quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

 

Proteção popular em direitos humanos: Sentidos, limites e potencialidades

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Paulo César Carbonari. Proteção popular em direitos humanos : Sentidos, limites e potencialidades [recurso eletrônico]/ Paulo César Carbonari. – Passo Fundo: Saluz, 2023. 271 p. ; 1,8 MB; PDF. Editado também como livro impresso em 2023.

               

 

A proposta da proteção popular em direitos humanos está em construção como prática própria das organizações que atuam em direitos humanos há muito. Ela também está em construção como proposta teórica, contando com vários exercícios de sistematização. Este livro é um deles. Nasce nos movimentos e organizações populares de direitos humanos, os mais diversos, dos que concentram sua atuação nos territórios locais aos que incidem em espaços nacionais e internacionais. Nutre-se das experiências, dos saberes de experiência feitos, dos debates e embates ali realizados. Este livro oferece subsídios aos militantes e engajados que se empenham na construção coletiva. Essa é a descrição do livro na página da Editora.

A obra foi editada no contexto do projeto sementes de proteção, uma iniciativa conjunta para o desenvolvimento de ações que tem por finalidade o fortalecimento das organizações da sociedade civil que tem atuação em direitos humanos nos territórios. Ações de formação, de comunicação, de organização, de mobilização e de incidência se somarão ao desenvolvimento de ações de proteção popular de militantes e coletivos dos quais são parte.

Esse projeto, dos mais consistentes desenvolvidos em articulação da sociedade civil, tem por objetivos: contribuir com o apoio a defensores/as dos direitos humanos e as organizações da sociedade civil que atuam em questões associadas a violações dos direitos humanos e ataques contra liberdades fundamentais no Brasil; fortalecer as capacidades de defesa, promoção e proteção dos direitos dos/as defensores/as de direitos humanos de movimentos sociais e organizações da sociedade civil em 21 Estados das cinco regiões brasileiras.

Junto com o livro, que me foi entregue pessoalmente por Paulo César, com uma fraterna dedicatória, o autor me brindou, cadernos da Série Proteção Popular, subsídios do Projeto Sementes de Proteção – Projeto Defendendo Vidas, um material pedagógico no melhor fundamento freireano de educação popular (educação em e para os direitos humanos). Material, aliás, compartilhável, conforme se pode ter acesso pelo endereço: https://sementesdeprotecao.org.br/subsidios-para-analise-desafios-a-protecao-popular-de-defensores-e-defensoras-de-direitos-humanos/.

Conheço e convivo com Carbonari há décadas. Notadamente nos espaços de interlocução do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) do qual é um dos fundadores e ao tempo em que exerceu docência a Direção Pedagógica do Instituto Berthier (IFIBE), Passo Fundo, RS. Também no Rio Grande do Sul, nos eventos do Conselho Estadual de Direitos Humanos, especialmente quando o coordenou.

Basta uma mirada nas informações do seu Lattes para aferir suas credenciais: “Graduado em Filosofia no Instituto Berthier (IFIBE) com reconhecimento pela Universidade de Passo Fundo (1993). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (2000). Doutor em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) (2015). Foi professor e Diretor Pedagógico do Instituto Berthier (IFIBE), Passo Fundo, RS. Professor convidado em cursos de Especialização em Direitos Humanos na Unocapeco, UCS, PUCRS e Unisinos, além de convidado para cursos e atividades a UFRGS, UPF, URI, UFFS e outras instituições. Membro da Coordenação Nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), da coordenação da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos (ReBEDH), da Associação Brasileira de Direitos Humanos, Pesquisa e Pos-Graduação (ANDhEP), educador social na Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e do Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Ética e Filosofia Política. Autor de artigos, livros e capítulos de livros em vários temas de filosofia, ética e direitos humanos. Atua principalmente nos seguintes temas: responsabilidade ética, direitos humanos, organização social, participação popular”.

Vou ao livro, com Apresentação, a cargo do Autor e Prefácio assinado pela caríssima Joisiane Sanches Gamba, da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), o seu conteúdo forma o seguinte sumário:

Parte I

Proteção em direitos humanos: ensaio para sugerir uma proposta libertadora e militante

Defensores/as populares de direitos humanos: agentes e sujeitos da proteção popular

A condição humana na proteção popular: ensaios para subsidiar práticas protetivas

Parte II

Espiritualidade e proteção popular: abordagem sobre sensibilidade e mística

Empotenciamento para a proteção popular: prática fundamental para o fortalecimento popular

A dialogicidade na proteção popular: ensaio sobre limites e possibilidades em Paulo Freire

Parte III

Campos práticos de ação da proteção popular: reflexões para seguir em construção

Atuação em direitos humanos: ensaiando pistas para orientar práticas em direitos humanos

Dinâmica de ação na proteção popular: subsídios para atuação

Operacionalização da proteção popular: reflexões para orientar a prática de defensores/as de direitos humanos

Parte IV

Pedagogia da proteção: contra a “pedagogia da crueldade”

Pedagogia da proteção e educação em direitos humanos: bases éticas para uma proposta ecológica e popular

Pedagogia da proteção e educação popular em direitos humanos: bases freirianas para a ação educativa na proteção popular

Parte V

Proteção como prática coletiva: considerações gerais para colaborar ao debate

Proteção “três porquinhos”: uma reflexão inspirada no conto infantil

Proteção popular samaritana: um exercício de serviço ao “próximo”

Proteger quem cuida: o cuidado dos/as cuidadores/as

Bruno e Dom: presente, agora e sempre!

 

O próprio Autor expõe, na Apresentação os fundamentos, os enunciados e o modo de leitura da obra:

Os ensaios aqui recolhidos são fruto das reflexões feitas a caminho, na atuação; por isso, carregam as marcas da intensidade dos momentos, as características próprias da reflexão em ação, as insuficiências e as potencialidades destes processos. Têm o objetivo de subsidiar outras reflexões e ações, alimentar debates e, sobretudo, inspirar sua ampliação e superação crítica e criativa.

A proposta da proteção popular em direitos humanos está em construção com a prática própria das organizações que atuam em direitos humanos há muito. Ela também está em construção como proposta teórica, contando com vários exercícios de sistematização. Este é um deles. Nasce nos movimentos e organizações populares de direitos humanos, os mais diversos, dos que concentram sua atuação nos territórios locais aos que incidem em espaços nacionais e internacionais. Nutre-se das experiências, dos saberes de experiência feitos, dos debates e embates neles realizados. Ali encontra subsídios militantes e engajados que se oferecem à construção coletiva.

As elaborações aproveitam trabalhos feitos em outros momentos e construções novas; todas, porém, trabalhadas no enfoque e na busca dos sentidos, dos limites e das potencialidades da proteção popular. Sentidos porque interessa menos uma definição e mais uma construção processual performativa que se dá na práxis.

Limites porque é fundamental conhecer as situações que ainda precisam de qualificação e aprofundamento. Potencialidades para, sabendo do que de melhor se acumulou, dar passos a fim de que as práticas sejam encorajadas e fortalecidas.

Os textos podem ser lidos em sequência ou em separado, um a um. Por vezes, com temas retomados; em outras, recolocados; noutras, complementados. Estão organizados em grupos que compõem as partes da obra. São cinco partes. A primeira reúne textos que se ocupam particularmente dos sentidos da proteção popular. A segunda apresenta temas de aprofundamento da proteção popular.

A terceira trata de aspectos práticos, talvez até procedimentais para a efetivação da proteção popular. A quarta trata da pedagogia da proteção, aprofundando os aspectos educativos da ação protetiva popular. A quinta apresenta alguns temas ilustrativos e de aplicação da proposta protetiva popular.Os textos da primeira parte são três: Proteção em direitos humanos: ensaio para sugerir uma proposta libertadora e militante; Defensores/as populares de direitos humanos: agentes e sujeitos/as da proteção popular; A condição humana na proteção popular: ensaios para subsidiar práticas protetiva. Os textos tratam de desenhar um esboço de uma proposta de proteção em direitos humanos, de perfil dos/as sujeitos/as da proteção e enfoques de abordagem da condição humana para subsidiar práticas de proteção popular.

Os textos da segunda parte são três: Espiritualidade e proteção popular: abordagem sobre sensibilidade e mística; Empotenciamento para a proteção popular: prática fundamental para o fortalecimento popular; A dialogicidade na proteção popular: ensaio sobre limites e possibilidades em Paulo Freire. Os ensaios abordam três questões de fundo para a proteção popular, elementos determinantes para a qualificação da atuação protetiva.

Os textos da terceira parte são três: Campos práticos de ação da proteção popular: reflexões para seguir em construção; Atuação em direitos humanos: ensaiando pistas para a orientar práticas em direitos humanos; Dinâmica de ação na proteção popular: subsídios para atuação. Os textos estão dedicados à orientação prática da atuação protetiva popular e abordam os campos, uma concepção de atuação em direitos humanos e a dinâmica da ação protetiva.

Os textos da quarta parte são três: Pedagogia da proteção: contra a “pedagogia da crueldade”; Pedagogia da proteção e educação em direitos humanos: bases éticas para uma proposta ecológica e popular; Pedagogia da proteção e Educação Popular em direitos humanos: bases freirianas para a ação educativa na proteção popular. Os ensaios desenvolvem os sentidos da pedagogia da proteção, considerando aspectos diversos a serem tomados em conta nas práticas protetivas.

Os textos da quinta parte são cinco: Proteção como prática coletiva: considerações gerais para colaborar no debate; Proteção “três porquinhos”: uma reflexão inspirada no conto infantil; Proteção popular samaritana: um exercício de serviço ao “próximo”; Proteger quem cuida: o cuidado dos/as cuidadores/as e Bruno e Dom: presentes agora e sempre! Os ensaios aqui reunidos são mais sintéticos e agregam subsídios que dão plasticidade à proposta de proteção popular.

Estas contribuições estão disponíveis à crítica. Espera-se que alimentem o debate e os diálogos sobre a proteção popular em direitos humanos. Espera-se, igualmente, receber contribuições para seu aprimoramento; e, mais do que para isso, para o aperfeiçoamento da própria prática protetiva popular.

Operar é uma construção que se faz em processo e como dinâmica permanente. Temos ciência que, ao dizer uma palavra autêntica sobre o tema, também estamos, de alguma forma, em ação, alimentando a práxis.

Agradecimento a todas as organizações, movimentos, instituições, lutas e processos que nos permitiram aprender e a seguir aprendendo. Obrigado a cada uma e cada um que nos ajudou nesta empreitada que é não mais do que a expressão de uma tarefa cumprida, de um serviço feito à “causa” da dignidade humana.

 

O prefácio, conforme mencionei antes,  é assinado pela caríssima Joisiane Sanches Gamba, da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH). Diz ela:

A oportunidade de apresentar um livro sobre Proteção Popular e desenvolvido por Carbonari é um convite para revisitar como tudo começou há cerca de 13 anos, quando, desafiada a assumir, através da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), a coordenação do Programa Federal de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, resolvi buscar apoio no Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) para imprimirmos a marca dos direitos humanos na política pública de proteção. Desafio aceito, o processo foi desencadeado. Esse livro é a sistematização de uma prática de resistência, de ansiedade e de dor. Ultrapassamos o limite da política pública, voltamos no tempo, bebemos nas histórias de luta, revisitamos a proteção vivenciada em períodos onde muitos foram presos, torturados e mortos pelo simples fato de pensar diferente dos que estavam no poder, mas que também registrou muitas vidas salvas devido a estratégias de autoproteção, proteção recíproca e solidária, que este livro chama de proteção popular.

A sistematização desse conhecimento acumulado é construída por muitas mãos. Em si já seria um desafio, mas o autor foi além, imergiu na experiência coordenando um projeto nacional de proteção popular, o Sementes. É sobre essa experiência vivenciada por muitos e muitas que Carbonari escreve, de forma intensa. O livro se baseia em um processo que vai além das pesquisas bibliográficas, bebe na fonte, faz uma análise das experiências e aponta luzes para seu aperfeiçoamento.

A obra é atualíssima, se justifica pelo momento do Brasil, onde o ódio, a intolerância e a violência se sentiram autorizadas a agredir os direitos conquistados e aos que lutam pela garantia desses direitos. É um olhar na/da resistência e nas/das formas como os/as resistentes se protegem e protegem todos/as os/as envolvidos/as e a luta.

 

Nem preciso dar ênfase à urgência e à oportunidade do trabalho exposto a partir do livro. Em minha coluna O Direito Achado na Rua, publicada regularmente no Jornal Brasil Popular – https://www.brasilpopular.com/25a-hora-genocidio-declarado-agir-ou-omitir-se/ – faço referência à recente visita ao Brasil da subsecretária-geral das Nações Unidas e Assessora Especial para Prevenção do Genocídio Alice WairimuNderitu. Ainda que o escopo da visita de monitoramento derive de um mandato que objetiva coletar informações sobre graves violações de direitos humanos contra grupos étnicos e raciais discriminados que, se não forem evitadas ou interrompidas, podem levar a crimes de atrocidade (genocídio, crimes contra humanidade, crimes de guerra ou limpeza étnica), uma declaração importante feita pela Comissária em seu relatório, diga respeito a uma preocupação ativada pela constatação de reais ameaças a defensores de direitos humanos.

Retiro de declaração da subsecretária-geral, a ênfase a esse indicador crítico: “O discurso de ódio pode levar a discriminação, ódio, violência e, em seu extremo, crimes de atrocidade e deve ser abordado em alinhamento aos direitos humanos internacionais. Isso vale especialmente para o discurso de ódio dirigido contra os grupos protegidos que mencionei e outras populações em risco, por exemplo, defensores dos direitos humanos, líderes comunitários, mulheres, entre outros. Meu Escritório está pronto para fornecer apoio técnico ao governo, equipe nacional da ONU e outros atores relevantes no Brasil nesta área”.

Essa indicação, grave, reforça a importância do Projeto Sementes de Proteção, e do livro ora Lido para Você. E essa importância se destaca no excerto do prefácio de Josiane: “Esse livro é a sistematização de uma prática de resistência, de ansiedade e de dor. Ultrapassamos o limite da política pública, voltamos no tempo, bebemos nas histórias de luta, revisitamos a proteção vivenciada em períodos onde muitos foram presos, torturados e mortos pelo simples fato de pensar diferente dos que estavam no poder, mas que também registrou muitas vidas salvas devido a estratégias de autoproteção, proteção recíproca e solidária, que este livro chama de proteção popular”.

O livro vem fortalecer uma vertente crítica necessária de estudos e subsídios nesse tema. A exemplo do Guia prático de proteção à violência política para defensoras e defensores de direitos humanos / Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. — 1. ed. — Rio de Janeiro: Artigo 19. Justiça Global e Terra de Direitos: 2022. 55 p. Acesse o Guia em https://comiteddh.org.br/, uma realização Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. Organização da publicação Agnes Karoline de Farias Castro, Alane Luzia da Silva, Amara Hurtado, Anna Carolina Murata Galeb, Antonio Francisco de Lima Neto, Guacira Cesar de Oliveira, Maria Tranjan S. do Prado, Luciana Pivato e Tatiana Lima. Co-realização Artigo 19, Cfemea; Justiça Global e Terra de Direitos. Redação e Edição Textual Antonio Escrivão Filho. Consulte-se sobre esse trabalho a minha recensão em https://estadodedireito.com.br/guia-pratico-de-protecao-a-violencia-politica-para-defensoras-e-defensores-de-direitos-humanos/.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

 

Samuel Pinheiro Guimarães, morre um imprescindível. Um brasileiro que fez e faz a diferença


(*) Por José Geraldo de Sousa Junior, para o Jornal Brasil Popular


A notícia da morte, hoje, de Samuel Pinheiro Guimarães ao mesmo tempo que nos abala, também nos mobiliza. Morre um imprescindível.Um daqueles cuja estirpe, Bertolt Brecht definiu, são os homensque lutam toda a vida (Os que Lutam).

Os jornais, aliás, toda a mídia, já iniciaram o laudatório, justificável, que forma a biografia de um homem e de um servidor público (diplomata) notável. Num ensaio escrito no ano passado, “Samuel Pinheiro Guimarães e a negociação com os europeus”, a propósito de refletir hoje, sobre  “O acordo com a União Europeia/Mercosul [é] tão ruim para o Brasil como seria a Alca”, Paulo Nogueira Batista Jr, ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, do BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e outros países (https://www.brasildefato.com.br/2023/11/18/samuel-pinheiro-guimaraes-e-a-negociacao-com-os-europeus), põe em relevo a atuação de Samuel Pinheiro Guimarães, “um brasileiro que não pode ser esquecido”, destacado por seus serviços ao país, sempre sob a perspectiva de preservar os interesses nacionais, por convicção, conhecimento geo-político e discernimento sobre a complexa interpretação das relações internacionais.

Alguém que fez e faz a diferença. Em muitas atuações no campo profissional e que, com Celso Amorim, contribuiu para alçar o Brasil à posição de protagonismo que passou a exercer nesse ambiente sensível e arriscado.

Samuel morreu em Brasília nesta segunda-feira (29).Diplomata que entrou no serviço do Itamaraty já graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (atual UFRJ), expandiu a sua formação no âmbito do econômico (mestre em economia pela Universidade de Boston), conhecimentos que balizaram a sua qualificada atuação em estratégicas missões e funções no Ministério das Relações Exteriores e em outras áreas do Governo Federal.

Assim que, tendo sido secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores entre 2003 e 2009 foi designado Alto-Representante Geral do Mercosul para um mandato de três anos, tendo como funções a articulação política, formulação de propostas e representação das posições comuns do bloco, altamente relevante para a autonomia e desenvolvimento regionais (América Latina), num plano de exercício de soberania no hemisfério, somente ultrapassado em relevância pela atual conformação do modelos constituído pelos BRICS.

Intelectual altamente dotado, é possível encontrar os fundamentos para seus mais fortes posicionamentos em trabalhos que elaborou e que são chaves de leitura de sua forma de interpretar a realidade. Consulte-se, por exemplo, o seu “Nação, nacionalismo, estado”, publicado em 2008, pela Revista de informação legislativa, v. 45, n. 179, p. 245-256, jul./set. 2008, numa edição especial em comemoração aos vinte anos de promulgação da Constituição de 1988.

Também de Samuel Pinheiro Guimarães o livro “Quinhentos anos de periferia“, no qual  analisa a reestruturação da ordem mundial pós-Guerra Fria e a afirmação de uma nova hegemonia norte-americana, além de abordar as implicações do status periférico dos grandes Estados do Terceiro Mundo, particularmente o Brasil (GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. 500 anos de Periferia: Uma contribuição ao estudo da política internacional. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1999). Sobre essa obra leia-se a precisa resenha feita por Jamil Cezar Chade (https://www.scielo.br/j/rbpi/a/SnvCF697WVpNsp6kvN8y4RB/), para a Revista Brasileira de Política Internacional, e a percepção que esse autor tem da obra, cujo objetivo  “é desenvolver uma interpretação pragmática dos fenômenos que orientam as relações internacionais e como esses movimentos impactam nos grandes Estados periféricos, nem sempre beneficiados pelo processo de globalização. Entre as características desses Estados, o autor destaca a fragilidade político-econômica e a estreita vinculação com um único centro como razões para que seja realizada uma análise do sistema internacional a partir do ponto de vista periférico. A idéia é de que a marginalização desses países será crescente se não enfrentarem os desafios da nova ordem, como a concentração de poder econômico, político e militar”.

Samuel fez em julho de 2022 um relançamento desse livro, para marcar um evento intelectual de sua esposa, a escritora e poeta Maria Maia, que lançava na mesma data seu livro “PoemAção“.  Maria Maia, a companheira sempre presente e associada às múltiplas dimensões do agir profundamente humano que o casal traduzia em cada gesto,produzira seu livro durante a pandemia, ao desenvolver como hábito o exercício de escrever um poema por dia, reunidos em 300 páginas de Poemas militantes, Poemas do confinamento e, de PoemAção.

Quantas vezes encontrei o casal quando acontecia de coincidirem nossas presenças na cena cultural e política de Brasília. Em gravações para o Latitud Brasil (TeleSur), ancorado pelo engajado jornalista Beto Almeida; em mesas-redondas, na televisão, entre outros o transmitido em 6 de maio de 2019, pela TV Brasil com o programa especial “Impeachment e a luta pela democracia”,  ancorado pelo jornalista Paulo Moreira Leite, com a participação do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, o ex-presidente da OAB, Marcelo Lavenère Machado, o jornalista Beto Almeida e eu próprio entre eles (https://www.youtube.com/watch?v=yORwhBtwk_g).

Ao preparar essas linhas, conversei com o querido amigo, Alessandro Candeas, hoje embaixador do Brasil na Palestina. Pedi-lhe que ele me dirigisse o olhar sobre a brilhante atuação de seu colega embaixador. Agradeço a Alessandro – cujo notável trabalho na área conflagrada de Gaza, muito contribuiu para o repatriamento de brasileiros expostos aos bombardeios indiscriminados na área, agora sob a atenção crítica do Tribunal Internacional de Justiça ou Corte Internacional de Justiça (Haia) – as indicações. Principalmente a sua sugestão de trazer ao conhecimento uma das mais notáveis contribuições de Samuel Pinheiro Guimarães, então ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos: a elaboração do Plano Brasil 2022, uma demanda do Presidente Lula para pensar o Brasil no contexto do bicentenário da Independência.

O Plano afinal elaborado, envolveu grupos de trabalho formados por técnicos da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), representantes de todos os Ministérios, da Casa Civil e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O Plano Brasil 2022 é composto por quatro capítulos: O Mundo em 2022; América do Sul em 2022; O Brasil em 2022 e As Metas do Centenário. A íntegra do texto, transformado em livro, pode ser encontrada na página eletrônica da Secretaria de Assuntos Estratégicos, no endereço: www.sae.gov.br.

Um Plano carregado de esperanças, utópico no sentido de abrir perspectivas realistas para ações políticas de grande transformação: “Para que o Brasil atinja essas aspirações nacionais em 2022 – ser um Estado soberano e democrático, ser uma sociedade justa e progressista, ser um país em acelerado desenvolvimento – teremos todos nós: trabalhadores, empresários, políticos, profissionais, intelectuais, militares, artistas, administradores, homens e mulheres, jovens, adultos e idosos, de enfrentar até 2022 os árduos desafios de reduzir as disparidades sociais, eliminar as vulnerabilidades externas, realizar todo o potencial de nosso território e de nosso povo”. Um horizonte utópico ainda impulsionador de futuro que nem esse interregno necropolítico de seis anos de obscurantismo logrou desconstruir, permanecendo como um projeto a realizar, uma possibilidade para suleara disposição política de um governo comprometido com a democracia, a justiça e os direitos humanos.

Um mapa de navegação para alcançar esse futuro, pré-inscrito em leituras generosas de brasileiros imprescindíveis. Homens e mulheres que não desistem de lutar. Homens e mulheres que fazem a diferença. Homens como Samuel Pinheiro Guimarães, sempre em vigília, como aprendemos em nossos saraus de solidariedade, em espaços como o de construção de diálogos (Coleção Diálogos em Construção”, desenvolvido pelo OLMA, que resultaram na Coleção Diálogos em Construção (https://olma.org.br/2022/04/01/lancamento-da-colecao-dialogos-em-construcao/), lançada pelo Observatório de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) e o Centro Cultural de Brasília (CCB) – https://estadodedireito.com.br/proposta-dialogica-para-tratar-temas-contemporaneos-e-superar-a-intolerancia/ – nos quais, com a participação permanente de Samuel, pudemos trabalhar consensos “no sentido do apelo aos aspectos mais doutrinais da reforma política, caminhando a argumentação para que a reforma política se faça comprometida com a justiça social, pois não pode haver prática da virtude, em sentido de virtude democrática, sem o atendimento das necessidades básicas ou o mínimo da condição humana”.

 


(*) Por José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Lido para Você: Espelho D’água E Visibilidade: A Prática Dos Direitos Humanos Em Um Contexto De Desordem.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Espelho D’água E Visibilidade: A Prática Dos Direitos Humanos Em Um Contexto De Desordem. Pensilvania Silva Neves. São Paulo: LTr Editora; 1ª edição, 2009, 176 páginas.

          Abro o livro na página11. Logo um anúncio – Manto (mãos e textos), e a chamada para versos (Por mim. Pérola Negra: Cubro-me em véus de palavras, cascatas de letras que rondam o ar, caem levemente em fios coloridos de vozes, de mantos, de mãos, de textos…).

            A página me é referida – mestre do diálogo – e uma anotação que remete a meu primeiro comentário sobre o livro de Pensilvania (irmã de Georgia e de Virgínia), quando me trouxe a dissertação que oriente exposta sob a forma do livro que a LTr editou:

Se quiser, ela pode ser escritora. Tem a matéria-prima e o talento para essa vocação. Ainda que o seu trabalho seja jurídico, ele se expressa no diálogo com outros modos de conhecer.

Trata-se de um trabalho de teoria geral do direito. Esse diálogo entre a linguagem precisa do jurídico e a expressão aberta do discurso literário é o que permite a mediação entre a razão e a sensibilidade.

Se a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de um outro discurso, a linguagem do direito não é um limite, mas um esforço para estressar-se como vocação para a liberdade.

Essa é a riqueza do trabalho de Pensilvania, combinar esses dois modos de expressão: ser jurista, mas de modo sensível; ser escritora, mas com compromisso emancipatório.

            Releio o livro (e nessa disposição não computo as leituras e releituras da dissertação) de Pensilvania em seguida à publicação na Coluna Lido para Você, da tese de Liliane Reis Marcon, professora e baiana como Pensilvania: https://estadodedireito.com.br/narrativas-literarias-desconstituintes/ – Narrativas literárias (des)constituintes. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2023, 180 fls.

A tese de Liliane trata de O Constitucionalismo latino-americano percorreu caminhos descontínuos e tracejos coloniais, que oscilaram entre a instituição da linguagem de poder e o silenciamento. Devido à consolidação das democracias, entre o final do século XX e o início do século XXI, certo tensionamento passa a pressionar a sua lógica fundante, de limites ao arbítrio do poder e de legitimidade do poder constituinte. As minorias e os grupos vulneráveis, desapossados do poder e discurso jurídico, social e político dominantes, tornam-se questionadores da vontade hegemônica que, sob os auspícios da legitimidade, não deve comprometer as diferenças radicais e o pluralismo próprio das democracias. Assumindo esses pressupostos e com base nos aportes da Teoria Narrativista do Direito, da Filosofia da Linguagem e do Constitucionalismo Achado na Rua, investigo se as narrativas literárias insurgentes no final do último século, na América-latina, têm o condão de fornecer elementos denunciantes, críticos e reveladores de modo de existir e resistir que importem ao Constitucionalismo, fenômeno que ultrapassa os textos normativos constitucionais e se fortalece na Rua. Para tanto, articulo obras literárias e escritos de Daniel Mundukuru, Julie Dorrico e Férrez, entendidos, nessa pesquisa, como hipóteses reflexivas e privilegiadas de investigação”.

Sobre a tessse de Liliane, gosto de pensar e de constatar que ela valorizou essas vertentes, valendo-se inclusive de minhas referência em Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura. E o fez para amarrar epistemologicamente os enunciados literários que escolheu como eixo narrativo para designar uma emancipação que humaniza, tomando a metáfora da rua, tal como assenta em sua conclusão nº 32, segundo o que, a rua, “é o ponto de chegada nesta pesquisa, pelas articulações propostas com o Constitucionalismo Achado na Rua, contribuições voltadas às associações dos desenvolvimentos das suas bases epistemológicas e da Literatura, e, igualmente, como referencial teórico possibilitador dos diálogos acadêmicos e institucionais, a partir daqui”.

Trata-se, ela diz, de compreender, e com isso fecho a resenha, que “o tempo da Literatura atravessa o Direito para fortalecer o Constitucionalismo Achado na Rua, visto ser um processo vinculado aos movimentos históricos. A Literatura foi o instrumento do possível para que os muitos contos, histórias e versos indígenas chegassem aos mais diversos leitores; para que muitos poemas e romances atravessassem os morros e favelas, rompendo a marginalidade. As organizações dos movimentos, que agregaram pessoas com objetivos comuns tornam mais claras as questões e aflições que unem aqueles que escrevem às margens”.

Também Pensilvania trilha esse caminho, no qual, ela diz, topografando a rua para nessa espacialidade (pensando em Milton Santos e a sua noção de espaços de cidadania, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção de sociabilidades quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa): “Reflexo e visibilidade capinam a diferença do cenário da igualdade excludente. Cegueira muda que entorna na discussão acerca da efetividade dos direitos humanos e do descompasso entre o mundo e o silêncio, a fala e o lugar: redução estrutural. O papel do direito problematizando o ser sendo narrativo com o outro diálogo, na Rua. A prática dos direitos humanos em um contexto de desordem”.

            Eis que, nessa topografia, dá-se o que para a Autora é Esconde-Esconde: Mas Fala, Mal Ouve, Mal Vê, título do capítulo 3, de seu livro, e modo de aferir “a efetividade dos direitos humanos [que] narra uma perspectiva que contempla, a partir do reconhecimento dos seus devires, a sua dimensão pedagógica”, pois, “narrar, pedagogicamente, os direitos humanos se traduz na intenção da diferença com a visibilidade – dela decorrente – com o outro; com a positividade do conflito e com o diálogo inseridos no espaço vazio das lutas sociais mediadas por tais direitos”.

            Então, com aquelas palavras soltas á guisa de apresentação, o querido colega e amigo Carlos Alberto Reis de Paula, o sensível ministro do TST, benemérito do América de Minas Gerais, natural de Pedro Leopoldo, de onde veio também seu contemporâneo e pasmem também ministro do TST, nosso querido amigo comum José Luciano de Castilho Pereira (tive a alegria de ter podido contribuir com um texto Novas sociabilidades, novos conflitos, novos direitos, para o livro organizado por Cristiano Paixão, Douglas Alencar Rodrigue e Roberto de Figueiredo Caldas – Os Novos Horizontes do Direito do Trabalho. Homenagem ao Ministro José Luciano de Castilho Pereira. São Paulo: Editora LTr, 2005), diz de encantamento, com o ler, e reler a dissertação e de novamente lê-la em sua forma livro, e poder re-encontrar “as ideias que transmite [e] têm vida. Mexem conosco. E as palavras também são vivas. Criam uma teia que nos envolve e, ao nos envolver, nos libertam. O jogo da forma e do fundo. Tudo com muita liberdade e espírito libertário”, enquanto mostram “direitos humanos que vêm sendo usados como reprodutores da ordem que domina, ao passo que o seu núcleo gerador é a liberdade”.

            Assim que para Pensilvania, “esses elementos combinados demonstram a dinamicidade que caracteriza a complexidade social e as diversas nuances dentro de um contexto que destaca a construção de direitos em relação. Construção que não se remete, apenas, à criação de novos direitos, mas, sobretudo, è indicativa da sua materialidade vivida em seus devires, em narração, no caminho da outridade, da rua”. Ao fim e ao cabo, Direitos Achados na Rua.

Em Poucas Palavras a autora resume o seu trabalho: “A formalização dos direitos humanos não é garantia para a sua efetivação. Ao contrário, observa-se a tutelar exclusão social no âmbito do estado democrático de direito. A compreensão da extensão e do alcance da temática que envolve a efetividade de direitos ultrapassa os limites de uma concepção normativa e antidialógica para fincar suas expectativas na aprendizagem, ou seja, considerando a possibilidade pedagógica dos direitos humanos e do direito. Movendo-se de um discurso verticalizado para a existência compartilhada…Trato, portanto, de uma outra dimensão jurídica dos direitos humanos – não normativa -, da sua perspectiva simbólica considerando as possibilidades pedagógicas que possam ser construídas com eles”.

               Talvez tenha sido essa a perspectiva que definiu os termos da relação de orientação. Eu ainda não havia, com Antonio Escrivão Filho, publicado Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho e José Geraldo de Sousa Junior. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016).

            Neste livro, aproveitamos uma reflexão por nós acumulada numa sequência de cursos e escritos que realizamos em conjunto em diferentes espaços e auditórios, construindo uma rica interlocução à base de algumas singularidades.

Sobre o que tratamos nesse livro pode ser melhor indicado em https://estadodedireito.com.br/para-um-debate-teorico-conceitual-e-politico-sobre-os-direitos-humanos/. Mas, de modo muito resumido cuidamos de uma condição de posicionamento.

De um lado, recusar a abordagem linear segundo a qual os direitos humanos se manifestam por etapas, como se fossem um suceder de gerações, em espiral evolutiva,  de cujo evolver naturalizado derivassem os direitos individuais, civis e políticos, seguidos dos direitos econômicos, sociais e culturais. Em vez disso, buscar conferir os processos ou as dimensões, designadas num cotidiano de afirmação e de reconhecimento, do qual emergem de modo indivisível, interdependente e integralizados os direitos humanos, manifestados ontologicamente na realidade instituinte e deontologicamente, abrigados num plano de garantias institucionalizado.

De outra parte, rastrear a emergência dos direitos humanos como projeto de sociedade. Vale dizer, na consideração de que não se realizam enquanto expectativas de indivíduos, senão em perspectiva de coletividade, como tarefa cuja concretização se dá em ação de conjunto.

Assim sendo, partimos do debate conceitual dos direitos humanos, para esboçar o panorama do cenário internacional e de sua emergência histórica, no mundo e no Brasil. Para, desse modo, articular o seu percurso no contexto da conquista da democracia, assim designada enquanto protagonismo de movimentos sociais, ao mesmo tempo sujeitos de afirmação e de aquisição dos direitos humanos. Em relevo, pois,  a historicidade latino-americana para acentuar a singularidade da questão pós-colonial forte na caracterização de um modo de desenvolvimento que abra ensejo para um constitucionalismo “Achado na Rua”. Problematiza-se, em conseqüência, os modos de conhecer e de realizar os direitos humanos, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos”.Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”.

Em todo caso, de modo compartilhado com Pensilvânia e outros estudantes, algo desse posicionamento já pudera ter sido antecipado em nossas rodas pedagógicas de conversas, por exemplo, em Educando para os Direitos Humanos: pautas pedagógicas para a cidadania na universidade. José Geraldo de Sousa Junior, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Alayde Avelar Freire Sant’Anna, José Eduardo Elias Romão, Marilson dos Santos Santana, Sara da Nova Quadros Côrtes (organizadores). Porto Alegre: Síntese, 2004,

            Também, para melhor referência, remeto a https://estadodedireito.com.br/educando-para-os-direitos-humanos/. Identificar então, uma exigência dialética de validação simultaneamente política e filosófica contida numa afirmação de princípio e na constatação de que “a história das declarações de direitos humanos não é a história de ideias filosóficas, de valores morais universais ou das instituições. É sim, a história das lutas sociais, do confronto de interesses contraditórios. É o ensaio de positivação da liberdade conscientizada e conquistada no processo de criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem”.

            Uma satisfação e um bom augúrio encontrar, no livro, ocupando as suas duas “orelhas”, o contundente comentário de minha colega, a professora Loussia Mousse Felix: “A obra demonstra a capacidade da autora de refletir sobre direitos humanos a partir do lugar em que, todos desejamos (…) no lugar das relações pedagógicas, em que somos simultaneamente aprendizes e mestres; em que modelos de formação centrados no docente, no professor ou instrutor devem se integrar a novas propostas que acolham tanto dimensões de autoridade acadêmica quanto perspectivas de reconstrução, tanto de conteúdos quanto de metodologias”.

            Retirei essa passagem abonadora do comentário. Mas gostaria de repô-la em seu contexto, referido a modelos de formação centrados no docente, no professor ou instrutor e não só no excerto, pois, como ela sustenta, devem se integrar a novas propostas:”Essa reconstrução não prescinde da ação discente. E Pensilvania, fiel a suas convicções teóricas e metodológicas, não se inibe em nos trazer suas escolhas narrativas centradas em uma mescla de considerações teóricas e linguagem poética”.

            Para concluir:

Estamos em tempos de afirmação de nossa igualdade pela garantia de que nossas diferenças sejam acolhidas e mesmo protegidas da homogeneização perniciosa dos valores, discursos e expectativas. E Pensilvania, nesse sentido, foi generosa em nos alertar que a linguagem, quando tradutora de conteúdos pertinentes, como é o caso de seu livro, deve também incorporar e expressar imaginação e subjetividade. Sua obra contém e oferece tanto criatividade quanto uma contribuição valiosa para a disseminação das relações entre Direitos Humanos e Educação. Por tudo isso, a publicação será, com certeza, uma contribuição importante em tempos em que essa vinculação, Direitos Humanos e processos educacionais formais e não formais, torna-se tanto mais sólida quanto deva garantir a multiplicidade de suas manifestações.

Falei antes em augúrio. É que ao reler o livro de Pensilvania para incluí-lo no acervo de recensões da Coluna Lido para Você deparei-me com a coincidência de que o revisitava no exato instante em que o MEC encaminha ao Conselho Nacional de Educação (Ofício Nº 45/2024/ASTEC/GM/GM-MEC, Processo SEI nº 23001.000054/2023-65), ato de criação da Comissão da Câmara de Educação Superior que trata da revisão geral das Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Graduação em Direito, concernente à Portaria CNE/CES nº 9, de 29 de novembro de 2023.

No ofício o ministro, “tendo em vista a relevância do tema e considerando a publicação da Portaria CNE/CES nº 13, de 15 de dezembro de 2023, encaminho, para avaliação desse Conselho, a indicação dos seguintes especialistas para contribuírem com os trabalhos da Comissão”.

O elenco é notável. Especialistas de alta representatividade e notoriedade, incluindo – algo estranhável dado o status do nomeado, o professor Silvio Luiz de Almeida, atual Ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania. Mas um grupo muito heterogêneo cujos membros, na academia e nos espaços institucionais, associativos e corporativos de crítica e avaliação do ensino jurídico, alcançaram relevo nos anos recentes.

O bom augúrio é que registro entre os indicados, exatamente a professora Loussia Penha Musse Felix, cujas credenciais estão assim descritas no ato de indicação: “Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, 1997; Mestre em Ciências Jurídicas pela Pon cia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1988; Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP, 1982. Professora, pesquisadora, líder de grupo de pesquisa (Direito e Educação da Universidade de Brasília – UnB). Especialista em Educação Jurídica, e em redes acadêmicas nacionais e internacionais nas áreas de Direito e Educação Superior. Docente no sistema público federal de ensino superior, atuando na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Foi Erasmus Mundus Scholar da Rede de Ação Humanitária. Coordenadora da Área de Direito na América La na do Projeto Tuning – Inovação Social e Acadêmica. Membro do Comitê Execu vo da DHES – Rede de Direitos Humanos e Educação Superior – ALFA-Comissão Européia. Presidente do Conselho da Clínica de Direitos Humanos e Democracia da Universidade de Brasília”.

Dentre todos os nomes a professora Loussia de fato acompanha e participa da construção do modelo vigente de educação jurídica, desde os anos 1990, ainda como estudante de doutorado recolhendo material para o seu tema – educação jurídica – e já então participando dos esforços consertados que resultaram na edição da emblemática Portaria-MEC nº 1.886, de 30 de dezembro de 1994, que estabeleceu as diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo atuais do curso jurídico.

A professora Loussia é do restrito grupo de operadores e hermeneutas desse campo, se consideramos o panteão que se reuniu para pensá-lo a contrepelo, e que figuram do elenco de autores e autoras que contribuíram para a proposição de enunciados constantes do livro OAB Ensino Jurídico. Diagnóstico, Perspectivas e Propostas. Brasília: OAB Federal/Comissão de Ciência e Ensino Jurídico, 1ª edição, 1992, respondendo aos 15 enunciados que balizaram a conjuntura de crise e a construção de figuras de futuro (expressão trazida para o livro por Roberto A. R. de Aguiar): refletidas na análise da realidade social, das novas demandas sociais, do perfil dos novos conflitos, dos novos processos sociais de autogestão da vida democrática e de organização das instâncias de solução de conflitos, das estratégias de ação coletiva e dos novos sujeitos e das novas dimensões da cidadania, de modo a tornar possível o conhecimento e a prática do jurídico e de seu ensino, num contexto de criação contínua de juridicidades que atualizam o social em criação permanente da sociedade.

Não é fraco o grupo constituído por esses formuladores. Entre os que acudiram ao chamado: Ada Pellegrini Grinover, Alberto Venânco Filho, Álvaro Melo Filho, Antonio Carlos Wolkmer, Benedito Calheiros Bomfim, Celso Campilongo, Cláudio Souto, Fábio Konder Comparato, Horácio Wanderlei Rodrigues, João Baptista Herkenhoff, João Maurício Adeodato, João Ricardo W. Dornelles, Joaquim Arruda Falcão, Jonathas Silva, José Eduardo Faria, José Reinaldo de Lima Lopes, José Ribas Vieira, Leonel Severo Rocha, Luciano Oliveira, Luis Alberto Warat, Marília Muricy, Miguel Pressburger, Paulo Lopo Saraiva, Plauto Faraco de Azevedo, Roberto O. Santos, Roberto Kant de Lima, Roberto Rosas, Ronaldo Rabello de Britto Poletti, Solange Souto, Tércio Sampaio Ferraz, Walter Ceneviva. Por trás, a voz silente de Roberto Lyra Filho. Indo além do roda-pé, puderam saltar o limite, da grade curricular, que enquadra a realidade e sua ideologização redutora, para emancipar o conhecimento, assim desdiciplinarizado e emancipado, política e epistemologicamente, pelas matérias (matérias não se confundem com disciplinas) em que se aninham estabelecidas pela sociedade interpelante. A educação é isso, saber dizer belas palavras, mas apropriá-las na direção do conhecimento e da transformação do mundo, como respondeu Fênix a seu pupilo Aquiles, a propósito do valor da sua finalidade (para ir à fonte dessa referência, veja-se Werner Jaegger, na Paidéia).

Na contracorrente do stand up corporativo (comediantes de empresas), permanece o campo reflexivo dos formuladores autoreflexivos que balizaram os esforços de qualificação e de adensamento da educação jurídica cujo trabalho deu lastro ao conjunto de diretrizes que marcam as últimas três décadas no campo, contadas desde a instalação da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB (conferir a farta bibliografia por ela produzida sob a retranca da Coleção Ensino Jurídico), caracterizando verdadeiramente uma reinvenção do ensino jurídico.

Incluo nesse acervo o volume substancioso OAB Recomenda: um Retrato dos Cursos Jurídicos. Brasília, DF: OAB, Conselho Federal, 2001, 164p.), quando do lançamento do selo de qualidade que a Entidade confere para indicar os cursos que alcançam os patamares de qualidade conforme os indicadores das Comissões de Ensino Jurídico e de Exame de Ordem. Trabalho, aliás, bastante referido pelo Autor da Tese.

Entre os trabalhos que emolduram o rol de cursos certificados na primeira edição do Selo OAB Recomenda, chamo a atenção para a exemplaridade ainda insuperável que proporciona, o texto da Professora Loussia P. Musse Felix – Da Reinvenção do Ensino Jurídico: Considerações sobre a Primeira Década. Texto seminal, orienta para o conhecimento e a hermenêutica de uma virada político-teórica-funcional, designada como “ponto de não-retorno” que designa esse formidável movimento de reinvenção do ensino jurídico.

Um pouco desse percurso eu o registrei em vários documentos da OAB, do MEC, do INEP. Da ABEDI, do CONPEDI, e os tenho atualizado criticamente na medida de minhas leituras correntes sobre dissertações e teses que têm se debruçado sobre esse processo dinâmico.

Menciono, para complementar a leitura do livro de Pensilvania, que arrolo entre esses estudos:

APOSTOLOVA,  Bistra Stefanova. Poder Judiciário: do Moderno ao Contemporâneo. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.

ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007, 288 p.

VETORES, DESAFIOS E APOSTAS POSSÍVEIS NA PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO NO BRASIL, de Fábio de Sá e Silva. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 3, n. 1, jan. 2016, p. 24-53.

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino; e MAIA FILHO, Mamede Said.  A Prática Jurídica na UnB. Reconhecer para Emancipar, Coleção Prática Jurídica, vol. 1. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Ministério da Educação/Ministério da Justiça, 2007

Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, de Marta Regina Gama. Fortaleza: EdUECE, 2019

Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação. Construção do projeto didático no ensino jurídico. Inês da Fonseca Pôrto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000

BELMONTE AMARAL, Luciana Lombas. Ensino jurídico e educação em direitos humanos: entre hierarquias sociais e redes de poder do mundo do direito — Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019

A Experiência da Extensão Universitária na Faculdade de Direito da UnB. Alexandre Bernardino Costa (organizador). Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Coleção “O que se Pensa na Colina”, vol. 3, 2007

Thiago Fernando Cardoso Nalesso. EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: entre as Diretrizes Curriculares Nacionais e o Exame de Ordem.  Doutorado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021

Há outros trabalhos. Mas nesses que acabo de designar encontro um sólido balizamento para demarcar o campo em benefício da atenção atual que o tema vai certamente merecer.

Assim que ainda vou aludir aos trabalhos de Mauro Noleto e de Inês da Fonseca Porto, que juntamente com Bistra Apostolova (hoje professora na UnB), atuaram fortemente na gerência da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB e muito contribuíram para a organicidade do sistema de educação jurídica e as diretrizes de eu ensino.

 NOLETO, Mauro. Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2021 – https://estadodedireito.com.br/sujeitos-de-direito-ensaios-criticos-de-introducao-ao-direito/

É reconfortante constatar, no percurso de Mauro Noleto a fidelidade aos princípios que traçam o mapa desse percurso. Isso transparece dos fundamentos de seu projeto de pesquisa atual e também nas participações e intervenções funcionais ativadas nesse seu caminhar. Certo que seu mapa de navegação está tecnicamente aberto às inflexões operadas em razão das injunções que manifestam no seu trânsito, por isso que a sua salvaguarda de ancoragem é coerentemente fincada nos pressupostos de uma teoria crítica em seus fundamentos. Ainda quando o fluxo do seu agir se faça em terreno estritamente funcional, conforme, por exemplo, ao exercer assessoria  junto à Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, a direção que imprime ao seu movimento reflexivo, segue aquele cânone indicado por Boaventura de Sousa Santos, expressamente, no sentido, diz Mauro,  de que a teoria crítica deve partir de uma atitude insatisfeita, mas também autocrítica, pois, para Boaventura, a auto-reflexidade á a atitude de perceber criticamente o caminho da crítica. Mauro sustenta isso enquanto submete a juízo crítico o sistema de avaliação de cursos jurídicos desenvolvido pela OAB (NOLETO, Mauro Almeida. A Recomendação da OAB, Uma Nova Perspectiva para a Avaliação dos Cursos Jurídicos. In Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB. OAB Recomenda. Um Retrato dos Cursos Jurídicos. Brasília: OAB Conselho Federal, 2001, p. 101-112).

Mauro aplica assim, concepção que aprofundou em seu trabalho acadêmico, combinando ensino, pesquisa e extensão universitária, quando em situação de responder a interpelações da realidade, no diálogo entre conhecimento e ação no mundo, quando o agir acadêmico é desafiado a abandonar a contemplação para atuar no sentido da transformação do mundo e a reconhecer a influência da teoria crítica, antes de tudo um filosofar na práxis.

 É de Mauro Noleto, o excerto a seguir transcrito:

Por isso, a distinção mencionada acima entre formas de aprendizado prático nos cursos jurídicos (assistência e assessoria) não se limita à questão metodológica, pois tem como pano de fundo os conflitos epistemológicos travados no campo da teoria do direito, em busca de uma compreensão mais alargada desse objeto de estudo…

(…) é possível perceber os elementos inovadores e emancipatórios da teoria jurídica crítica, mais especificamente, os marcos teóricos da Nova Escola Jurídica Brasileira, presentes no curso O Direito Achado na Rua, organizado e coordenado pelo professor José Geraldo de Sousa Jr,, quais sejam: a apreensão dialética do fenômeno jurídico, como enunciação e positivação histórica das conquistas concretas humanas, a partir dos conflitos sociais, pela ampliação e constante reorganização dos espaços de liberdade em sociedade; a compreensão de que este fenômeno, o Direito, é plural, isto é, surge em diversos contextos de produção normativa e, portanto, não se restringe ao contexto jurídico-legal, embora reconheça seja este um espaço privilegiado de produção do Direito na sociedade moderna; a superação do modelo individualista de subjetividade jurídica, de titularidade de direitos, forjado pelo pensamento idealista dos séculos XVII e XVIII, por sua compreensão atualizada da sociedade e de seus conflitos em sua dimensão coletiva, que fazem emergir novas formas de subjetividade em cada contexto em que se apresentam lutas pela superação das condições de opressão e de injustiça social, cultural, étnica, religiosa, classista…(NOLETO, Mauro Almeida. Prática de Direitos. Uma Reflexão sobre Prática Jurídica e Extensão Universitária. In SOUSA Junior, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino (Orgs.). Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília. Brasília: UnB/Faculdade de Direito/MJ/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, 1996, p. 93-105).

Agora Inês: Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação. Construção do projeto didático no ensino jurídico. Inês da Fonseca Pôrto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000 – https://estadodedireito.com.br/ensino-juridico-dialogos-com-a-imaginacao/

O livro de Inês da Fonseca Pôrto – Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação – é um achado do selo editorial Sergio Antonio Fabris. Ele se coloca também como “tarefa e promessa” (Mills) de “espionamento do real pela imaginação”, capturando ângulos em que ele não se percebe observado e, desde a perspectiva de testemunho (“testemunho da construção do projeto didático-pedagógico na reforma do ensino jurídico”), avalia “o modelo central do ensino jurídico” e indica, na medida em que “a imaginação dê forma à vontade de transformação”, as possibilidades que ele comporta de abrir-se “a novas experiências – não vividas, mas possíveis”, como projeto de futuro.

Configurado a partir dos seus elementos característicos – a descontextualização (negação do pluralismo jurídico), o dogmatismo (exclusão das contradições e preservação dos processos unívocos de seu pensamento constitutivo) e a unidisciplinaridade (exclusividade de um modo de conhecer) – a Autora demonstra o impasse crítico a que chegou o modelo central de ensino jurídico e o esgotamento paradigmático de sua matriz positivista e formalista.

A abordagem de Inês Pôrto, fruto de seu protagonismo no processo, apreende nitidamente o foco de intervenção dos sujeitos nele engajados, principalmente o da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e interpreta, fielmente, a visão de crise do Direito que iluminou as reflexões sobre suas determinações e os elementos nucleares que ela articulou. Esses elementos, a meu ver (Anais da XVI Conferência Nacional da OAB) são, em sua dimensão epistemológica: 1) de representação social relativa aos problemas identificados; 2) de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção; 3) de cartografia de experiências exemplares sobre a autopercepção e imaginário dos juristas e de suas práticas sociais e profissionais. É por meio deles que se dá o balizamento para a superação da distância que separa o conhecimento do Direito de sua realidade social, política e moral, possibilitando a edificação de pontes sobre o futuro, através das quais possam transitar os elementos novos de apreensão e compreensão do Direito e de um novo modelo de ensino jurídico. O livro de Pensilvania Silva Neves vem se juntar a esse catálogo. Dou-lhe a palavra final, que aliás, fecha seu livro: “Trilhando essa perspectiva da efetividade dos direitos humanos, na qual se evidencia o caráter histórico, o narrativo, o político, o poético, o complexo, o pedagógico, a imagem, a ação – uma dimensão inconclusiva… – mantendo-me musicalidade, desencadernando a vida, abrindo a boca sentindo sentidos nos redores do mundo, construindo respeito à minha coexistência significativa no mundo, porque menos ar não há, retirando-me de dentro do com (o)pressor, vou me deslocando da quartinha para a terra da vida, do espelho d’água para a visibilidade.”

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)