segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O PLURALISMO JURÍDICO NA OMISSÃO ESTATAL: O DIREITO ACHADO NO CÁRCERE


Com esse título - O Pluralismo Jurídico na Omissão Estatal. O Direito Achado no Cárcere  é publicada com o selo de Nuria Fabris Editora, Porto Alegre, 2014 (www.livrariafabris.com.br), o livro originado da dissertação de Mestrado defndida na UnB, de EDUARDO XAVIER LEMOS, que tive a oportunidade de orientar. Num momento em que o drama penitenciário salta para o seu maior impacto social, impulsionado pela gravidade dos acontecimentos do Maranhão, a publicação traz uma abordagem que dá aos presidiários a autoria da palavra e a intensidade do discurso. Algo fundamental considerando que as manifestações até aqui têm se preocupado em expressar o abstrato, isolar nos políticos as responsabilidades orientadas pelas percepções ideológicas e corporativamente interessadas, mas alheias à subjetividade dos sujeitos mais vulneráveis à coisificação que decorre dessa realidade paradoxal. Além dos achados teóricos que o livro oferece, ele ganha relevância por abrir um lugar de manifestação autêntica e visceral dos excluídos da exclusão. Para situar o trabalho, reproduzo, a seguir, o Prefácio que elaborei para a edição, a pedido do autor e da editora:

O livro ora editado, sob os auspícios da sensibilidade editorial de Nuria Fabris Editora, é originado da dissertação de mestrado defendida pelo autor na Faculdade de Direito, da Universidade de Brasília. Da apresentação original – “O Direito Achado na Rua, Pluralismo Jurídico, Teoria Crítica dos Direitos Humanos e a Luta por Direitos no Presídio Regional de Pelotas”- a obra conserva a estrutura de três capítulos, nos quais se propõe estudar a reivindicação de direitos no sistema prisional a partir das teorias pluralistas do direito e da teoria crítica dos direitos humanos.
Em seu trabalho, o autor percorre com precisão, o roteiro disciplinado sugerido por Roberto Lyra Filho, para orientar as tarefas do pensamento forte mas socialmente engajado: “ater-se ao ângulo prático, no sentido de prática científica e ligação com a prática social, de onde emerge o discurso epistemológico mais enfibrado”. É nessa condição que o trabalho escapa à derrapagem comum em estudos com o arranque que nele se supreende, para não cair nos erros comuns advertidos pelo grande pensador na face criativa de suas análises criminológicas (Roberto Lyra Filho, Carta Aberta a um Jovem Criminólogo: Teoria, Práxis e Táticas Atuais, Revista de Direito Penal, vol. 28 Forense, Rio de Janeiro, 1980, págs. 5 a 25).
            O estudo parte da análise do pluralismo jurídico, perspectiva teórica adotada pelo autor. Dessa forma, seu primeiro capítulo estrutura-se pelas definições das teorias pluralistas do direito, traçando as características gerais da gênese da teoria.
            A perspectiva inicial deriva da obra de Boaventura de Sousa Santos,  objeto de revisão bibliográfica desde  os estudos de doutoramento do sociólogo português, cuja pesquisa empírica realizada em uma favela brasileira em meados dos anos de 1970, vem a se constituir numa virada teórica para a retomada do tema  do Pluralismo Jurídico.
            No mesmo caminho, a análise segue pelos debates que Boaventura realiza ao longo das décadas seguintes, procurando caracterizar a matriz pluralista de direito na pós-modernidade.
            O primeiro capítulo segue ainda a abordagem do pluralismo jurídico, agora em uma perspectiva posterior, a partir dos estudos de Antonio Carlos Wolkmer, que foi, aliás, membro da banca examinadora. A partir das publicações iniciais desse autor, têm-se que a teoria pluralista, realiza inúmeras contribuições e traz novas caracterizações e conceitos para o pluralismo jurídico, num enquadramento de matriz comunitário-emancipatória em diálogo com as filosofias de libertação.  
            Em um terceiro momento, o livro avança para o  estudo do Direito Achado na Rua,  do Humanismo Dialético e do Direito como Liberdade,  teorias com matriz na Universidade de Brasília, com foco também pluralista e com escopo voltado aos sujeitos sociais, que procura atribuir reconhecimento às reivindicações jurídicas de espoliados e oprimidos, vistos como sujeitos coletivos reais protagonistas da construção social do Direito. 
O segundo capítulo do livro cuida de uma revisão bibliográfica da obra de Joaquin Herrera Flores, autor espanhol da teoria crítica dos Direitos Humanos. Ao longo do estudo, são debatidos os conceitos teóricos que caracterizam os principais aspectos desta importante e complexa teoria, traçando uma abordagem geral e panorâmica da teoria, procurando explicitar a obra de Joaquim Herrera ao longo do capítulo.
            O terceiro e último capítulo é uma pesquisa empírica, onde a partir da metodologia de entrevista, o autor insere-se no Presídio Regional de Pelotas e entrevista os apenados, captando então a voz e o sentimento dos aprisionados, suas aflições, seus problemas, suas angústias.
            O trabalho empírico procura conectar a partir da malha teórica traçada ao longo do trabalho, ou seja,  as  teorias pluralistas e a teoria critica dos direitos humanos com a realidade prisional dos  apenados.
            Trata-se, pois, de um capítulo onde teoria e práxis se comunicam, e o autor apresenta o que denominou de reivindicação de direitos no sistema prisional, ou Direito Achado no Cárcere, do sofrimento dos apenados, da omissão do estado, o autor procurou encontrar uma teoria de direitos.
Esse clamor por necessidades essenciais que foi apresentado no capítulo terceiro, que é a luta por uma vida mais digna, o processo de libertação, ou direito achado no cárcere, foi detectado ao longo das declarações dramáticas dos apenados, seja em seu clamor por um judiciário mais justo (justiça), seja pela presença mais marcante do Estado, oferecendo médicos, psicólogos e professores, além de outros bens que apareceram nas palavras dos detentos, muitas vezes como revolta.
É o homem revoltado de que fala Albert Camus, lembra o autor, uma espécie de proto-cidadão, irrompendo-se contra a opressão, para tornar-se sujeito na história:
A partir do movimento de revolta, ele ganha a consciência de que ser coletivo, é a aventura de todos. O primeiro avanço da mente que se sente estranha é, portanto, reconhecer que ela compartilha esse sentimento com todos os homens, e que a realidade humana, em sua totalidade, sofre com esse distanciamento em relação a si mesma e ao mundo. O mal que apenas um homem sentia torna-se peste coletiva. Na nossa provação diária, a revolta desempenha o mesmo papel que o cogito na ordem do pensamento: ela é a primeira evidência. Mas essa evidência tira o indivíduo de sua solidão. Ela é um território comum que fundamenta o primeiro valor dos homens. Eu me revolto, logo existimos. (CAMUS, 2011, p. 35).
Não obstante ao sentimento de revolta, o estudo contido neste livro detectou, também, essa “peste” reivindicadora de direitos, tomando o mesmo critério do autor argelino com os limites dessa reivindicação, qual seja: até onde se pode considerar tal insurgimento dos aprisionados válido. Nesse contexto remarca o autor, Camus expôs:
O verdadeiro drama do pensamento revoltado finalmente se revela. Para existir, o homem deve revoltar-se, mas sua revolta deve respeitar o limite que ela descobre em si própria e no qual os homens, ao se unirem, começam a existir. O pensamento revoltado não pode, portanto, privar-se da memória: ele é uma tensão perpétua. Ao segui-lo em suas obras e nos seus atos, teremos que dizer, a cada vez, se ele continua fiel à sua nobreza primeira ou se, por cansaço e loucura, esquece-a, pelo contrário, em uma embriaguez de tirania ou de servidão. (CAMUS, 2011, p. 34-35).
É assim que o autor, fixando-se ainda em Camus, encontra o “parâmetro que limita a revolta, que é o potencial libertário da reivindicação de direitos”.
Para o autor do livro, conforme a sua tese: “Esse grito de socorro, clamado pela voz dos detentos nas entrevistas, não pode ser negado, omitido dos bancos acadêmicos do direito, pois se tem aqui cidadãos, exemplificados nesse estudo de caso, mas espalhados pelos presídios de todo o Brasil, com direitos negados, sem efetividade de direitos, sem “direito achado no cárcere”.  Uma vez que na rua não estão, pois cometeram delitos e cumprem suas penas privativas de liberdade, porém se encontram com sua condição de cidadania negada, seus direitos humanos omitidos, sem resposta, sem escuta.
Mais que isso, nota-se nessas entrevistas que em decorrência dessa negação, uma brasa surge motivada pela cegueira da deusa Themis que opta por vendar seus olhos. Brasa esta que se espalha entre os demais aprisionados, que se comunicam entre si, gerando uma fogueira de insurgência, de reivindicação e de clamor por direitos, oriundos da opressão, da violência e da dor. 
Como já mencionado anteriormente, nem sempre essa insurgência vai ser a expressão coletiva organizada e participativa, mas ela deve ser ouvida, pois é um grito de socorro”.
É aí que radica, a meu ver, como um achado que vai transparecer da leitura engajada que o livro apresenta, algo que resta inarredável, que seu autor capta e toma como referência, a partir do que anotei em outro lugar (Sousa Junior, José Geraldo de, Idéias para a Cidadania e para a Justiça, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2008, pág. 92): “Uma facção criminosa não é um movimento social. Porém, é fundamental afirmar: pertencendo ou não a organizações criminosas, os presos, em sua condição de exclusão, conservam uma reserva inalienável de cidadania, que deve encontrar formas de reconhecimento e de exercício”.


José Geraldo de Sousa Junior
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília; foi seu                  Reitor (2008-2012); coordena o projeto O Direito Achado na Rua



Um comentário:

  1. Responder as palavras do Professor José Geraldo é até difícil, alguém começando na carreira, que deu um pequeno passo, em tamanho batalha e com tantas dificuldades, receber um elogio tão maravilhoso como esse, de alguém que sempre foi por mim admirado por muitos e muitos anos (à distância, por textos e vídeos, depois pessoalmente como professor e orientador), é algo indescritível.
    Não tenho palavras para agradecer o apoio prestado nessa caminhada, impossível seria concluir essa difícil jornada, onde professores, colegas, secretaria da Universidade sabem que houve um período muito difícil de superação pessoal. Sem a sua paciência, sabedoria e compreensão eu jamais teria tido a capacidade de atingir êxito nesse trabalho.
    É importante agradecer à minha família, meus amigos, aos demais professores, em especial Luiz Antonio Chies, meu co-orientador acadêmico (em diversos trabalhos) e da vida, eterno professor e eterno amigo, e ao professor Alexandre Bernardino Costa que em momentos de extrema dificuldade conversou comigo e me acalmou em meio ao caos, ele compreendeu a dificuldade que passei.
    Também agradeço a Professora Ela Wiecko tanto pelo processo de aprendizado durante o Mestrado e também pela criteriosa banca, onde me abriu os olhos para diversas questões e ponderações que pude amadurecer ao longo do tempo.
    Aos colegas da Universidade e a Secretaria, enfim, a Universidade de Brasília como um todo que me recebeu muito bem desde o primeiro segundo que eu ali me encontrei, foi como se o caminho natural das coisas tivesse acontecido (mesmo que nunca imaginado).
    Agradeço também ao Agente Prisional e hoje Bacharel em Direito João Carlos Berneira, meu ex-aluno, que abriu sua amizade, possibilitou a pesquisa no presídio, flexibilizou os acessos, foi um amigo para mim, e é um anjo para os presos, e eles assim o consideram.
    É claro que preciso agradecer aos não nominados e sem face aprisionados, que contaram suas dores e experiências, alguns já sabidamente falecidos, o que muito me entristece, vez que foi exaustivamente debatido na banca, sobre haver ou não essa omissão e negligência, presença ou não do Estado, autoridades suprimindo seu devido fazer.
    Parece, pois, que a morte dos aprisionados, um deles por tratamento de saúde, mais do que corrobora e afirma tudo que se declara no livro, pelo pior dos motivos.
    Infelizmente não é um Livro/Dissertação de boas novas, de esperança, ela fala de dor, de espinhos, de uma situação que não se renova.
    A única gota de esperança que podemos traçar é a reivindicação dos presos captada pelas teorias críticas.É a leitura feita nesse trabalho.
    Esse obra procura abraçar o grito do excluído através do Direito Achado na Rua, o Pluralismo Jurídico e a Teoria Crítica dos Direitos Humanos.
    É como se nós teóricos críticos do Direito pudéssemos dar uma resposta a esses aprisionados no sentido de que eles estão acobertados por um grande grupo teórico de pensadores humanistas que se preocupam com as questões por eles sofridas.
    A partir do caso prático, das entrevistas dos presos e seus discursos, procurei construir conexões, necessariamente realizando as distinções teóricas. explicitando onde havia no discurso e na reivindicação dos apenados, confluência com a teoria pluralista na matriz de Boaventura, Wolkmer, Roberto Lyra, José Geraldo e Joaquin Herrera.
    Creio que dessa modesta construção teórica, fica uma possibilidade de outros trabalhos acerca do sistema prisional a partir da matriz das denominadas "teorias pluralistas", foi essa a grande pretensão.
    Por outro lado, aos aprisionados, como sempre explicitei antes das entrevistas, tiveram suas vozes repercutidos pelo Brasil, escutadas por diversos lugares, em uma renomada faculdade de Direito, realmente creio que foi isso que lhes deu "raiva" para desabafarem.

    Muito obrigado Professor José Geraldo, não tenho palavras para lhe agradecer.

    Que novos desafios surjam à frente.

    Eduardo Xavier Lemos.

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