Estado e Presidente de seu país,
fazendo constar somente que havia fundado a Universidade de Virgínia, além de
ter escrito a declaração da independência dos Estados Unidos e a lei de
liberdade religiosa do seu Estado. Fui incumbido de levar esse estímulo ao
Presidente Juscelino. Cyro dos Anjos já relembrou o fato em depoimento
substancioso, de valor histórico, que prestou na Câmara dos Deputados, em 7 de
março de 1968. E o Professor José Francisco Paes Landim o trouxe, no ano
passado, ao conhecimento do Conselho Universitário. Mas Cyro – fiel à sua
vocação literária – acrescentou que o Presidente, ao ouvir o recado de Oswaldo
Trigueiro, ‘deu um salto na cadeira’. Na realidade, ele ouviu com muito
interesse e compostura e comentou: - ‘Será que o Clóvis (referia-se ao Ministro
da Educação) pode ter esse projeto concluído antes da mudança da capital?’.
Estávamos por volta de outubro de 1959. Respondi que, autorizado por Cyro dos Anjos,
tudo já tinha sido feito por Darcy Ribeiro, juntamente com um grupo muito
competente de professores e cientistas. E assim a mensagem que acompanhou o
projeto da Universidade de Brasília foi assinada pelo Presidente Juscelino na
nova capital, no dia da sua inauguração, 21 de abril de 1960”.
A outorga do título de Professor Emérito representa, sem
dúvida, uma distinção condigna do justo reconhecimento a tão relevante
contribuição. Mas cabe, ainda, a meu ver, à Faculdade de Direito da UnB prestar
o devido tributo aquele que foi um de seus docentes mais brilhantes, seja como
professor das cadeiras de Introdução à Ciência Política e de Direito
Constitucional, seja como coordenador do Curso-Tronco de Direito, Economia e
Administração, embrião da atual Faculdade de Direito.
Considero, assim, Senhor Diretor, que neste momento ainda
celebratório do jubileu da universidade e de nossa Faculdade, portanto, em seu
momento de mais completa consolidação, no qual ela assume a titularidade
exclusiva do edifício que lhe serve de sede, que esse prédio possa ser nomeado
“Faculdade de Direito da UnB – Edifício Victor Nunes Leal”.
Ao tempo em que exerci o reitorado em nossa universidade
(2008-2012), muito por estímulo do alcance simbólico do momento jubileu,
procurei imprimir no imaginário universitário marcas de memória com a
designação atribuída a muitas obras inauguradas nesse período (conforme o livro
que organizei Da Universidade Necessária
à Universidade Emancipatória, Editora Universidade de Brasília, Brasília,
2012). Desse modo é que atribui os nomes de Luiz Fernando Gouvea Laboriau,
Eudoro de Sousa, Honestino Guimarães, Ieda Santos Delgado, Paulo de Tarso
Celestino, professores e estudantes cujas vidas se entrelaçam com a história da
universidade e do próprio Darcy Ribeiro ao Memorial que foi a ele edificado no
campus.
É com esse intuito de ressignificar a memória de tão
formidável contribuição à história da UnB e de sua Faculdade de Direito que
proponho Senhor Diretor, por seu intermédio, levar ao Conselho da Faculdade a
presente moção para que, ao ensejo do centenário de Victor Nunes Leal, aprove a
egrégia congregação de nossa Faculdade, atribuir ao prédio que a abriga o nome
de Victor Nunes Leal, levando-se, posteriormente, este pleito, uma vez
aprovado, ao Magnífico Reitor da Universidade de Brasília, com o fim de
produzir-se o ato próprio e respectivos totens e placas designativos.
Brasília, 09 de maio de 2014
Professor José Geraldo de Sousa Junior
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