quarta-feira, 10 de novembro de 2021

 

Semeando Resistência: I Encontro Nacional de Mulheres do MST

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

Raíssa Vaz Mendes. Semeando Resistência: I Encontro Nacional de Mulheres do MST. Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinar da Universidade de Brasília como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de mestra em Direitos Humanos e Cidadania.  Brasília, 2021, 122 f.

 

            Perante a banca examinadora formada pelos professores Talita Tatiana Dias Rampin, da Faculdade de Direito da UnB e Antonio Sérgio Escrivão Filho, membro externo (IESB), Raíssa Vaz Mendes apresentou, defendeu e teve seu trabalho aprovado, qualificando-se como mestre na área de direitos humanos e cidadania. Para mim um motivo de satisfação por ter orientado o trabalho.

            A dissertação, expõe o seu resumo, resulta de trabalho que “foi realizado através de pesquisa etnográfica, durante o I Encontro Nacional de Mulheres do MST, ocorrido em março de 2020. Visa contribuir para o entendimento do encontro realizado e estabelecer uma ligação entre as teorias dos direitos humanos contrahegemônicos, o sujeito Sem Terra e os sujeitos coletivos, na demanda de direitos sociais e coletivos na construção de iniciativas como a do encontro realizado. Procura também articular o feminismo camponês popular, vertente formulada pelas mulheres do campo, a um panorama histórico do movimento feminista brasileiro, a criação do setor de gênero do MST, sua apresentação de demandas e a construção do I Encontro de Mulheres do MST. Por fim, se propõe a iniciar uma discussão acerca da presença de negros e negras no campo e das mulheres negras dentro do MST”.

            A pesquisa realizada, com forte aproximação etnográfica, abordagem bem operacionalizada pela Autora que é tem formação em ciências políticas, guarda a vivacidade desse mergulho em campo, materializando, tal como a pesquisadora indica, “a escolha de um objeto de pesquisa, o MST e da opção em fazer uma etnografia comecei minhas idas a campo, após a minha qualificação.  Inicialmente tinha como tema falar sobre MST e o papel do movimento na luta contra a fome e contra a pobreza e como campo de pesquisa o assentamento Cunha, localizado em Brazlândia-DF.  Visitei o assentamento, conheci os espaços de cultivo, as casas e alguns dos moradores do assentamento. Conversando com os meus interlocutores e interlocutoras do assentamento Cunha me apareceram inquietações e possíveis questões de pesquisa”.

            Essa vivacidade que se encarna na atitude e no enfoque epistemológico do trabalho, está registrada nas imagens da sessão de defesa, guardadas no acervo do Canal Youtube do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, oferecido neste Lido para Você em complemento à resenha nele contida:   https://www.youtube.com/watch?v=KgK4jDGdcb8.

            Mas ela pode ser intuída desde os tópicos enunciados no Sumário do trabalho:

            INTRODUÇÃO

1.1       Chegada ao campo

            1.2       Metodologia

1.3       Referencial teórico

2          A CONSPIRAÇÃO DAS SEMENTES CRIOULAS – I ENCONTRO NACIONAL DE MULHERES SEM TERRA

2.1    Fundação do MST

2.1       Organização do MST

2.2       As sementes crioulas e a conspiração das sementes

2.3    Cartilha de orientações políticas, orientações práticas e linhas políticas do

Encontro

2.4       As participantes

2.5       A mística e a práxis do MST

2.6       Espaço do encontro

            2.6.1    Decoração do encontro

2.6.2    Cartas

2.6.3    Amostra da Reforma Agrária Popular

2.7       Primeiro dia do encontro

2.8       Segundo dia do encontro

2.9       A formação política do MST

2.10     Terceiro dia do encontro

2.10.1 Cochicho

2.10.2 Oficinas de encantarias e Saber Fazer, Trocas de Experiências e Balaio dos

Saberes

2.10.3 Ato político com aliadas e aliados

2.11    Marcha de 08 de março, a conspiração das sementes junta sementes do campo e da cidade

2.12 Último dia de encontro

2.13     Protesto no Ministério da Agricultura

3          O TAMANHO DA NOSSA SOLIDÃO

3.1       Direitos humanos contra-hegemônicos e teorias críticas dos direitos humanos

3.2       O não-ser

3.3       Sujeitos coletivos de direito

3.4       Da ocupação da terra para a defesa dos direitos humanos

3.5       Reforma Agrária

3.5.1    Reforma Agrária Popular – a proposta atual do MST

4          ESTAMOS TODAS DESPERTAS!

4.1       Feminismo no Brasil

4.2       Feminismo Camponês Popular

4.3       Feminismo Camponês Popular no MST

4.4       Setor de gênero do MST

4.5       LGBTs no MST

4.6       O Caderno de Formação – Setor de Gênero: A conspiração dos gêneros: elementos para o trabalho de base

4.6.1    Linha política central do setor de gênero do MST

4.7       Princípios e dimensões do MST e do setor de gênero (Caderno Setor de Gênero, (2017)

4.7.1    Dimensão política organizativa

4.7.2    Dimensão cultural

4.7.3    Dimensão econômica

4.7.4    Dimensão subjetiva

5          ERAM RANCORES ABISSAIS

5.1       A questão da terra no período escravaista

5.2       Brecha camponesa

5.3       Primeira Lei de Terras

5.4       A questão do território

5.5       Campesinato negro

5.6       Mulheres Negras e negritude no MST

6          CONSIDERAÇÕESFINAIS

7          REFERÊNCIAS

 

            O estudo de Raíssa, em apoiar-se teórica e politicamente nos pressupostos de O Direito Achado na Rua, guarda lealdade aos fundamentos de sua base nativa de apoio interpretativo, fundada no humanismo dialético de Roberto Lyra Filho, ensaiando e bem num arranjo de completude os elementos designativos, que bem cairiam no arranjo social e teórico sugerido por O Direito Achado na Rua, a partir das experiências analisadas, para assim: 1) Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, na enunciação como direitos humanos; 2) Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) Enquadrar os dados (achados) derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, Revista Humanidades, vol. 8, número 4 (30). Brasília: Editora UnB, 1992).

            Assim que é destacadamente relevante tomar o MST como tema, não fosse essa articulação social a grande expressão da força dos movimentos sociais, em nosso tempo. Celso Furtado havia designado o MST como o mais importante movimento social do mundo no século XX. E sua importância não se reduziu, tanto que acaba de receber nesse 10/9), na Espanha, um prêmio em reconhecimento pela defesa dos direitos humanos. O prêmio “Acampa – Pola Paz e Dereito a Refuxio”. O MST foi o mais votado na categoria internacional em um júri virtual, com 22,73% das apoios. O prêmio é um reconhecimento de “que o modelo de desenvolvimento adotado pelo sistema capitalista tem colocado o mundo em colapso, mas que o MST se coloca como alternativa e esperança”, sobretudo no contexto de uma pandemia que “aumentou ainda mais a ação do movimento em defesa dos direitos humanos, tanto pela reforma agrária e produção de alimentos saudáveis, mas também porque [o MST] está preocupado com a natureza, com as relações sociais, com a construção da democracia, com a dignidade das pessoas e a solidariedade”, assim se expressaram os seus dirigentes.

            Na acepção conceitual de O Direito Achado na Rua, ainda quando o recorte da pesquisa se fixe na ação das mulheres (I Encontro Nacional de Mulheres do MST), o seu escopo é o de “compreender como as teorias emancipatórias dos dos direitos humanos e os conceitos de sujeitos coletivos e sujeito Sem Terra levaram à construção da luta por direitos sociais do movimento” (p. 18).

             Nessa perspectiva, o centro da atenção da Autora, na Dissertação, é focalizar o I Encontro Nacional das Mulheres do MST, de modo a acentuar o que nela se representa como “conspiração das sementes, essa conspiração [que] germina sementes de resistência””. Vale dizer:

A semente da resistência é semeada no coletivo, nos encontros, nos grupos de estudo e trocas de ideias, na autoformação das mulheres. A semente da resistência é semeada no momento que elas se percebem como mulheres e trabalhadoras em uma sociedade patriarcal e racista e que juntas elas podem transpor barreiras, reivindicar direitos, agir como sujeitos de uma coletividade. São sementes, que quando sozinhas tem um tamanho pequeno, um volume quase insignificante, mas quando juntas o peso é enorme, ocupam um grande espaço e se encontram prontas para semear e resistir onde estiverem. 

O encontro das sementes-alimento e das sementes-mulheres inaugurou o I Encontro de Mulheres do MST. Na chegada das comitivas de todas as regiões do país cada comitiva trazia alimentos plantados em seu território a partir das sementes-alimento: arroz, feijão, couve, abóbora, chuchu, banana, todas as hortaliças, frutas e leguminosas, todas com cultivo orgânico, abasteceram as três cozinhas montadas para o encontro. Como é comum nos encontros e reuniões do MST, parte dos alimentos cultivados foi colocado para enfeitar o palco e parte foi trazido para a venda no espaço da Amostra de produtos da Reforma Agrária. 

Em convergência com outras pesquisadoras vinculadas ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, a Dissertação põe em relevo essa categoria central de seu fundamento teórico, o sujeito coletivo de direito, conforme item 3,3 (p. 57-59), para designar, em diálogo com os autores do Coletivo, a estratégia de ação (ocupação) como modo de realização de direitos.

Nesse diálogo, a interlocução mais forte são com aqueles autores, antes autoras, que percorreram a mesma senda, também pela afirmação da subjetividade ativa do feminismo, notadamente, do feminismo camponês popular. Assim, para acentuar as referências, o excelente trabalho de Ísis Táboas. De fato, em É LUTA!  Feminismo Camponês Popular e Enfrentamento à Violência – mais uma obra de referência da Editora Lumen Juris, já em segunda edição, Ísis retoma o tema do feminismo camponês para, segundo suas próprias palavras, transformar “o relato de experiências concretas de luta das coordenadoras em categorias analíticas sobre o feminismo camponês popular e o enfrentamento à violência doméstica e familiar no campo”. Isso, conforme ela, com vistas a promover “um processo de interlocução entre a academia e o movimento social, buscando colocar as ferramentas acadêmico-científicas a serviço do povo

Presente no livro, em registro de sua 4a. Capa, a certificação dessa pertinência no comentário de Rosângela Piovisani Cordeiro, membra da Direção Nacional do Movimento de Mulheres Camponesas. De fato ela afirma ter Ísis Menezes Taboas traduzido “com delicadeza, serenidade e fidelidade a vida cotidiana das mulheres camponesas, ao analisar com atenção as elaborações do Feminismo Camponês Popular, trazendo o recorte da luta de classes e a ousadia na construção e organicidade do Movimento das Mulheres Camponesas na luta pelo socialismo como projeto político.” (cf. http://estadodedireito.com.br/e-luta-feminismo-campones-popular-e-enfrentamento-violencia/).

Rosângela é também autora citada no trabalho de Raíssa, agora numa inscrição que a habilita como voz afirmativa do tema no cabedal do próprio O Direito Achado na Rua. Basta conferir, a propósito, em co-autoria com Iridiani Graciele SeibertFeminismo Camponês Popular: Uma Afirmação Histórica na Luta por Direitos das Mulheres Trabalhadoras do Campo, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al, org., O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021.

Toda a boa bibliografia organizada pela Autora lhe dá lastro para articular os achados da pesquisa e sustentar a conclusão que ela apresenta:

Os camponeses latino-americanos que são fruto de junção entre indígenas, negros, negras e europeus, a partir do seu entendimento enquanto sujeitos coletivos passaram a se reunir e compartilhar as identidades camponesa e latino-americana para desencadear processos de luta emancipatória em todo o continente. Diferentes  sujeitos coletivos de direito, como o MST, a Via Campesina, o MMA, outras associações de camponeses, sindicatos, quilombos, comunidades tradicionais e grupos de trabalhadores e trabalhadoras de diversos países em toda a América latina têm se organizado a partir da centralidade da luta contra as estruturas coloniais, racistas e patriarcais em uma luta conjunta contra as opressões vivenciadas, contra a austeridade e o neoliberalismo crescentes, contra a perda dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras e em defesa dos direitos sociais e coletivos. Um desses pontos de convergência da luta é o Feminismo camponês popular, articulado pelo MMC, Via campesina e MST (p. 115)

            E, na especificidade do feminismo camponês popular, reafirmar algo que, de minha parte já venho constatando há algum tempo. Algo presente nas lutas sociais que distingue a mulher numa constatação a partir da qual, a meu ver, já pode se generalizar o empoderamento que a participação nessas lutas confere ao feminismo (cf. http://estadodedireito.com.br/atlas-sobre-o-direito-de-morar-em-salvador/).

            Essa constação se depreende das conclusões de Raíssa Vaz Mendes, sobre o protagonismo feminino camponês, à luz de seu estudo de caso:

O I Encontro de Nacional de Mulheres do MST e o feminismo camponês demonstram que nem a teoria, nem a prática do pensamento ocidental/universal/patriarcal/racista/colonial são suficientes para explicar e para alterar a nossa realidade. É necessário descolonizar nossas epistemológicas, valorizar os saberes populares e pensar a partir do Sul, buscando a interseccionalidade entre classe, raça/etnia e gênero para compreender as nossas clivagens sociais e combater a nossa imensa desigualdade.

 A consciência de que existe uma estrutura que nos oprime, a busca por entender e modificar essa estrutura social a partir da luta dos sujeitos coletivos, das mulheres e dos homens trabalhadores, dos negros e negras, dos indígenas, LGBTs e outras minorias são as lições que o MST, os Sem Terra e principalmente as mulheres do MST nos convidam a pensar. Da rua, do campo, da cerca rompida e com os pés no chão o MST conduz a sua marcha para a emancipação e para a mudança da estrutural social patriarcal/colonial/classista a partir de sua práxis militante (p. 118).

Em meu prefácio à obra que acima referida – http://estadodedireito.com.br/atlas-sobre-o-direito-de-morar-em-salvador/ – faço um registro que bem ilustra esse protagonismo, a partir de um depoimento que recolhi: “Mesmo considerando que muitas mulheres entram no Movimento de Luta pela Moradia levadas apenas pela necessidade da casa, na atuação diária, elas fazem política e se percebem como sujeitos políticos”. Essa condição tem sido uma referência corrente diante do protagonismo político da mulher. Em Brasília, a partir de um curso de extensão desenvolvimento pela UnB/Faculdade de Direito para a capacitação de mulheres em gênero e direitos humanos, como “promotoras legais populares” (Introdução Crítica ao Direito das Mulheres, Série O Direito Achado na Rua, vol. 5, CEAD/UnB, Brasília, 2012), percebe-se que tratar dos direitos das mulheres é também tratar dos direitos dos homens, e dos direitos em geral, pois quando as mulheres avançam na sua pauta por libertação por conseqüência a sociedade toda em conjunto avança no horizonte da igualdade e, portanto, da justiça.

Por isso que Raíssa Vaz Mendes pode dizer ao final de seu trabalho: “Como me ensinaram as mulheres do MST, ‘Pisa ligeiro, pisa ligeiro. Quem não pode com a formiga, não assanha o formigueiro’, as mulheres camponesas assim como as formigas estão se unindo e descobrindo a força do seu formigueiro (p. 118).

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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