quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

 

Agenda 2021

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Agenda 2021. Cezar Britto e Advogados Associados/Advocacia Operária. Brasília: Projeto Gráfico 4Estaçõesestudio.

           Agendas e calendários, não são apenas brindes ou suporte para registro de compromissos. Algumas são catálogos de arte, espécie de breviários, manuais de uso. Reitor da UnB, entre 2008 e 2012, com o assessoramento da Secretaria de Comunicação e do Decanato de Graduação, então dirigido pela Professora Márcia Abrão, hoje Reitora em segundo mandato da universidade, dei especial atenção, inclusive acadêmica e comunitária a esses elementos.

           Algumas das agendas anuais ou alusivas a efemérides, por exemplo, para marcar o cinquentenário da UnB, traziam inscrições: “Diálogo & Reflexão. Conversando ensinamos e aprendemos”; “Só se for agora! – os 50 anos da UnB” (Inovação. Rebeldia. Utopia. Diversidade. Modernidade. Pioneirismo. Coragem. Futuro. Ideologia. Conquista. Ruptura. Educação. Ebulição), chamamentos para o protagonismo, para ocupar os territórios acadêmicos, para percorrer as trilhas das muitas possibilidades que a universidade proporciona. Na agenda, mapas, lugares, orientações, tudo que cabe em boas-vindas.

           Também os calendários não se constituem meras folhinhas. Em meu período reitoral, a atividade criativa fez desses elementos um atributo educador. A cada ano o calendário trazia arte e motivos educacionais em sua concepção. Nossos acervos arquitetônicos, artísticos, mobiliários.

           Entre todos conservo com viva admiração as peças preparadas a pedido da Comissão de Boas-Vindas, pelo NICBIO – Núcleo de Ilustração Científica, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília, coordenado pelo Professor Marcos A. S. Silva Ferraz, biólogo com especialização em ilustração botânica no Royal Botanic Gardens, Kew, Londres, ele próprio um ilustrador de primeiro plano, não fora o seu Núcleo um dos poucos na estrutura universitária brasileira. O NICBIO oferece a Disciplina Ilustrações frequentada inclusive por estudantes do Instituto de Artes e organiza no IB valiosas Coleções de Ilustrações (botânica, animais), abertas a visitações. Notei que a Reitora Márcia continuou a valorizar essas criações.

           Fora do ambiente acadêmico agendas têm sido elaboradas para marcar registros sociais, sindicais e políticos. Há as que assinalam as ações históricas por emancipação do feminino, por meio das lutas das mulheres. Quem sabe, ano que vem, agendas associem o feminismo e a atuação da mulher advogada transcrevendo os fatos da histórica deliberação do Conselho Federal que agora ao final de 2020, decidiu aprovar política de cotas raciais para negros (pretos e pardos), no percentual de 30% e paridade de gênero (50%), nas eleições da OAB.

           Simplesmente esplendoroso o Calendário Negro que a professora Zelinda Barros teve a ideia de criar em 2015 para as redes sociais inspirada nos calendários negros produzidos por ativistas e organizações do movimento negro. Para o ano de 2021, o Calendário Negro (www.facebook.com/calendarionegro) homenageia mulheres admiráveis. Janeiro – a yalorixá Mãe Beata de Yemanjá; Fevereiro –  a socióloga Lélia Gonzales; Março – a socióloga Luiza Barros; Abril – a escritora Inaldete Pinheiro de Andrade; Maio – a atriz Ruth de SouzaJunho – a filósofa Sueli Carneiro; Julho – a escritora Alzira Rufino; Agosto – a educadora Ana Célia da Silva; Setembro – a cantora Leci Brandão; Outubro – a sindicalista Laudelina de Campos Melo; Novembro – a escritora Conceição Evaristo; Dezembro – a jongueira Tia Maria da Grota .

           A Agenda 2016 do Sindicato dos Bancários do DF, uma organização pioneira na afirmação do protagonismo social na cidade, trouxe para a peça o conceito de livro-agenda e abre seu conteúdo com o registro de eventos dia-a-dia que designam a narrativa da formação econômico-social-política-cultural e sindical, do país e da cidade, orientado por uma bem conduzida pesquisa histórico-sociológica, nessa edição sintetizada em texto primoroso da professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, da Universidade de Brasília, uma das principais intérpretes da história social e política de Brasília: “Sindicato dos Bancários de Brasília: um Olhar Transversal de uma História Cidadã. A trajetória da cidadania – Temas Relevantes”.

           Calendários, agendas, almanaques guardam essa significação que é simultaneamente diário, crônica e anotação histórica.  Em culturas agrafas, com forte oralidade, os calendários se expressam com notações de festas. Ativam a memória comunitária. Em projeto de assessoria jurídica popular universitária que desenvolvemos numa comunidade em Brasília mobilizada para afirmação de seu direito à moradia, o ponto de partida foi estabelecer uma identidade comum para a luta política pelo direito, passando pelo resgate da memória de sua história comum, por meio de celebrações e de tradições de festas, em geral de fundo religioso (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino (orgs). Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília. Brasília: UnB/Faculdade de Direito-Ministério da Justiça/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, 1998).

           No caso, a dupla força simbólica da hagiologia e das festas. Combinadas. As festas de santos como memória e história. Não fora a Hagiologia a descrição, o estudo ou o tratado sobre a vida dos santos, no cristianismo. Na hagiografia, ao contrário da biografia, o hagiológio não tem a preocupação com o registro histórico de fatos, e sim da vida religiosa do biografado. Isso significa uma preocupação maior com os fenômenos da fé, e uma valoração das tradições e lendas tanto quanto dos fatos históricos propriamente ditos.

           Tendo comentado com meu amigo e colega de universidade, o professor Gonzaga Motta, grande teórico da comunicação e referência em análise crítica da narrativa, que fazia este Lido para Você, Luiz que não esqueceu sua genealogia, sobrinho-neto de Dom Vasconcelos Motta, décimo quinto bispo de São Paulo, sendo seu terceiro arcebispo e primeiro cardeal, cuidou de lembrar a origem medieval do Livro das Horas que continha  o calendário das festas e dos santos, as Horas da Virgem, da Cruz, do Espírito Santo e dos mortos, as orações comuns e os salmos penitenciais e que conforme a tradição e seu uso breviário, recebera ilustrações de grandes artistas do tempo.

           O Professor Gonzaga Motta, mineiro de Santa Bárbara e atento cronista de suas tradições, recomendou-me anotar a célebre folhinha de Mariana. Conforme verbete – https://pt.wikipedia.org/wiki/Folhinha_Eclesi%C3%A1stica_da_Arquidiocese_de_Mariana (wikipedia) “a Folhinha Eclesiástica da Arquidiocese de Mariana, ou simplesmente Folhinha de Mariana, é um famoso calendário que é impresso anualmente. Diferentemente, porém, dos calendários convencionais, que mostram, normalmente, os dias do ano, os feriados nacionais e fases da Lua, a Folhinha de Mariana traz ainda orações, instruções religiosas, tabela do amanhecer e do anoitecer, datas das festas, dias de penitência, todos os santos católicos, horóscopo, feriados, época de plantio, resoluções da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e dados biográficos do Papa católico”.

           folhinha ainda hoje editada, teve a atenção de Carlos Drummond de Andrade, na crônica “A Boa Folhinha“: “Ela não quer iludir-nos com as pompas deste mundo. Adverte-nos que há dias de penitência, esta última comutada em obras de caridade e exercícios piedosos. Para cada dia do ano, o santo, a santa ou os santos que nos convém aceitar, como companheiros de jornada: breve companhia, companhia sempre variada, e o ano escoam sob luz tranqüila, mesmo que o tempo seja brusco e haja abundância de água. Vamos à boa, veraz, singela e insubstituível Folhinha de Mariana” (Jornal do Brasil, 27/12/1973, Primeiro Caderno, pág. 5).

           Uma curiosidade. Há alguns anos, antes que políticas de apoio ao desenvolvimento do trabalho no campo se institucionalizassem como políticas públicas e sociais numa governança democrático-popular, os camponeses e pequenos agricultores sofreram conjunturas de privação, sujeitos a fome e forçados a deslocamentos, como retirantes (Graciliano Ramos). Em algumas situações-limite reagiram com saques, ocupações e até revolta.

           Registro uma ocupação recente, aliás a prédio da Sudene em Pernambuco, para tornar visíveis exigências de assistência e promoção de medidas governamentais de subsistência e fomento ao trabalho, acesso à terra e produção. O evento deu-se num 19 de março. Perguntei a Urbano (Francisco Urbano Araújo Filho), presidente da CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. Por que 19 de março?

           Acabou que ele não me deu uma razão especial. Ao que eu lhe disse, pois vou explicar. É que para o nordestino do campo, se não chover até a festa de São José (19 de março), haverá seca, não se colherá e então ou se resigna, ou se retira ou, se se politizou, age para interpelar os gestores, ocupa a Sudene (notícia do G1, 19/03/2013: Sertanejos potiguares pedem chuva em orações a São José. …no final da celebração, agricultores protestaram contra o poder público, exigindo providências contra a seca..).

           Eis porque já se verifica até disputas pela titularidade das festas santificadas. Por volta de 1987, destacado pela Comissão de Acompanhamento da Constituinte da CNBB, viajei para Mossamedes em Goiás, ligada a Prelazia da Cidade de Goiás (Goiás Velho), então sob a direção episcopal de Dom Tomás Balduíno, fundador da CPT – Comissão Pastoral da Terra.

           Em Mossamedes eu ia me encontrar com o Padre Francisco (Francesco) Cavazzuti, o pe. Chicão, para discutir com seus paroquianos o tema da Constituinte instalada e as propostas pastorais especialmente as relativas à reforma agrária naquela região epicentro de conflitos agrários entre sem-terra e ruralistas (ali onde se criou a UDR, uma associação agressiva de ruralistas e agro-negociantes). De fato, o padre Cavazzuti naquele ano viria a ser alvo de um atentado quando um pistoleiro a soldo do latifúndio o atingiu com um tiro de espingarda na cabeça (29/8/1987), deixando-o cego, sem contudo retirá-lo do serviço pastoral. Restabelecido, mesmo cego, voltou a exercer sua missão evangelizadora.

           Mas não é isso que me faz invocar o padre Chicão. Mas sim, o fato de que depois de nosso encontro em Mossamedes, ele me procurou em Brasília com uma questão. Ele queria discutir a titularidade das festas religiosas, como um direito imaterial da Igreja contra a mobilização dos proprietários rurais que agora investiam com financiamento e concessões de bens para usurpar das tradições religiosas populares, politizando-as no seu interesse oligárquico, buscando se apropriar do simbólico das celebrações. No fundo, uma disputa, um outro modo de estender o conflito do campo, agora pela agenda hagiológica.

           Agora me chega às mãos, numa cortesia de Cezar Britto Advogados Associados e Advocacia Operária, a Agenda 2021, do Coletivo de Advogados. Bem representativa do conceito de agenda-livro, o mimo é a expressão de sociedade e de mundo do querido amigo Cezar.

           Nada do lugar comum da peça publicitária. Os avisos apocalípticos dos prazos contínuos, peremptórios e fatais. Ou as tabelas de custas. Calendários das pompas e das circunstâncias do ritual judiciário e advocatício. Ou, vitrine da banalização, com o enfadonho repertório de parêmias a Carlos Maximiliano, em rasa exibição do senso comum teórico de que falava Warat, como se um elenco de brocardos pudesse ser um substitutivo prático do árduo exercício hermenêutico da inteligência. Sequer uma dialética a Abelardo – sic et non – pois a cada uma que diz sim, há uma que diz não.

           A agenda-livro é um catálogo de arte, uma antologia, uma carta de princípios, uma aliança política. O projeto gráfico, desenvolvido por 4 Estações (www.4estacoesestudio.com.br), com a produção e a arte de Victor Pontes, propõe “páginas banhadas a aquarela cujas diferentes cores e tonalidades do céu compõe e se alinham às estações do ano. As páginas também são rodeadas por trechos de poesia e recortes de pinturas selecionadas cuidadosamente e afinadas ao projeto gráfico”.

           Começa com Mário Quintana, prossegue com Elisa Lucinda, e mês a mês oferece Ferreira Gullar, Lêdo Ivo, Antônio Gedeão, Nydia Bonetti, Hamilton Faria, Carlos Drummnd de Andrade, Ana Leovy, Lenine, Flora Figueiredo, Taiguara, Adélia Prado, Fernando Campanella, Denise Emmer, Pablo Neruda, Vinicius de Moares, Eduardo Galeano, Zeca Baleiro,  TeresaWilms Montt, Toquinho e Mutinho, Carlos Pena Filho, Thiago de Mello, Oswald de Andrade, Vera Lúcia de Oliveira, Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, Beto Guedes, Cláudia Marczar, Manoel de Barros, Armando Tejada Gomes, Affonso Manta, Sophia de Mello, Celinha, Affonso Romano de Sant’Anna, Angela Davis, Lila Ripoll, Adriana Calcanhoto, Kléber Albuquerque e Élio Camalle, Cecília Meirelles, Jim Steinman, Felipe Nicknig, Eugênio de Andrade, Caetano Veloso, Carla Dias, Chico Buarque, Ary dos Santos, Eduardo Alves da Costa, Luiz Bonfá e Antônio Maria, Paulo Leminski, Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, Chacal, Maria Esther Maciel, Alice Ruiz e Itamar Assumpção, Helena Kolody, Maria Teresa Horta,

Karel Garcia, Flora Figueiredo, Fernando Paixão, Zeh Gustavo, Whisner Fraga, Bertold Brecht, Millôr Fernandes, Décio Bettencourt Mateus, Luis Kiari e Caio Soh, Carlos Assumpção, Leila Miccolis, Antonio da Cruz, Torquato Neto, Augusto Blanca, Mario Benedetti, Mia Couto, Alda Lara, Marina Colasanti, Francisco Bugalho, Chico César, Marly de Oliveira, Ana Terra, Milton Nascimento, Reynaldo Damazio, Fernando Pessoa, Mark Twain, Ana Carolina, Aldir Blanc, Tawfik Az-Zyad, Sérgio Vaz, Jercy Lec, Ascenso Ferreira, Dora Ferreira da Silva, Silvio Rodríguez, Angela Ro Ro, Gabriela Marcondes, Martha Medieros, Victor Heredia, Denise Emmer, Carlos Augusto Cacá, Péricles Cavalcanti, Ronaldo Bastos, Dominguinhos e Anastácia, Tom Jobim e Marino Pinto,  Florbela Espanca, Emily Dickinson, Antonio da Cruz, Gilka Machado, Sá e Guarabyra, Myriam Fraga, Cazuza e Frejat, Truck Tumleh, Victor Jara,  Chacal, Murilo Mendes, Gonzaguinha, Belchior, Franscisco Alvim, Paul Éluard, Alexandre O’Neill, Fernando Brant, Paulo Freire, Raul de Carvalho, António Ramos Rosa, Mário de Sá-Carneiro, Sérgio Jockymann, Cacaso,  David Mourão-Ferreira, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, Antoniella Devanier, Antonio Cícero, Gilberto Gil, Sérgio Vaz, Lya Luft, Juliana Strassacapa, Guimarães Rosa, Paulo Bomfim, Teresa Balté, Adriana Falcão, Cartola e Roberto Nascimento, Lin Yutang, Antonio Brasileiro, Fernando Sabino, Guilherme de Almeida, Carlos Pena Filho, Shakespeare, Renato Teixeira, assim, juntos e bem misturados, letra e música; prosa e verso.

             Concebido pela imaginação criadora de um autor, em geral indexado pela narrativa robusta do jurista que é, e que assim se revela em escritos de reconhecido alcance político-jurídico, entre eles Não é Tempo para Silêncios (Belo Horizonte, 2019), (Almas livres, corpos libertos e Um lugar longe do mundo), crônicas (Nos alpendres da vida e Caminhadas), poemas em prosa (140 curtidas) e teatro (Mulheres que ousam escolher e Luzes, Luízes e Luízas no Brasil escravista), e do ainda inédito “Candangos, Traços de Brasília”, Cezar Britto é o autor do poema anônimo da abertura da agenda-livro:

                        Liberdade, igualdade e solidariedade

                        Mantras que povoam as reivindicações da humanidade.

                        Ação, rebeldia e luta

                        Expressões experimentadas na caminhada do tempo.

                        Escrever folhas infinitas

                        Conquistar utopias queridas

                        Escolher a ousadia de fazê-las vividas.

 

                        É a História paginada a cada dia.

 

            Mas a prosa e o verso, e também os espaços funcionais – quem somos? Estrutura e equipes, especializações, contatos, endereços, sedes, controle de livros controle de filmes, controle de séries, redes sociais, e até em atenção à responsabilidade e à consideração aos direitos reprodutivos no interesse da mulher profissional um calendário menstrual para controle dos ciclos e marcação do período fértil, estão embalados em recortes de pinturas selecionadas, numa galeria inédita de esboços, de reproduções, de detalhes, da arte sutil de Seurat, William Turner Agnes Cecile, Alexander Archipenko, Victoria Kalaichi, Aldemir Martins, Degas,  Ana Leovy, Brunna Mancuso, Picasso, Catrin Welz-Stein, Roeqiya Fris, Valérie Belmokhtar, Xi Pan, Alison Bell, Chagal, Margherita Paoletti, Clare Elsaesser, Mi Kyung Choi, Françoise de Felice, Egon Schiele, Tarsila do Amaral, Caroline Brisset, Ben Shahn, Clóvis Graciano, Di Cavalcanti, Andrew Salgado, Bruno Giorgi, Underwood, Georgia O’Keeffe, Bayoc, Vladimir Kush, Charles Bibbs, Olaf Hajek, Anna Bocek, Brecheret,  Alice Neel, Elginia Mccrary, Anita Malfatti, Botticelli, Eva Antonini, Marius Markowski, Michael Carson, Christian Schloe, Salvador Dali, Keith Mallett, Denis Sarazhin, Djanira, Denis Chetboune, Iryna Yermolova, Jacob Lawrence, Andrea Realpe, Arturo Herrera, Paul Klee, Joy Garnett, Annie Leibovitz, Carlos Torrallardona, Silpa Saseendran, Aniela Sobieski, Ernie Barnes, Duy Huynh, Antonio Cruz, Alfred Eisenstaedt, Blake, Carlos Orive, Bem Shahn, Auguste Herbin, Ernst Barlach, Kwangho Shin, Guayasamin, Helena Wierzbicki, Heitor dos Prazeres, Gary Weisman, Elizabeth Catlett, Renoir, Rafal Olbinski, Justin Bua, Laura Wheeler Waring, Munch, Lempicka, Portinari, Pedro Figueiredo, Milton da Costa, Lyubov Popova, Leroy Campbell, Odette Eid, Modigliani, Miró, Max Ernst, Magritte, Loyiso Mkize, Jacques Guignard, Kadir Nelson, Ikahl Beckford, Matisse, Jack Vettriano, Almeida Júnior, Toulouse-Lautrec, Vimal Chandran, Tanya Gomelskaya, Paul Goodnight, Rebeca Dautremer, Tikashi Furushima, Isabel Miramonstes, Klimt, Rocio Montoya, Rodin, Alfred Gockel, Rivera, Agniya Tolstokulakova, Zaragoza, Robert Mapplethope, Van Gogh, Duffy Sheridan, Andrew Atroshenko, Alex Calder, num arranjo de plasticidade, arte etnológica, fotografia, explosão cromática, escultura, pintura.

            Agenda-livro é assim, combinação do sensível e do racional, do social e do político. Assinala os dias, seus eventos, seus vestígios, o simbólico, lembra histórias, faz a memória resgatar compromissos, marca as alianças. É o exercitar do jurídico com engenho e arte (Lutero: “jurista que é só jurista é uma triste e pobre coisa”); longe do vaticínio de Bartolo da Sassoferrato: “i meri leggisti sono puri asini” (os meros juristas são puros asnos):“Fazemos da Advocacia Inclusiva a Nossa Primordial Missão: exercê-la para ocupar o espaço jurídico, de forma a instrumentalizar o protagonismo da classe trabalhadora, dos movimentos sociais, das comunidades originárias, das entidades de classe e quaisquer outros sujeitos coletivos de direito, na defesa de suas causas, individuais e coletivas”.

            É notável encontrar tal auto-reflexividade nessas peças inesperadas, agendas e anuários. Vi isso também, no Anuário LBS ADVOGADOS & INSTITUTO LAVORO, orientado por meu querido companheiro de percurso no jurídico e que agora retorna ao doutoramento em Direitos Humanos e Cidadania, na UnB, José Eymard Loguércio.  O Anuário 2020 é um repositório, ao estilo dos repositórios acadêmico-profissionais. Esse o seu conceito. Aponta para o futuro que quer disputar (2021) mas avalia o caminho percorrido, com a lucidez de que aqui e lá são “Estranhos Tempos. Tempo único”: “Foi um ano em que nos ajudamos, nos solidarizamos, buscamos construir e ter mais conhecimento. Este Anuário 2020 retrata o trabalho de todas e todos da LBS”.

            Por isso que direito com sensibilidade, com amorosidade. Conforme sugere o Papa Francisco. Em mais uma de suas proverbiais intervenções, agora aos juízes, em encontro remoto com juristas das Américas e da África –  Primeiro Encontro virtual dos Comitês para os Direitos Sociais da África e da América – o Papa Francisco afirmou: “uma sentença justa é uma poesia que repara, redime e nutre” (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-11/papa-francisco-juizes-africa-america-sentencas.html).  “Nenhuma sentença pode ser justa, – ele ainda afirmou -se gera mais desigualdade, mais perda de direitos, indignidade ou violência”.

           O Papa investe na convocação que faz a uma dimensão poética que imante a crosta asséptica da atuação judicante: “O poeta precisa contemplar, pensar, compreender a música da realidade e moldá-la com palavras. Vocês juízes, em cada decisão, em cada sentença, estão diante da feliz oportunidade de fazer poesia: uma poesia que cure as feridas dos pobres, que integre o planeta, que proteja a Mãe Terra e todos os seus descendentes. Uma poesia que repara, redime e nutre. Não renunciem a esta oportunidade. Assumam a graça a que têm direito, com determinação e coragem. Estejam ciente de que tudo o que contribuírem com sua retidão e compromisso é muito importante”.

           É o que a agenda-livro exalta em seu frontispício, qual ferrete, para a memória desse compromisso, o compromisso espontâneo de juristas sensíveis que se associam para uma advocacia de inclusão: “O coração que pulsa no peito da advocacia é o mesmo que bate no coração da cidadania. O sangue que o alimenta é o do combate à exploração. O ofegar das suas veias é o da rebeldia que repele o patrimonialismo. O som que auscuta é o da esperança que brota do grito injustiçado. A inclusão é a alma da advocacia que vive incorporada em nós”.  

           

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

 

Introdução crítica ao direito à saúde

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

Série O Direito Achado na Rua, vol.4: Introdução crítica ao direito à saúde. Organizadores: Alexandre Bernardino Costa, José Geraldo de Sousa Junior, Maria Célia Delduque, Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira, Sueli Gandolfi Dallari. Curso de Extensão Universitária a Distância. Brasília: Universidade de Brasíla/CEAD-CEAM-Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos e FIOCRUZ, 2009, 460 p.

(https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/39282/2/O%20Direito%20Achado%20na%20Rua.pdf)

             A condição da pandemia trazida pelo Covid19, se no mundo trouxe o inesperado, por ter chegado de improviso e nos ter surpreendido, diz o Papa Francisco (Mensagem para o 4º Dia Mundial dos Pobres, 13/06/2020), “impreparados, deixando uma grande sensação de desorientamento e impotência”, para aqueles que têm responsabilidade comunitária e competência de gestão, e sabem como agir, ela não “chega de improviso” e nos convoca a agir.

         Para o Papa, sob essa perspectiva, ela representa a abertura de “caminhos de esperança”. Para Francisco (Carta Encíclica Fratelli Tutti sobre a Fraternidade e a Amizade Social. São Paulo: Edições Paulinas, 2020), “recente pandemia permitiu-nos recuperar e valorizar tantos companheiros e companheiras de viagem que, no medo, reagiram dando a própria vida. Fomos capazes de reconhecer como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns que, sem dúvida, escreveram os acontecimentos decisivos da nossa história compartilhada”.

Fonte: PixaBay

            Ao apresentar a obra, deste Lido para Você, quarto volume da Série O Direito Achado na Rua – Introdução Crítica ao Direito à Saúde, no contexto de uma concepção que capta o Direito em movimento ao impulso do social, indicamos desde logo, que no caso específico do direito à saúde, não se pode perder de vista o quanto a articulação de movimentos sociais, sobretudo nos anos 1980, contribuiu para a criação dessa ideia no imaginário do Direito, constituindo a arquitetura de um sistema de proteção à saúde sólido e eficaz.

          Com efeito, o movimento social pela reforma sanitária se configurou como um dos mais fortes protagonistas durante o processo constituinte que desaguou na Constituição de 1988 e teve, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília, em 1980, um momento de definição de novas diretrizes para o sistema de saúde no Brasil.

          Nesse processo, construiu-se a ideia de um sistema de saúde no Brasil (depois traduzido na Constituição), na representação de um Sistema Único de Saúde (SUS), baseado na descentralização das ações e serviços de saúde, com direção única em cada esfera de governo, atendimento integral e universal com prioridade para as atividades preventivas e participação social para a definição e o controle das ações do sistema.

          Pode-se dizer ter sido essa experiência, carregada de ampla participação política dos sujeitos sociais e presença ativa na esfera pública – a rua – para formar opiniões, o fator que conduziu o problema da saúde, até aí visto apenas como uma carência da vida cotidiana, para integrá-lo à categoria de direito social positivado, inscrito na Constituição sob a designação geral de “saúde direito de todos e dever do Estado”.

          É isso que dispõe hoje a Constituição (artigo 196), erigindo a saúde em direito garantido por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e outros agravos e ao acesso igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

          Para mim, enquanto compromisso de co-organizador da obra, permaneceu a lealdade trazida nesse enunciado, de tudo quanto se expressou na mobilização social traduzida pelo Movimento Sanitarista brasileiro quando esboçou, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, a concepção e o desenho de um sistema que veio íntegro para a Constituição de 1988. E de minha parte com a gravidade de ter participado da construção do modelo, integrante que fui do primeiro painel Saúde como Direito Inerente à Cidadania e à Personalidade, logo após a abertura com a presença do Presidente da República, expondo o tema A Construção Social da Cidadania, anais p. 61-69.  (http://www.ccs.saude.gov.br/cns/pdfs/8conferencia/8conf_nac_anais.pdf).

          Essa lealdade, compartilhada pelos meus colegas co-organizadores, se expressa no Sumário, que  abre com a apresentação da Série, contida na ideia de O Direito Achado na Rua: uma ideia em movimento, Alexandre Bernardino Costa e por mim, como co-coordenadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, logo a seguir, a estrutura da obra.

          UNIDADE I – CONSTRUINDO AS BASES DA DISCUSSÃO, Módulo 1 – Cidadania e direito à saúde, André-Jean Arnaud e Wanda Capeller; Módulo 2 – Pluralismo Jurídico e Regulação (oito tendências do direito contemporâneo); José Eduardo Faria; Módulo 3 – Consolidação do Direito Sanitário no Brasil, Fernando Mussa Abujamra Aith; Módulo 4 – Uma visão internacional do direito à saúde, Daisy de Freitas Lima Ventura.

          UNIDADE II – EVOLUÇÃO DO DIREITO À SAÚDE, Módulo 1 – O conteúdo do direito à saúde,  Sueli Gandolfi Dallari; Módulo 2 – Tijolo por tijolo: a construção permanente do direito à saúde, Maria Célia Delduque e Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira; Módulo 3 – O Sistema Único de Saúde, uma retrospectiva e principais desafios, Ximena Pamela Diaz Bermúdez; Edgar Merchan-Hamann; Márcio Florentino Pereira; Roberto Passos Nogueira; Sérgio Piola e Déa Carvalho; Módulo 4 – Ética Sanitária, Dalmo de Abreu Dallari.

          UNIDADE III – A SAÚDE COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL, Módulo 1 – Drogas e criminalidade,  Roberto Lyra Filho; Módulo 2 – Fragmentos de discursos construídos a várias vozes: notas sobre democracia, participação social e Conselhos de Saúde, Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira; Módulo 3 – Algumas considerações sobre a influência da saúde nos contextos de inclusão social: o caso dos portadores de sofrimento mental, Janaína Penalva; Módulo 4 – Saúde mental no contexto do Direito Sanitário, Tânia Maria Nava Marchewka; Módulo 5 – Direito à saúde de grupos vulneráveis, Adriana Miranda e Rosane Lacerda; Módulo 6 – Vigilância em Saúde do Trabalhador, Jorge Mesquita Huet Machado; Módulo 7 – A cidadania encarcerada: problemas e desafios para a efetivação do direito à saúde nas prisões, Fábio Sá e Silva

          UNIDADE IV – DO DIREITO ÀS AÇÕES CONCRETAS, Módulo 1 – Áreas de controvérsia: o Caso da Biodiversidade, Boaventura de Sousa Santos; Módulo 2 – A saúde e o meio ambiente: políticas públicas coincidentes?, Maria Célia Delduque e Lenita Nicoletti; Módulo 3 – Financiamento da Saúde: ferramenta de concretização do direito à saúde, Swedenberger Barbosa; Módulo 4 – Educação em Saúde, Luiza Aparecida Teixeira Costa e Dirce Guilhem; Módulo 5 – Acesso a medicamentos: direito garantido no Brasil?, Ramiro Nóbrega; Módulo 6 – Sistema Federativo e Saúde: descentralizar o SUS, Humberto Jacques de Medeiros.

          UNIDADE V – INSTITUIÇÕES E SAÚDE, Módulo 1 – Judicialização desestruturante: reveses de uma cultura jurídica obsoleta, Jairo Bisol; Módulo 2 – O Tribunal de Contas da União e os Conselhos de Saúde: possibilidades de cooperação nas ações de controle, Maria Antônia Ferraz Zelenovsky; Módulo 3 – Fiscalização da Saúde e um novo Direito Administrativo, Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira.

          UNIDADE VI – OS DESAFIOS EMERGENTES DO DIREITO À SAÚDE, Módulo 1 – Paradoxos da proteção jurídica da saúde, Laurindo Dias Minhoto; Módulo 2 – Terrorismo, direitos humanos e saúde mental: o caso do campo de prisioneiros de Guantánamo, Cristiano Paixão; Módulo 3 – Propriedade Intelectual e Patente Farmacêutica, Márcio Iorio Aranha; Módulo 4 – Preparação para emergências de Saúde Pública no Brasil, Eduardo Hage Carmo; Módulo 5 – Genoma, pesquisa com seres humanos e biotecnologia: proteção pelo direito, Volnei Garrafa; Módulo 6 – Saúde: direito ou mercadoria?, Guilherme Cintra.

            Assim, numa emergência composta de impulsos de exceção, o jurídico é chamado a se constituir como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso no País e à banalização da vida pela ação de governança absolutamente incompetente para agir no enfrentamento à pandemia, mesmo contra um Judiciário às vezes recalcitrante ainda claudicante por conta de seus desacertos recentes.

          É um alento em meio à desorientação funcional e errática de autoridades das quais um mínimo de coordenação devesse ser esperada, concedendo que não se atenham a intenções dolosas, constatar a mobilizada resposta social de defesa sanitária e de respeito à cidadania.

            Algo que ultrapassa “todos os limites” ao impulso da “estupidez assassina” que implica o próprio “presidente diante da pandemia de coronavírus” ao ponto de uma “irresponsabilidade delinquente”, que sequer finge “capacidade e maturidade para liderar a nação de 212 milhões de habitantes num momento dramático da sua trajetória coletiva”  É o que diz em editorial o Jornal Folha de São Paulo (O que Pensa a Folha, 12/12/2020), ao apostrofar: “Chega de molecagens com a vacina!”.

          Com mais de 180 mil pessoas que já morreram de Covid-19 no Brasil pela contagem dos estados, subestimada e com a epidemia voltando a sair do controle, o jornal considera “o presidente da República, sabotador de primeira hora das medidas sanitárias exigidas e principal responsável por esse conjunto de desgraças”, largando a população “abandonada pelo governo federal”, em “descaso homicida!”.

          Por isso começam as mobilizações da Sociedade Civil, tal como a campanha Vacinas Já!, lançada nesse 10 de dezembro (dia universal dos direitos humanos), pela Comissão Justiça e Paz de São Paulo  exatamente “pelo direito de todo ser humano à vacina gratuita contra o Covid-19”,  chamando o País a se unir “para assegurar o direito humano à vida , garantido pelo art. 5o da Constituição Federal”, pois “a vida de todo ser humano importa”.

            Assim, é com o valioso respeito e consideração ao acumulado democrático de políticas públicas e sociais, sobretudo na área de saúde, que desde a Constituição de 1988 foi considerada direito de todos e dever do Estado, por meio de um sistema único de atenção universal mantida pelo orçamento público.

            Ainda bem que se assiste nessa quadra de desconstrução de políticas, o engajamento para a defesa desse modelo de atenção, não só por meio de atuação de defesa do sistema público de saúde e de seu principal instrumento o SUS, como acontece agora com a Campanha O Brasil Precisa do SUS. Soa como uma canção ouvir Caetano Veloso entoar que no “Brasil tão desigual precisamos defender o SUS como nossa maior política pública social”.

          Uma nota de relevo para a edição. Todas as ilustrações, capa e entre-unidades são criações artísticas de portadores de sofrimento psíquico, cujos créditos autorais estão assinalados na obra. A seleção artística resultou do cuidado baseado na construção do sujeito considerando-o na sua integralidade e buscando sua inclusão social por intermédio da arte e novas linguagens.

          Essa disposição pode ser atribuída a uma das expressões fortes da concepção do SUS que, em seguida a sua implantação orgânico-participativa conforme um sistema de conselhos, para o exercício democrático-participativo, tanto deliberativo quanto no exercício do controle social da política, que tem se revelado tão rico na expansão desses fundamentos.

          Um aspecto eu gostaria de pôr em relevo, o que deriva da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS), designada na Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013, no que esta visa colocar as práticas populares em saúde em um plano mais amplo, de forma democrática e com participação social.

          Essa política, conforme o pactuado e expresso nessa regulamentação, reafirma o compromisso com a universalidade, a equidade, a integralidade e a efetiva participação popular no SUS, e propõe uma prática político-pedagógica que perpassa as ações voltadas para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a partir do diálogo entre a diversidade de saberes, valorizando os saberes populares, a ancestralidade, o incentivo à produção individual e coletiva de conhecimentos e a inserção destes no SUS.

          Notáveis, em termos de enunciado burocrático, os princípios que a orientam e que poderiam ser extraídos dos melhores repertórios do campo epistemológico que formam o acervo dos estudos sobre emancipação social: diálogo; amorosidade; problematização; construção compartilhada do conhecimento; emancipação; e compromisso com a construção do projeto democrático e popular.

          E pasme-se, é a norma que os designa em sua conceituação:

           Diálogo “é o encontro de conhecimentos construídos histórica e culturalmente por sujeitos, ou seja, o encontro desses sujeitos na intersubjetividade, que acontece quando cada um, de forma respeitosa, coloca o que sabe à disposição para ampliar o conhecimento crítico de ambos acerca da realidade, contribuindo com os processos de transformação e de humanização”.

          Amorosidade “é a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da sensibilidade, propiciando ir além do diálogo baseado apenas em conhecimentos e argumentações logicamente organizadas”.

          Problematização “implica a existência de relações dialógicas e propõe a construção de práticas em saúde alicerçadas na leitura e na análise crítica da realidade”.

          Construção compartilhada do conhecimento “consiste em processos comunicacionais e pedagógicos entre pessoas e grupos de saberes, culturas e inserções sociais diferentes, na perspectiva de compreender e transformar de modo coletivo as ações de saúde desde suas dimensões teóricas, políticas e práticas”.

          Emancipação “é um processo coletivo e compartilhado no qual pessoas e grupos conquistam a superação e a libertação de todas as formas de opressão, exploração, discriminação e violência ainda vigentes na sociedade e que produzem a desumanização e a determinação social do adoecimento”.

          Compromisso com a construção do projeto democrático e popular “é a reafirmação do compromisso com a construção de uma sociedade justa, solidária, democrática, igualitária, soberana e culturalmente diversa que somente será construída por meio da contribuição das lutas sociais e da garantia do direito universal à saúde no Brasil, tendo como protagonistas os sujeitos populares, seus grupos e movimentos, que historicamente foram silenciados e marginalizados”.

          Assim, numa emergência composta de impulsos de exceção, o Jurídico é chamado a se constituir como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso no País e à banalização da vida pela ação de governança absolutamente incompetente para agir no enfrentamento à pandemia.

          Mas a resposta cabal, contra essa incompetência delinquente (consta que o Tribunal Internacional Penal começa a examinar a denúncia de conduta genocida na omissão em face da saúde dos povos indígenas no contexto da pandemia), virá mesmo do social organizado. Aqui neste espaço da Coluna Lido para Você fiz referências a algumas dessas ações da sociedade organizada e também de edilidades inscritas em compromisso com a cidadania.  Três cidades em São Paulo acabam de receber prêmio de Cidade Destaque no Enfrentamento ao Covid19. Entre elas Araraquara, pela capacidade de testagem e de baixa letalidade e pela enorme contribuição municipal especialmente dos profissionais de saúde para fazer frente à crise sanitária instalada e crescente por falta de uma coordenação nacional.

          Também começa a Campanha #O Brasil Precisa do SUS, em defesa desse programa formidável atualmente sob ameaça em face da sanha neoliberal privatizante e da atitude anti-povo inscrita nas políticas sociais federais. A força acumulada pelo movimento sanitarista brasileiro que logrou imprimir na Constituição de 1988, o conceito de saúde como direito de todos e dever do Estado, bem público, fora do comércio, se mobiliza junto com intelectuais, artistas para a defesa de sua institucionalidade democrático-participativa (https://www.viomundo.com.br/blogdasaude/notaveis-da-saude-engenharia-advocacia-educacao-e-artes-convidam-hoje-as-14h-lancamento-da-campanha-pelo-sus-videos.html?fbclid=IwAR29X52MHvkPH0MYk_g8GZZlEnpVz0g79L1O1XdMP3mEEMhFWiZpSk-sfRU).

          Se inscreve nessa mobilização a obra Direito Sanitário. Coletânea em Homenagem à Profa. Dra. Maria Célia Delduque (Brasília: Matrioska Editora, 2020). Organizada por Sandra Mara Campos Alves e Amanda N. Lopes Espiñeira Lemos, reunindo um notável arco dos melhores intérpretes do tema, o livro é uma homenagem a uma das organizadoras da obra tema deste Lido para Você, mas é, antes de tudo, conforme diz Sandra na dedicatória manuscrita no exemplar que me ofertou, o resutado de um trabalho “sempre juntos na defesa do direito à saúde”.

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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

domingo, 20 de dezembro de 2020

Uma outra carta: Do Taller Sociología de la Imagen – Invierno 2019; Do olhar e dos beijos; Do Sabbat de Yule ou Litha – Equinócios Inverno ou Verão

 


Coimbra, Portugal, 20 de dezembro de 2020

Imagem 1 - Participantes do Taller de Invierno 2019 – Na Iglesia de Carabuco (Fonte: Grupo Jallalla) 

Para começar, parece que no início das minhas cartas gosto sempre de escrever: Prezadas/os, e bem... Hoje, farei diferente. Já comecei.

Não vou falar do tempo que passei sem dar notícias e que fiz o José Geraldo esperar. Sorte a minha em poder contar com uma mulher muito querida como aliada, que deve convencê-lo, eventualmente, de ainda resguardar alguma estima e confiança por mim.

Como as/os modernistas de 1922; Sei o que eu não quero – pelo menos, eu acho que sei. Então, começarei falando sobre o que NÃO pretendo fazer; Quase como no Manifesto Antropofágico: "Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. [...] Em comunicação com o solo. [...] A magia e a vida"; Coisas que NÃO vou fazer, porque quero:

– Escrever em um formato restrito e acadêmico;

Para isso, já me basta a tese e, realmente, essa daí já me faz passar por alguns maus bocados. Neste momento, não me interessa “[o] lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos [...]”, como diz Oswald de Andrade, no Manifesto DA POESIA PAU – BRASIL (1); Mesmo usando-me dele para falar que não quero citar autoras/es.

“Apenas brasileiros[as] de nossa época. [...] Práticos[as]. Experimentais. Poetas. [...] Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica.” (Andrade, 1924). Aqui, por favor e por amor, sem especialismos. É uma diversão, um prazer.

O que me interessa são fatos, e fatos, como disse Oswald, são os locais de existência da poesia. O que conversa na minha interpretação muito bem com o que Silvia Cusicanqui anuncia, tanto nos seus livros como, pessoalmente, no seu Taller Sociología de la Imagen – Invierno 2019, para as suas participantes – e eu, de maneira privilegiada, era uma delas.

Tudo é poesia e astrologia, ela diz. Temos que olhar, observar e aprender com o índio, astrólogo-poeta. Saber semear nossa comida – material e espiritual; Manual e intelectualmente.

“Indio, astrólogo, poeta que sabe del ruedo del sol y de la luna, eclipse, estrellas, cometas y hora, domingo, mes y año y de los cuatro vientos para sembrar la comida, desde antiguo.” (Cusicanqui, 2015: p. 209) Baseada na imagem de Waman Puma.

E o que comemos? Hoje, principalmente, comemos símbolos bem indigestos. Meu palpite é que nosso prato principal é feito de propagandas do Facebook e do YouTube, com calda de "tsunami de imagens" (Mondzain, 2012), do Instagram, e, de sobremesa, talvez uma dança no TikTok. Nosso cardápio anda, pelo menos para mim que sou mais analógica, bem mal...

Como disse a filósofa Marie José Mondzain: “Encontro muitas pessoas que adoram ser afogadas pelas imagens e até pelas palavras. Elas se esquecem de que, ao contrário, as imagens e as palavras, juntas, deveriam nos ajudar a não nos afogar” (2012: p. 142).

Portanto, as imagens e as palavras até poderiam ser ilhas que nos salvam e nos confortam – mesmo que as palavras, por vezes, mais encubram do que desvelem. Mas, atualmente, a maioria delas (imagens e palavras, que nem sempre andam juntas), nos afogam e paralisam. Dão medo. E quando temos medo, não processamos nada; Não nos restam ações, nem pensamentos, nem palavras. Ficamos reativas/os.
 
Digo tudo isso para arrodear e fugir do que foi prometido: Falar da minha experiência na Bolívia, em La Paz, ao ter participado, ao longo de um mês, do curso de Silvia Cusicanqui. Prometi compartilhar um pouco da minha experiência/aprendizado no Colectivx Ch'ixi (2), uma construção coletiva/comunitária da qual Cusicanqui faz parte, e falar um pouco sobre El Tambo – espaço físico onde ocorreram nossas aulas e sede do Colectivx. 

Entretanto, creio que terei de explicar melhor esse contexto rico em um outro momento. Não quero fazê-lo aqui. O que quero fazer é falar/escrever sobre uma das questões principais teórico-práticas do curso; O grandioso e difícil trabalho de saber/lapidar o olhar. Continuo com Oswald: “Contra o gabinetismo, a prática culta da vida [...] contra a cópia, pela invenção e pela surpresa. Uma nova perspectiva. Ver com olhos livres”. Olhar o que se está olhando – perceber, questionar o motivo pelo qual se vê; Desfamiliarizar o olhar; Desnaturalizá-lo. Começar a realizar uma investigação histórica sobre o que, como e porquê se olha. Questionar a prática da representação que transforma o mundo em objeto; A imagem em fetiche.

Em um dos seus exercícios, Silvia propôs-nos, como técnica, o treinamento do olhar. Sairíamos à rua à procura de descrever, a partir da linguagem escrita (um pequeno texto), uma cena não verbal baseada em gestos corporais que mereceriam nossa atenção. 

Aplicaríamos nossa olhada periférica e o olhar vagabundo, deveríamos deixar-nos vaguear até sermos captadas por algo “digno de ser narrado”.

Seríamos voyeurs – aquela/e que vê, sem participar. 

E é sobre isso que quero compartilhar. Sobre o exercício que entreguei. Sobre o que olhei e o que escrevi. Sobre minha presença. Pois, ao olhar, percebemos que somos olhadas. Percebemos o efeito do "ojo intruso". E, começamos a nos perceber, por meio da/o outrx. 

Abaixo segue o texto que apresentei à Silvia para, após leitura, concluir meu pensamento:

Taller Sociología de la Imagen – 2019 (invierno)
Profa. Silvia Rivera Cusicanqui

Vannessa Alves Carneiro; 11/07/2019 – La Paz, Bolívia
Revisado 14/11/2020

Imagem 2 - Sob a Joyeria Crystal (Fonte: Meu arquivo) 

Ejercicio I – Mirada y comunicación no verbal

Era uma manhã, ensolarada, de quarta-feira, em El Alto, La Paz, Bolívia. Estranhava tudo: As mil casas pequenas cor de montanha, a própria montanha com ponta de gelo, las casitas de los brujos, os cenários montados no meio da grande praça para tirar as fotos de família impressas na hora – com direito a llamacitas vivas y palomas blancas pintadas na paisagem do fundo fotográfico. Especialmente, estranhava o clima. Ao desembarcar do teleférico urbano mais alto e extenso do mundo, na estación 16 de Julio/Jach'A Qhathu, senti um pouco mais de frio. Disseram-me: “- É claro! É El Alto”. Estamos a 4.150 m de altitude. Dentro de uma paisagem distante, para mim, totalmente estranha, onde era-me tudo menos familiar: Língua, comidas, pessoas, vestimentas, las mantas y aguayos, el humo y las cholas. Entrando, sentindo-me desconfortável e perdida, com resquícios de mal de altura, dentro daquele caos funcional – onde quase tudo é vendido e exposto; Em tendas, prateleiras ou sobre panos junto ao chão. Ao mesmo tempo em que passam o lixeiro, as pessoas, os cães e mais pessoas.

 
Imagem 3 - Em El Alto; Las casitas de los brujos (Fonte: Meu arquivo) 

Processando, ainda, uma situação incômoda que acabei de vivenciar, quando, denunciada por meu corpo – minha fala, minha roupa e minha cara –, ao perguntar o preço de uma pilha e me recusar a comprar dando “gracias”, saí com a fala do vendedor imitando-me, em tom zombeteiro, e fazendo uma careta: “- Gracias”; Ele retruca. Sentindo meu ego ferido, deslocada, bombardeada pelo excesso de informação visual: Vende-se, compra-se, ouro, habitaciones con wifi, dentista; Exatamente, na esquina de uma encruzilhada, caí-me, como se caísse do céu, protegidos sob a placa “Joyeria Crystal”, beijando-se, infinitamente, dois jovens adolescentes: Olhos fechados, tão abraçados, tão agarrados, tão escondidos.

Paro, observo. A cena mexe comigo. Vejo o beijo (dado num canto, atrás de una tienda verde, que os protege e ao mesmo tempo os esconde da multidão que passa acelerada e não para como eles). Sincronizados estão; Pelos seus ritmos e suas jaquetas de couro pretas. Ela ligeiramente mais alta que ele, ele com a mão envolvendo a cintura dela, ela com a mão tocando no rosto dele. E o beijo eternooo, longoo, entregue. Imediatamente, reconheço tudo: Encruzilhada (el cruce) y el bejo. De deslocada do meu localismo, sou retida pela memória e bruscamente familiarizada. Recordo das diversas encruzilhadas, como aquelas, em que deixei meus ebós; Para amor, para proteção, como forma de zelo e cuidado com meus guias, pombas-gira, cigana, exus, meus protetores. Encruzilhadas onde habitam o povo da noite, guardiões dos portais, do axé, mensageiros e cumpridores da lei. Os quais peço, quase a todo tempo, proteção. Onde se entrega, entre outras coisas, vela vermelha e preta, cachaça e fumo, para exu homem, e cidra, cigarrilha e rosas vermelhas para exu mulher.

                                          Imagem 4 - Em El Alto; Encruzilhadas (Fonte: Meu arquivo) 

E o beijo?! Continuava, intermitente. Como disse, era lugar de passagem. Eu tinha que passar. Todos estavam passando. Não pude parar. Resguardados estavam eles, não eu. Passei, mas voltei – uma, duas e três vezes – até eles desaparecerem. Pelo que vi, o fôlego parecia ser o mesmo. Repito: Intermitente. Pensei mil hipóteses: Seriam namorados? Se sim, namorariam escondido? Estariam fugindo? Do que? De quem? Seria uma despedida ou um reencontro? Não parecia se tratar de um parar súbito, de uma eventual demonstração de carinho entre parejas. Aquela cena, nitidamente, só acontecia quando o tempo se perde e se tem tudo o que deseja nas mãos e, literalmente, bem diante de si. 

Minha memória ataca novamente e lembro-me de uma primeira paixão. Para nós, o tempo não representava nada. Consequências, causas e efeitos. Nada era pensado, só sentido. Só o instante, o beijo, valia. E, como se passasse por um portal, fui e voltei décadas, compartilhando, como cúmplice, o mesmo segredo daquela sensação há muito experimentada. O segredo de saber o que é ter o pleno desejo saciado, atendido. Essa sensação tão bem conhecida, mas, agora, perdida em um tempo longínquo. Pergunto-me será que um dia voltarei a senti-la? Ou essa sensação de totalidade é digna somente de um tempo/espaço específico que não volta? De súbito, retorno do meu conflito amigo e lembro-me do descontínuo conforto (ou contínuo desconforto) com a atual paisagem.


Imagem 5 - Cenários fotográficos: Eu e a lhama (Fonte: Meu arquivo) 

 Imagem 6 - Sessão de fim de curso; Compartindo imagens e comidas (Fonte: Grupo Jallalla

Imagem 7 - Subindo o serro de Tuturasi; Rituais/Pedindo permissão de passagem:"La mesa negra(Fonte: Meu arquivo) 

Ao reler esse exercício de uma página, contemplei uma certa integração dos seis sentidos e revi a minha própria construção subjetiva e cognoscente. Ao olhar o casal de enamorados, acessei minhas memórias familiares, sensações e sentimentos profundos que não entrava em contato. E isso, pode-se dizer, que foi uma espécie de catarse do que significou a minha vivência na Bolívia: Esse olhar questionador, que ao se interessar pela/o outra/o, fala mais de mim e para mim, em um denso momento de autoreencontro. 

É só por meio do autoconhecimento e do contato com nossas feridas, aquelas que não acessamos, que podemos nos desconstruir e nos reescrever. E isso, não é um exercício individual, é coletivo. Necessitamos sempre da/o outra/o; Da relação.

Não pude deixar de notar como a minha vida mudou de julho de 2019 para cá. 

Muitas pessoas lindas cruzaram o meu caminho; Na Bolívia, como a própia Sílvia, a Bea e sua família (a Nora e a Sumaya), o Ivan, o Marco Arnez, a Elsa, a Catalina, a Paula, a Meli, a Ana, a Yanette, a Lu, a Viole e todas as meninas do Taller Video Documental – com as quais criamos, juntas, um especial curta-metragem que fala de festa/alegria e de resistência/luta, "Do dia 16 de Julho, dia de La Paz", em um encontro a partir de "16 miradas"https://www.facebook.com/malyevadas/videos/526592538077642/; E as meninas e os meninos do Wak’as y Lenguajes de la Pacha: Ritualidad, memoria y reconexión con la vida, com as/os quais fui à Waka ancestral Jach’a Tuturasi, em cima do Lago Titicaca (Ancoraimes, província de Omasuyos), subindo a pé 4.500 metros de altura;

No Brasil, a Renata, a Guiga, o Mateus, a Nat, a Helen, o Leandro, a Fabi, a Alexandra, a Martinha, a Eliane, o Sérgio, a Lúcia, as Leilas, a Edna, a Lilian, a Lourdes, o Wlad, a Mari, o Max, a Lu e outras tantas pessoas incríveis que reconheci, em especial as crianças com as quais desenvolvi laços de afeto e que fizeram parte desse grande encontro que foi, para mim, voltar à minha cidade natal, Brasília, para a pesquisa de campo na escola Comunidade de Aprendizagem do Paranoá (CAP). E, no meio desse caminho, o estudo veio acompanhado de um novo amor que me fez ressignificar muitos questionamentos e dores – e que se transformou em coisas distintas ao longo do seu processo. 

Engraçado como pensamos, por vezes, estar anestesiadas/os e vem a vida e surpreende. Sempre; Para o bem ou mal. Sempre com uma lição e aprendizado. Porque, como diz Cusicanqui, a experiência do conhecimento vivido nos escreve (e é escrita nas nossas peles, adendo meu). Se esquecermos dessas experiências, que são formas de conhecimento, somos tábuas rasas. Não se pode esquecer quem se é e de onde se veio. E foi na Bolívia, com suas multidimensões, que senti as minhas/nossas raízes de Latinoamérica.

2020 foi um ano muito difícil, coletivamente falando. De muitos desafios, perdas e dores; Mas, também, para quem conseguiu (ou teve a oportunidade) de trazer luz/consciência para a inconsciência, foi um ano de desvelamentos e de contatos íntimos com nosso ser e as nossas sombras. E é só no útero, no completo vazio, na escuridão, que há gestação.  

Neste final de ano, cuja virada de ciclo ser dará, principalmente, pelo solstício de amanhã, segunda-feira, dia 21/12/20; Inverno ou verão, Sabbat de Yule ou Litha, tempo de nascimento ou morte simbólica; De rituais. Ocorrerá o que as/os astronômas/os estão chamando de “a grande conjunção planetária". Júpiter e Saturno estarão tão próximos um do outro que poderão criar uma ilusão de ótica, vista a olho nu, de “planeta duplo” ou justaposto – Ch'ixi. Essa observação só foi possível há quase 800 anos, na Idade Média (em 1226) (3). Marca-se, assim, o início da nova era de aquário. Uma era do coletivo e do comunitário; Do conhecimento e da nova consciência; Era do sair de si. Não importa; O que eu desejo para mim e para vocês (especialmente às/aos amigas/os que mandei esta carta), é que estejam ao lado das pessoas realmente queridas e que importam neste final/início de ciclo espiralado. Ao lado, quero dizer, em contato, perto ou, em tempos de corona, a distância - não importa metros, kms, cidades, países, continentes. O importante é saber que se têm pessoas que se ama e que se quer ver bem, e que o cuidado delas é o que faz com que a vida esteja no centro (Reyes; Pascual; Herrero; Gascó, 2019).  

O privilégio de ter 43 anos de casados, apaixonados, como Nair e José Geraldo, é para poucos. Agora, redescobrir, como foi o meu caso, que a paixão, o beijo e O AMOR vai além de parejas e é um sentimento que extravasa e que ALIMENTA. Uma sensação compartida que nutre ALMAS próximas por afinidade; Famílias, amigas/os, irmãs/ãos e mais velhas/os. É o que eu desejo à você e a todas/todos, nesta virada. Reconhecer e ter o poder de fazer magia, de verbalizar esse afeto e de se comprometer com ele; São atos imprescindíveis e é o que sustenta a construção do nosso eixo pessoal. 

E o desejo, que vai além da imagem superficial e se aprofunda, faz parte da microfísica do poder, é uma “[...] rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir” (Foucault, 2009: p. 8). 

E o meu desejo, como diz a minha musa Bethânia, "faz subir marés de sal e sortilégio".

Vannessa Carneiro

Doutoranda do Programa de Doutoramento em Direitos Humanos nas Sociedades Contemporâneas – Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra
Bolsista da CAPES – Brasil
Membro do Grupo de Pesquisa do CNPq "Direitos Humanos, Educação, Mediação e Movimentos Sociais”

Notas de rodapé:

1. Disponível em: https://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf. Acessado em Dezembro de 2020.

2. Disponível em: http://colectivachixi.blogspot.com/. Acessado em Dezembro de 2020.


Referências bibliográficas:

Cusicanqui, S. R. (2015). Sociología de la imagen: Miradas chíxi desde la historia andina. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: Tinta Limón.

Foucault, M. (2009). Verdade e Poder. Em M. Foucault, & Graal (Ed.), Microfísica do Poder (R. Machado, Trad., pp. 1-14). Rio de Janeiro, Brasil.

Mondzain, M. J. (2012). O que você vê? Uma conversa filosófica. (M. Haddad, Trad.) Belo Horizonte, Brasil: Autêntica.

Reyes, M. G; Pascual, M.; Herrero, Y; Gascó, E. (2019). La vida en el centro: Voces y relatos ecofeministas. Madrid, Espanha: Libros en Acción.