Autores: ENZO BELLO e RENE JOSÉ KELLER (organizadores)
RIO DE JANEIRO: EDITORA LUMEN JURIS, 2018, pp.
José Geraldo de Sousa Junior
Professor da Faculdade de Direito e ex-Reitor da UnB (2008-2012);
Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
Ao final do ano de 2017, a
concessão do Prêmio Capes de Teses trouxe duas novidades. A primeira, a outorga
do Grande Prêmio CAPES, Prêmio Aurélio Buarque de
Holanda, nas áreas de Ciências Humanas, Linguística, Letras e Artes e Ciências
Sociais Aplicadas e Multidisciplinar (Ensino), concedido pela primeira vez a
uma tese em Direito, neste caso, a Amanda Costa Travincas, da PUC-RS, sob
orientação de Ingo Sarlet, com o
trabalho A tutela jurídica da liberdade acadêmica no Brasil: a
liberdade de ensinar e seus limites. Participei como membro da Comissão
desse Prêmio, e posso dizer que a sua singularidade, para além do mérito
próprio da autoria, exibe a preocupação de marcar no tema, a penumbra
conjuntural que tem dado ensejo a um certo obscurantismo epistemológico, pondo
em risco a liberdade de cátedra e o espaço plural acadêmico no qual se
desenvolve histórica e politicamente, o necessário pensamento
crítico-reflexivo.
A outra novidade foi descobrir em
áreas cuja designação não revela de
imediato a complexidade de seus conteúdos, e poder encontrar, na área de
Arquitetura, já precedida de premiação originária, a tese de Adriana
Nogueira Vieira Lima, “Do Direito Autoconstruído ao Direito à Cidade:
porosidades, conflitos e insurgências em Saramandaia”, defendida no Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2016, sob a orientação da Professora Ana Fernandes.
Impedido de deliberar, por ter participado como
examinador tanto da banca de qualificação quanto da de defesa da tese, neste
último estágio compartilhando argumentos com uma banca multidisciplinar, na
qual esteve presente Raquel Rolnik, pude aquilatar no debate no seio da
Comissão de escolha do Grande Prêmio, o reconhecimento à qualidade da autoria e
à atualidade do tema, que associa de modo muito qualificado, o diálogo entre o
urbanismo e luta social por direitos, tal como revela o bem elaborado resumo.
A tese, diz o seu resumo, “busca analisar a produção
de direitos urbanos pelos sujeitos coletivos de direito em um contexto
assimétrico de acesso à cidade. Para isso, adota a teoria da pluralidade
jurídica como instrumental analítico. Parte-se do pressuposto de que o processo
instituinte de direitos urbanos é interescalar e envolve complexas fontes de
legitimação que têm na sua base relações de conflito, reciprocidade e
autonomia. A pesquisa, que adota uma perspectiva interdisciplinar, foi desenvolvida
com base no trabalho de campo realizado no Bairro de Saramandaia, localizado em
Salvador, Bahia, Brasil. A etnografia foi eleita como método privilegiado de
apreensão da realidade. Essa opção refletiu-se nas relações travadas em campo
construídas através de interações e diálogos. Os pressupostos da pesquisa foram
analisados através de três eixos que se interconectam: os direitos
autoconstruídos pelos moradores face à ausência do Estado na prestação de
serviços urbanos; constituição de direitos urbanos através de relações ambíguas
com o Estado; e a (des)construção de direitos urbanos: insurgências, conflitos
e disputas pelo espaço urbano. A pesquisa revelou que os direitos urbanos
autoconstruídos encontram na necessidade de morar o seu principal parâmetro de
legitimação social, emergindo daí as características do que denominamos Direito
Autoconstruído: flexibilidade, reciprocidade e atrelamento entre forma e
substância. Ficou evidenciado ainda que o Direito Autoconstruído ganha força
nos processos de interação social, levando os sujeitos coletivos de direito a
participarem da construção de um projeto político de transformação social que
repercute no modo como ocorre a interação entre as escalas de juridicidades. Os
resultados apontam também que as relações de porosidade entre as escalas de
juridicidade são marcadas por conflitos, transgressões e permeabilidades e se
nutrem das táticas potencialmente insurgentes praticadas pelos moradores. A
partir dessa constatação, verificou-se que essas características se comportam
de forma diferenciada em Saramandaia a depender do momento e do espaço do
Bairro em que ocorrem, predominando relações de conflitos nas fronteiras e
limites entre o Bairro e a Cidade. As análises evidenciaram a necessidade do
fortalecimento de uma visão plural e democrática do Direito que contribua para
o fortalecimento dos sujeitos coletivos e sua capacidade infindável de inventar
novos direitos e caminhar em direção ao Direito à Cidade”.
A mim não se revelou tão só uma expressão atualizada
de um tema com o qual venho me envolvendo desde os começos dos anos 1980
(“Fundamentação Teórica do Direito de Moradia”, in Direito & Avesso.
Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Ano I, n. 2, 1982), mas a constatação,
primeiro incluída na pesquisa pioneira (Joaquim Falcão, Invasões Urbanas:
Conflitos de Direitos de Propriedade)), organizada a partir da Fundação Joaquim
Nabuco, quando então já se identificavam as estratégias sociais de acesso à
terra urbana traduzidas em demandas às institucionalidades e ao direito
positivo legislado e exegeticamente adjudicado, na forma do discurso de
legitimidade de um direito justo contra o formalismo de enquadramento dessa
matéria no direito civil, no direito processual, no direito administrativo, no
direito constitucional e até no direito internacional dos direitos humanos que,
ao impulso dos novos movimentos sociais e de direitos achados na rua,
insurgentes, abrindo ensejo à constituição de novos campos – o direito
urbanístico, de novas formas de reconhecimento cogente em declarações (Habitat)
e de um constitucionalismo achado na rua (Silva Junior, Gladstone Leonel da e
Sousa Junior, José Geraldo de. O Constitucionalismo achado na rua – uma
proposta de decolonização do Direito. Rev. Direito e Práxis., Rio de Janeiro,
Vol. 08, N.4, 2017, p. 2882-2902).
Os anos seguintes foram pródigos na construção de um
campo demarcado pela construção do chamado direito à cidade, num percurso de
formulação de muitos instrumentos técnicos, jurídicos, políticos,
institucionais demarcado pela organização do Instituto Pólis em São Paulo e sua
importante revista de estudos em que cuja organização muitas referências
contribuíram para o adensamento desse campo – Ana Amélia Silva, Raquel Rolnik,
Nelson Saule Jr, Emília Maricato – servindo à metodologias de pesquisa, de
formulação de políticas públicas e de modos de governar, de organizar
assessorias jurídicas populares (lembrando
aqui o exercício genético e político dos Alfonsins – Jacques e Betânia
-, culminando com o desenho que a Constituição de 1988 recepcionou, acolhendo
as formulações dos movimentos sociais difundidos pelo país.
Encontro na abordagem
que desenvolvi em Prefácio para o Atlas
sobre o Direito de Morar em Salvador(Elizabeth Santos, coordenação geral et
al., Salvador: UFBA, Escola de Administração, CIAGS: Faculdade 2 de Julho,
2012), a condição ontológica a que já
me referi, no campo do direito, para responder à tarefa de instrumentalizar as
organizações populares para a criação de novos direitos e de novos instrumentos
jurídicos de intervenção, num quadro de pluralismo jurídico e de interpelação
ao sistema de justiça para abrir-se a outros modos de consideração do Direito
(Fundamentação Teórica do Direito de
Moradia, Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Editora
Nair, ano I, n. 2, Brasília, 1982; Um Direito Achado na Rua: o direito de
morar, Introdução Crítica ao Direito, Série O Direito Achado na Rua, vol. 1,
Brasília, Editora UnB, 1987; com Alayde
Sant’Anna, O Direito à Moradia, Revista Humanidades, Ano IV, n. 15, Brasília,
Editora UnB, 1987; com Alexandre Bernardino Costa, orgs., Direito à Memória e à
Moradia. Realização de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade
do Acampamento da Telebrasília, Universidade de Brasília/Faculdade de Direito,
Ministério da Justiça/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Brasília,
1998).
Elas dão base, seja
enquanto processo para impulsionar a exigência de função social que a
propriedade deve realizar, seja para resignificar a semântica das lutas sociais
por acesso à própria propriedade, descriminalizando o esbulho por meio da
recusa a se deixar tipificar invasor e politizando o acesso com a retórica da
ocupação, desde que atendendo à promessa constitucional de realizar reforma
agrária e reforma urbana, tal como referiu referiu Ana Amélia Silva,
aludindo à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática de direito,
tanto em termos teóricos quanto da criação de novas institucionalidades”(Cidadania,
Conflitos e Agendas Sociais: das favelas urbanizadas aos fóruns internacionais,
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da USP, São Paulo,
1996), consoante ao que indicou, nesse passo,
Eder Sader, quando este aponta para o protagonismo instituinte de
espaços sociais instaurados pelos movimentos sociais com capacidade para
constituir direitos em decorrência de processos sociais novos que passam a
desenvolver (Quando Novos Personagens Entraram em Cena, Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1995).
Trata-se de não se
perder o impulso dialógico que o jurídico pode vir a conduzir, para que, lembra
J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Editora
Almedina, Coimbra, 1998), não reste o direito “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e de seu conformismo
político” e, deste modo, incapaz de abrir-se a outros modos de compreender
as regras jurídicas e de alargar “o olhar
vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio
político-democrático materialmente legitimado”.
É desse modo que
Adriana Lima em sua tese premiada pela Capes, fala de um “direito achado nos
becos de Saramandaia em Salvador”, para inferir a luta pela cidade, a partir de
incursões singelas que revelam o protagonismo cotidiano para inserir no social
novas juridicidades. Aqui é “o direito de laje”, agora positivado e enfim
adjudicado a partir de novas decisões judiciais abertas “à exigência do justo,
inspiradas em teorias de sociedade e de justiça”. No caso, registre-se recente
decisão do judiciário pernambucano, na qual o magistrado constata que casa
construída na superfície superior à do pai da autora da ação, carrega a
pretensão de aquisição da propriedade e se coaduna ao direito de laje, previsto
no art. 1.510-A do Código Civil,
incluído pela Lei n. 13.465/2017,
que dispõe: “O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície
superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha
unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo”.
Para
o magistrado Rafael de Menezes, autor da sentença pioneira nesse
reconhecimento, é “óbvio que o ideal na sociedade seria todos terem suas casas
separadas e registradas, diante da importância da habitação para a dignidade do
cidadão. Mas em face do déficit habitacional que existe no país, o legislador
acertou em adaptar o direito a uma realidade social. A sociedade cria o fato
pela necessidade, e cabe ao direito regulamentar em seguida. O direito é
testemunha das transformações sociais, ele regula o que já existe. A sociedade
precisa ter o protagonismo sobre o Estado, não o inverso”.
O livro que ora prefacio apresenta-se sob a forma de
um "Curso de Direito à Cidade: Teoria e Prática" e faz parte da
“Coleção Crítica do Direito: experiências jurídicas e sociais”,
coordenada
por Enzo Bello e Ricardo Nery Falbo, e veiculada desde 2016 pela Editora Lumen Juris,
selo no qual também tenho editado alguns de meus trabalhos (O Direito Achado na
Rua: Concepção e Prática, Coleção Direito Vivo, 2015)
Na perspectiva de seus organizadores, busca-se “suprir
uma lacuna editorial, condensando temas e estudos que por vezes não passam por
um processo de sistematização. O intento é oferecer aos leitores, dos mais
variados níveis e áreas de formação, em linguagem didática e acessível, um
curso que tenha por premissa o exame do Direito à Cidade sob a perspectiva
crítica”.
Organizado por Enzo Bello
e Rene José Keller, eles próprios também
autores, o livro reúne um plantel expressivo de pesquisadores, altamente
qualificados, em recorte multi e interdisciplinar, titulados, atuantes em
ambientes plurais acadêmicos e funcionais, com reflexão acumulada e combinando
percursos de veteranos do tema e o entusiasmo de novos caminhantes: Alex
Ferreira Magalhães, Alexandre
Fabiano Mendes, Betânia
Alfonsin, Bruno José da Cruz
Oliveira, Daniel Mendes Mesquita
de Sousa, Fernanda Frizzo Bragato, Francine Helfreich Coutinho dos Santos,
Gilberto Bercovici, Jan Carlos da Silva, Karina Macedo Fernandes, Marcela
Münch, Maria Lúcia de Pontes, Mariana Dias Ribeiro, Rodrigo Oliveira Salgado e
Rudrigo Rafael Souza e Silva.
Em aproximações que são
mediadas pela Ciência Política, Economia Política, Serviço Social, Sociologia
Urbana, Arquitetura e Urbanismo, Geografia e Direito, as leituras trazidas pelo
livro, seguindo um padrão lógico-conceitual comum à construção de cada unidade
(capítulos), a obra abrange temas que tratam do
DIREITO À CIDADE NO VIÉS INTERDISCIPLINAR (Conceito, questões,
problemas, contradições, possibilidades), suas REGULAÇÕES e os deafios da
PRÁTICA (Envolvendo estudos de casos), que interpelam o Direito Urbanístico na
sua exigência de contínua atualização.
Nos
tempos sombrios que estamos atravessando, marcados por surtos de
desdemocratização e de desconstitucionalização, notadamente no bloqueio ao processo
recente de construção social dos direitos, “tempos de cerceamento
dos direitos e de tentativas de restrição da sua garantia pela via estatal como
forma de favorecer os agentes do mercado, parece oportuno refletir acerca das problemáticas
que envolvem a cidade”, dizem os organizadores, a obra assume fortemente a
função de peça de resistência, Ela exibe e “projeta grande parte das
contradições do modo de produção capitalista, expondo as desigualdades sociais
ínsitas a este modo de produção da vida
social
e sistema econômico”, prestando-se ao enfibramento das consciências que se
formam nas lutas por reconhecimento de dignidade e de direitos e que precisam
se armar para não recuar das conquistas da cidadania.
Essa é uma das chaves para orientar
a leitura deste livro, porque em tempos de golpe, é importante resistir e
esgrimir o requisito da legitimidade para aferir reconhecimento aos sujeitos
que se colocam no protagonismo da política, tal como venho insistindo desde
2016 (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Resistência ao Golpe de 2016: Contra a
Reforma da Previdência. In GIORGI, Fernanda et al, orgs, O Golpe de 2016 e a
Reforma da Previdência. Narrativas de Resistência.Bauru: Projeto Editorial
Praxis/Cabnal6Editora, 2017, págs, 242-246); SOUSA JUNIOR, José Geraldo de.
Direitos não são quantidades, são relações (Entrevista), IHU OnLine, Revista do
Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, n.
494/ano XV, 2016, págs. 64-72).
Uma outra chave possível é, talvez,
contribuir para designar as condições pedagógicas para constituir cidades
educadoras (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Cidades Educadoras. Revista do
SINDJUS-Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público
da União no DF, Brasília: ano XVII, n. 59,
2009, pág. 4), cidades que partam da constatação de que elas tem um
governo eleito democraticamente e seu dirigentes se empenham em incentivar
projetos de educação para a cidadania. Cidade nas quais as pessoas que nelas
vivem acabem conhecendo melhor as situações que fundamentam as decisões
relativas à sua sociabilidade e vivenciem de forma efetiva a experiência
democrática. Cidades que permitam exercitar experiências de sociabilidade,
desde as práticas de orçamento participativo, às de educação para a democracia,
direitos humanos, cultura de paz, mobilizando redes e instituições que insiram
nas regulamentações pactuadas e nas posturas, a lógica da inclusão e da
solidariedade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário