sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

 

Lealdade ao Dever Constitucional de Proteção: a Funai, os Índios e o Direito

  •  em 



https://apiboficial.org/2021/08/03/normativa-da-funai-que-fragiliza-protecao-de-terras-indigenas-esta-suspensa-em-8-estados-da-uniao/

 

Chamam a atenção notícias seguidas que indicam uma continuada postura de conflito entre a Funai, o órgão governamental incumbido da proteção dos direitos indígenas, o sujeito da diretriz constitucional de reconhecimento e proteção.

 

Anoto alguns destaques nesse assunto: 

 

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/10/presidente-da-funai-provoca-investigacao-da-pf-contra-servidor-que-defendeu-indios.shtml

 

https://oglobo.globo.com/politica/presidente-da-funai-diz-que-vai-processar-indigena-que-integrou-comitiva-de-bolsonaro-na-onu-24191574

 

https://apiboficial.org/2021/10/05/apib-e-dpu-pedem-afastamento-do-presidente-da-funai-na-justica/.  

 

Esse último registro dá conta de que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ingressou, no marco dos 33 anos da promulgação da Constituição Federal (CF), com uma Ação Civil Pública (ACP) na Justiça Federal de Brasília (JF-DF) para pedir o afastamento do Presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai).

 

 

Não só nesse tema, como igualmente na questão do racismo, à luz do que se passa, também como conflito de interesses entre a Fundação Palmares e as mobilizações antirracistas no Brasil, essa postura antidemocrática e hostil à Constituição fica cada vez mais evidente.

 

 

Não é uma postura nova, ela se revela em toda vocação autoritária e anti-povo. Ainda que a Constituição atual, artigos 231 e 232 tenha reconhecido a capacidade ativa dos índios, ela manteve o dever de proteção pelo Estado dos direitos originários desses povos, tanto que atribuiu ao Ministério Público acompanhar todos os atos que digam respeito à salvaguarda desses direitos e manteve como obrigatoriedade governamental, não havendo mais o regime de tutela, de exercitar essa obrigação, atribuindo a Fundação Nacional do Índio (Funai) como órgão indigenista oficial responsável pela promoção e proteção aos direitos dos povos indígenas de todo o território nacional.

 

 

Ora, é legítimo o repúdio indígena aos posicionamentos hostis que a partir desse órgão, começam a caracterizar a quebra de lealdade ao dever constitucional de Proteção, violando os direitos indígenas.

 

 

É preciso lembrar que mesmo no curso da ditadura do regime imposto em 1964 e ainda sob a égide de uma Constituição de traços colonialistas, que não reconhecia a capacidade plena aos indígenas, mantendo-os subalternos e tutelados, nunca se perdeu o horizonte emancipatório de respeito aos seus direitos, usos e tradições originários.

 

 

Num artigo que publiquei no Jornal de Brasília, edição de 29/04/1984 –Os Índios e o Direito –trato desse tema. Nele aludo a decisão proferida em mandado de segurança que estudantes terenas, representados por membros da Comissão de Direitos Humanos, da OAB-DF, impetraram contra a Funai, ocasião para que o íntegro juiz Dario Abranches Viotti, da Justiça Federal em Brasília, reconhecendo a incompatibilidade de interesses entre o tutor e seus assistidos, nomeou curador especial um dos advogados, para o fim específico de representa-los na ação. Essa curatela especial coube a mim, um dos advogados da OAB, investido no processo pelo magistrado.

 

 

Essa decisão não trouxe, a rigor, eu disse no artigo, nenhuma inovação técnica. A remoção do tutor, no âmbito da legislação cível, ou a interdição de direitos, como pena acessória, nos casos de incompatibilidade manifesta, na esfera penal, implicam na perda do exercício da tutela, constituindo alternativas adequadas para a verificação da responsabilidade do tutor em face de suas obrigações para com o tutelado.

 

 

Tanto é assim que, no caso relatado, o Juiz simplesmente adotou a solução sugerida pela lei processual civil, identificando, na situação litigiosa, uma hipótese de colisão de interesses.

 

 

O inusitado da medida não chega a ser, sequer, o seu pioneirismo jurisprudencial, embora mereça relevo a determinação, no particular, que resultou em abandono de postura, evidentemente inibida da magistratura brasileira. O que repercute nessa decisão, sem precedente a nível judiciário, é o seu alcance instrumental para a defesa de interesses e direitos diferenciados no seio da sociedade civil, como garantia de acesso à Justiça de segmentos sociais dela alienados.

 

 

Com efeito, relativamente às comunidades indígenas, a decisão rompe, definitivamente, o círculo férreo com o qual o tutor especial procura privatizar as relações entre os índios e o Estado, isolando as suas reivindicações específicas do conjunto das lutas gerais da sociedade pelos direitos de cidadania.

 

 

A decisão, em todo o seu alcance, aponta para o caráter público dessas reivindicações e confirma o Poder Judiciário na condição de instância privilegiada para a fundamentação jurídica de suas implicações não vislumbradas. Assim, por exemplo, o sentido da fidelidade como categoria cogente do tipo de tutela especial, suscetível de avaliação plena em sua peculiaridade teleológica.

 

 

Há, assim, incindível entre cidadania e Justiça. Esse vínculo, aliás, foi acentuado pelo ex-Presidente da OAB-DF Antonio Carlos Sigmaringa Seixas (pai do advogado Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, patrono do Grupo Prerrogativas que reúne juristas pela justiça e pela democracia) em sua bela tese sobre a democratização da justiça, apresentada no 1º Encontro de Advogados do Distrito Federal. Nela, mostra o autor o quanto a estrutura judiciária reflete a face do Estado que a organiza, esclarecendo que a condição para a concretização de uma justiça democrática é a própria reconstrução democrática da sociedade. Tanto mais, diz ele, quanto seja necessário para elaborar, inclusive, teoricamente, instrumentos jurídicos de intervenção compatíveis com a exigência atual da prática da cidadania.

 

 

Nesse contexto é que, demonstra Sigmaringa Seixas, se coloca a necessidade imperiosa de ampliação da tutela jurisdicional para a garantia de acesso à Justiça de pretensões fundadas na defesa de interesses difusos ou coletivos da sociedade.

 

 

E este é, precisamente, o campo de exercício da concepção atualizada da cidadania, compreendida como espaço de emergência de novos direitos. Na verdade, um processo de busca de reconhecimento de valores, elaborados a partir das contradições da estrutura econômico-social e que reclamam instrumentalização política e fundamentação jurídica, até como direitos humanos.

 

 

O que fez o Juiz Dario Abranches Viotti, aliás um homem conservador, mas um juiz íntegro, cujo desvelo pela justiça mais expõettttt os maus juízes que oficiam hoje no país (conferir aqui no Jornal Brasil Popular o meu artigohttps://www.brasilpopular.com/os-integros-e-os-maus-juizes/), antes de tudo, simplesmente, um juiz. Essa estirpe de juízes, lembra o moleiro citado por Rudolf Jhering, que há ainda, “em Berlim” e em Brasília. 

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

 


quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

 

Deu Nisso! Cláudio Almeida

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

Deu Nisso! Cláudio Almeida. Belo Horizonte: Edição do Autor. Gráfica Rede, Verão de 2021, 341 p.

 

 

Quando José Nunes, o editor do Sítio Como eu Escrevo?! – https://comoeuescrevo.com/arquivo/ -, pediu-me para eu explicar o meu processo de escrita (https://comoeuescrevo.com/jose-geraldo-de-sousa-junior/), acabei por sintetizá-lo na constatação de que a escrita é um diário do cotidiano, ainda que ao modo do camponês de Saramago. Antes de tudo, “uma disposição, um estar atento, um modo de olhar que surpreenda o que se exponha diante dos olhos, tal como o camponês de Saramago, que esculpe a madeira com a disposição de que a figura vai sair em face do talho, não porque ele a desenhou mentalmente, mas porque mentalmente ele estava disponível para reconhecê-la, no momento em que a madeira, na sua linguagem própria, a expressasse. Não sei se isso está escrito em seus livros, mas ouvi do próprio escritor, em seu discurso de agradecimento quando recebeu o honoris causa na UnB, em 1997 e descreveu o seu processo de escrita”.

Mas, eu acrescento, um cotidiano que é um ir e vir entre a existência e a consciência, entre o sentir e o agir, entre o filosofar e o fazer a crônica do mundo. Tratei desse trânsito em minha coluna Lido para Você, ao comentar a dissertação de Mestrado de Luiza de Andrade Penido (PENIDO, Luiza de Andrade, Direitos Humanos nas Entrelinhas das Crônicas de Carlos Drummond de Andrade (Publicadas no Caderno B do Jornal do Brasil, entre 1969-70 e 1983-84), Dissertação de Mestrado. Orientador Menelick de Carvalho Netto. Brasília: Universidade de Brasília/CEAM/PPGDH-Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, 2020), conforme http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-nas-entrelinhas-das-cronicas-de-carlos-drummond-de-andrade/: “É nesse processo que a Autora encarta, agora já armada para desentranhar de seus contextos as entrelinhas dessas emergências, o que faz a partir das crônicas de Carlos Drummond de Andrade, “o enlace entre direitos humanos e literatura”, que em seu narrador-autor-guia, é feito de sentimento do mundo, talvez porque, conforme ele próprio se revela, “de um modo geral falo em minhas crônicas do que me revolta” (p. 82). E a revolta, mostrou Albert Camus (O Homem Revoltado), é o núcleo onde se instala o sentimento de injustiça que, em Drummond, com as contradições de um pensamento forjado em seu tempo, diz a Autora, carrega uma proposta para “novos modos de ver, mostrando sua expectativa por uma experiência mais humanista” (p. 133)”.

Posso dizer que reconheço em Cláudio Almeida, essa disposição de trânsito, que enlaça mundo e sentimento de mundo, no seu agir político e nas suas muitas formas de o exprimir. Conforme li na orelha dessas crônicas Deu Nisso!, Claúdio nasceu e teceu os nós que formam o emaranhado de uma vida plena, rica em referências e chamados intersubjetivos, a partir de um percurso da família de origem à família que ele próprio lega, já rica em descendentes. Não por acaso reuniu os elementos para seus livros de poesia e os de crônicas, estes que aqui se destacam deixando de lado os escritos técnicos, profissionais, políticos e, em especial, aqueles que se integram a interpretar a memória e a história política brasileira e da Universidade de Brasília. O primeiro “Viu no que deu?” e este “Deu Nisso!”.

Para situar o Autor valho-me da orelha do livro. Nela há uma nota biobibliográfica que pode ser tomada como uma apresentação do escritor: Cláudio Almeida, nasceu em Belo Horizonte, de onde trouxe na bagagem a paixão pelo Galo (para sua alegria, o ano que publica o livro é o mesmo que marca a grande vitória do Galo como campeão brasileiro). Foi para Brasília, em 1960, por ocasião da transferência da Capital Federal, do Rio de Janeiro para o planalto, pois seu pai era Deputado Federal por Minas Gerais. Estudou nas principais instituições públicas do Distrito Federal, como o CASEB, Elefante Branco, CIEM, Universidade de Brasília e Universidade do Distrito Federal, esta privada, participando sempre das atividades políticas dos Diretórios e Centros Acadêmicos, com atuação marcante na luta contra a ditadura militar. Tem formação em economia, direito e história e especialização em Planejamento Regional, Global e Setorial, com pós-graduação em Planejamento Regional e Direito Legislativo. Trabalhou no Ministério dos Transportes, do Interior e Organismos Internacionais, como OEA, PNUD e ILPES. Aposentado pelo Senado Federal, como Consultor Legislativo e continua advogando. Fez parte da Comissão da Verdade Anísio Teixeira, da Universidade de Brasília, atuando também nas Comissões da Verdade de Minas Gerais e São Paulo. Pai de quatro filhos, Rafael, Raquel, Renata e Giovanna, seis netos e uma bisneta. Publicou o livro de crônicas, “Viu no que deu?”, de poesias, “Vácuo” e a ficção O Terapeuta – um grupo de terapia. 

Já na Apresentação do livro Cláudio se indaga: “Taí mais uma grande pretensão minha. Outro livro de crônicas. Quando me lembro dos cronistas contemporâneos de Minas Gerais, tenho que pedir uma licença literária especial, pois não estarei naquele rol, mas apenas agradecer seus ensinamentos, instrumentais fundamentais para me aproximar deste grupo tão seleto, formado por escritores. A primeira experiência possibilitou-me transpor esse tapume quase indevassável, que é o ato de publicar algo e ser objeto de crítica, tornar-se transparente. Pois bem, esse suporte veio com o “Viu no que deu?”, de crônicas, todas elas vivenciadas e adaptadas para publicação. A resposta foi positiva, principalmente por parte das pessoas que me procuraram para demonstrar seu impacto diante daquele trabalho”.

A narrativa deste belo livro, assim, de resto, em geral em livros de crônicas, deriva da memória do autor, não apenas sobre fatos ocorridos mas do modo como ele os recorda (Garcia Márquez, Viver para Contar). Tal como já o mencionei (http://estadodedireito.com.br/meninos-do-rio-vermelho/), não se trata artificializar, de inventar a vida, mas é uma experiência certamente recriada pela memória que descobre significados marcantes na vida, em reminiscências que deslumbraram, emocionaram, fizeram sofrer, e algumas enlutaram, no roldão das profundas transformações que alcançaram o itinerário, sendo as crônicas como que fragmentos, fios, entrelinhas que se desenrolam entretecendo a existência.

Presente no livro com texto prefacial, nosso documentarista maior Vladimir Carvalho, preciso nas imagens e nos seus roteiros, apreende o movimento fluente das crônicas: “Falando de si e de terceiros, o cronista soube tratá-los com ternura e tocante solidariedade, e até com romântico lirismo, que, sem dúvida, atenua a impressão de que a caudal da vida passa como um rio desenfreado, que por vezes emana da força dessas crônicas”.

Na mesma condição prefacial – a seu pedido escrevi para o livro, que terá suas sessões de lançamento a partir de março, o texto de abertura Então, a Vida Deu Nisso!. Prefácio, mas podia ser também Posfácio. Nele digo que Claúdio traz com este livro, nas suas crônicas, seguindo Lobo Antunes, a densidade de seus personagens, encarnando humanamente as figuras de sua memória, não fosse a memória em sentido filosófico o outro campo de desvendamento a que o autor se dedica, como membro da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília (http://estadodedireito.com.br/relatorio-da-comissao-anisio-teixeira-de-memoria-e-verdade-da-universidade-de-brasilia/).

O próprio Claúdio o diz: “Como no primeiro livro, todas as crônicas já estavam prontas em minha cabeça, faltando apenas um empurrão para escrevê-las. E deu nisso! Nelas estão consolidadas as circunstâncias e meus momentos de vida”.    Em Deu Nisso!, assim como, antes, em Viu no que Deu!, Claúdio mostra que não só sabe lidar  com a matéria do escritor, mas dominar o ofício. Explico-me. Há algum tempo li, na Folha de São Paulo, uma entrevista com o escritor português Lobo Antunes, que rivaliza hoje com Saramago em Portugal. Lobo Antunes, discorrendo sobre o seu ofício salienta que todos os seus livros (e eu diria, todos os livros) estão carregados de autobiografia.  O livro de Claúdio está também carregado de autobiografia mas, como diz o escritor português, revelando a condição de verdadeiro escritor exatamente para ser mais ainda profundamente autobiográfico porque começa a “se libertar desta carga” de autobiografia. Quer dizer, para além da autobiografia e das ideias que organiza, ele mostra saber lidar com o único que faz o escritor de verdade escritor, as palavras. E o faz como poucos, com delicadeza, com sensibilidade, com sentido de humanidade

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

 

Coluna: O Direito achado nas ruas, campos, rios e florestas amapaenses.*

João Guilherme Lages Mendes

Professor universitário da UNIFAP

Graduado pela UFPa; Mestrando da UnB

Desembargador do TJAP

Vice-Presidente e Corregedor Eleitoral do TRE/AP

 

Apresentação do ‘Direito achado nas ruas, campos, rios e florestas amapaenses’.

O Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB) e o Instituto Federal do Amapá (IFAP), em parceria com a Escola Judicial do TJAP (EJAP) realizam, virtualmente, o curso de Mestrado Interinstitucional (MINTER), inaugurado por edital para preenchimento de 27 vagas, dentre as quais 25 de ampla concorrência e duas destinadas às cotas raciais e indígenas.

 

Lograram êxito na aprovação Marlucio de Sousa Nascimento; Esclepíades de Oliveira Neto; Marcos Daniel Colares Barrocas; Eliel Cleberson da Silva Nery; Dheyme Melo de Lima; Cássio Paraense Borges; Lucas Bitencourt de Souza; Ulisses Paulo Lobato Gomes Júnior; Paulo César do Vale Madeira; João Guilherme Lages Mendes; Emílio Balieiro de Souza; Lêda Simone Lima Rodrigues; Naif José Maués Naif Daibes; Moisés Ferreira Diniz; Fabiana da Silva Oliveira; Andressa Barbosa Silva Gurgel do Amaral; Antonio Jamerson Mendes da Rocha; Brenno Marlon Oliveira da Silva; Phylipe Marques Santiago; Joelma Veneranda de Carvalho; Sônia Regina dos Santos Ribeiro; Antonice Pinho de Melo; Adão Joel Gomes de Carvalho; Angela Do Socorro Paiva Ferreira; Antero da Gama Machado; Anibal dos Santos Dias e Lucien Rocha Lucien.

 

O curso organiza-se em uma área de concentração intitulada “Direito, Estado e Constituição”, com cinco linhas de pesquisa (MOVIMENTOS SOCIAIS, CONFLITO E DIREITOS HUMANOS; CONSTITUIÇÃO E DEMOCRACIA; INTERNACIONALIZAÇÃO, TRABALHO E SUSTENTABILIDADE; TRANSFORMAÇÕES NA ORDEM SOCIAL E ECONÔMICA E REGULAÇÃO e CRIMINOLOGIA, ESTUDOS ÉTNICOS-RACIAIS E DE GÊNERO), sendo ofertadas seis disciplinas 1) Prática Ensino e Formação em Direito (Prof.: Fabiano Hartmann Peixoto); 2) Filosofia Política e Direito Constitucional (Prof.: Guilherme Scotti Rodrigues); 3) O Direito Achado na Rua (Prof.: José Geraldo de Sousa Junior); 4) Direito e Análise de Políticas Públicas (Prof.: Ana Cláudia Farranha); 5) Direito internacional (Prof.: Inez Lopes) e 6) Justiça de Transição no Brasil (Prof.: Eneá de Stutz e Almeida), totalizando 24 créditos.

 

As aulas iniciaram-se em agosto/2021 e, até dezembro próximo passado, concluímos 8 créditos (duas disciplinas). No último dia 18 iniciamos a terceira denominada ‘O Direito Achado na Rua’, com o Professor Titular da UnB, o Doutor JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR, que ensina, faz extensão e pesquisa na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito, principalmente nos seguintes temas: direito achado na rua, direito, cidadania, direitos humanos e justiça, cujo currículo pode ser visualizado na Plataforma Lattes (https://lattes.cnpq.br/).

 

A expressão "O Direito Achado na Rua" foi criada por Roberto Lyra Filho, a partir de seus estudos de teoria jurídica, social e criminológica, constituindo-se numa das mais antigas linhas de pesquisa da UnB (1987), certificada pelo CNPq. Com a morte de Lyra Filho, e sob coordenação dos professores José Geraldo Sousa Junior e Alexandre Bernardino Costa, o Direito Achado na Rua foi implementado em 1987 como curso à distância coordenado pelo Núcleo de Estudo para a Paz e Direitos Humanos (NEP) e pelo Centro de educação à distância (CEAD), da UnB.

 

No mesmo ano, foi lançado o livro Introdução Crítica ao Direito, que viria a se tornar o primeiro volume de uma série de – até agora – dez livros denominada O Direito Achado na Rua, que tem por objetivo pensar o Direito derivado da ação dos movimentos sociais a partir de uma perspectiva que o entende como uma “legítima organização social da liberdade", intervindo na realidade prática com a produção de textos a partir de estudos e pesquisas realizadas por seus “operatores” (ciência, estudo e prática jurídica).

 

Enquanto movimento político-teórico e sociológico-jurídico surgido a partir desta visão, que toma forma na Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), o Direito Achado na Rua não se reduz ao jusnaturalismo ou ao positivismo jurídico, pois busca um parâmetro de verificação de validade social axiológica de normas jurídicas individuais ou de um dado ordenamento jurídico a partir do socialismo democrático e do materialismo histórico e dialético. Vale dizer, apresenta uma visão dialética do Direito, num processo de constante transformação e mudança dentro de um vetor histórico, em contraposição a uma visão pretensamente fixa e dogmática, a ponto de obter reconhecimento nacional e internacional, tornando-se referência político-epistemológica (J.J. Gomes Canotilho).

 

Articulando nos planos teórico e prático o potencial emancipatório do direito, compreendido como "a enunciação de princípios de uma legítima organização social da liberdade" e a partir da concepção teórica do pluralismo jurídico, o Direito Achado na Rua estimula trabalhos em três dimensões: o conhecimento do direito e suas formas de difusão, como a educação jurídica; o acesso à justiça, incluindo estratégias de defesa e produção de direitos socialmente constituídos pelos sujeitos coletivos de direito; e os direitos humanos.

 

E é exatamente neste contexto que surgiu a ideia desta coluna - O Direito achado nas ruas, campos, rios e florestas amapaenses, avalizada pelo Magnífico Professor José Geraldo – Magnífico mesmo, na verdadeira acepção da palavra, porque foi reitor da UnB entre 2008 a 2012 – e sob a coordenação e orientação dele e de nossa estimada Professora Eneá de Stutz e Almeida, que nos acompanha, incentiva e aposta no potencial desse MINTER, que vimos oferecer aos leitores deste prestimoso jornal o fruto de nossas observações, nossos estudos e pesquisas, enfim, nosso aprendizado, que nos está oportunizando a UnB, o IFAP e o TJAP.

 

A realização de um Mestrado em Direito, em especial de um Mestrado fora da sede da Unidade de Ensino promotora, exige um substancial aporte financeiro e uma dedicação fora do comum por parte de discentes e docentes. De nossa parte, prestando contas aos nossos patrocinadores e dando um feed back social a todo esse empreendimento, surge o compromisso de alimentar semanalmente o Jornal a Gazeta com notícias de nossa produção científica, material jurídico-acadêmico de qualidade, vinculados à nossa realidade tucuju, em linguagem simples, acessível, que sem perder o caráter que se espera de uma publicação jornalística, empenhar-se-á em não deixar de lado a profundidade epistemológica de nossas observações.

 

Neste contexto, em nome das entidades promotoras (UnB, IFAP e TJAP) e todos os professores do MINTER (Fabiano Hartmann Peixoto, Guilherme Scotti Rodrigues, José Geraldo de Sousa Junior, Ana Cláudia Farranha, Inez Lopes e Eneá de Stutz e Almeida), que nos orientam e conduzem neste caminho, agradecemos o espaço que nos abre a Diretoria deste renomado Jornal a Gazeta, que incondicionalmente apostou na ideia seguramente por acreditar que este projeto vai ao encontro do seu qualificado público, mais de 4 milhões de leitores em todos os quadrantes brasileiros, alcançados instantaneamente a cada disparo eletrônico via WatsApp.

 

Enfim, formalizados os agradecimentos, firmamos nosso compromisso de apresentar semanalmente, nossas conclusões, fruto de nossas observações, estudos e pesquisas. Fica o convite a todas e todos a nos prestigiar, acompanhando-nos, aos domingos, nessa coluna que nasce hoje com o nome “O Direito achado nas ruas, campos, rios e florestas amapaenses”.

 

Esperamos que a nossa produção, nossas observações e reflexões, sirvam e contribuam para uma sociedade mais solidária e plural.

* Texto inaugural da Coluna com o mesmo título publicado na Gazeta do Amapá, edição de 23/01/2022, chamada de capa e página 17.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

 

Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

NOLETO, Mauro. Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2021, 176 p.

                            

 

         Tomando a descrição do próprio Autor na página da Editora, temos que o livro objeto deste Lido para Você, cuida de estudo que examina a categoria teórica fundante que perpassa de forma contraditória e reveladora o movimento de construção da ciência jurídica: o sujeito de direito. Conforme o próprio Autor:

 “a pretensão foi de oxigenação crítica do conceito, indevidamente apropriado pela dogmática, que, de maneira nada sutil, vem lhe cobrindo com véus deformantes. Minha hipótese é a do esgotamento da visão moderna de subjetividade jurídica, evidenciada pela crise maior do próprio Direito e de sua ciência dogmática. Parto do humanismo dialético, proposto por Lyra Filho como filosofia da Nova Escola Jurídica Brasileira, mostrando mais de perto o progressivo esvaziamento ético da noção de sujeito de direito, aprisionado pelo falso dilema das ideologias jusnaturalista e positivista: entre ser sujeito de sua própria emancipação ou apenas um objeto opaco da normatividade. Um dilema construído sob o pano de fundo do humanismo idealista inviabilizado pelas contradições da modernidade capitalista. Analiso a temática dos direitos (subjetivos) humanos enquanto bases para uma práxis jurídica emancipatória, na qual a hermenêutica pode assumir um papel de destaque no reenquadramento dos significados jurídicos das práticas sociais, conforme as pautas éticas de realização de uma ordem democrática. Os direitos humanos são encarados aqui sob a luz de sua historicidade e complexidade, afastando-se as interpretações idealistas e naturalizadas”.

Ao me debruçar sobre o livro de Mauro Noleto, para escrever um prefácio a seu convite, não pude deixar de estabelecer uma ligação, quase de continuidade, e um trabalho anterior de Mauro: Subjetividade Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, que também prefaciei. Nesse texto, de 1998, Mauro já sustentava não ser mais possível aceitar que a questão da titularidade de direitos seja respondida abstrata e formalmente. Em outras palavras, dizer que todos são titulares de direitos fundamentais, como declara a letra da Constituição, não quer dizer que todos exercemos efetivamente os mesmos direitos em igualdade de condições, com a mesma intensidade e simultaneamente, ou seja, nos espaços públicos – na “rua” – em que os direitos se originam, realizam ou são violados existe uma rede intrincada e assimétrica de relações; nessa rede há atritos entre valores e interesses, há conflito social, há projetos de vida diversos e às vezes antagônicos, há desigualdades econômicas, e há também identidades sociais em formação, que carregam sentidos jurídicos concretos para os direitos fundamentais.

Mais recentemente tive ensejo de participar, como examinador da banca de tese de Thiago Fernando Cardoso Nalesso. EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: entre as Diretrizes Curriculares Nacionais e o Exame de Ordem.  Doutorado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021.

            A tese, defendida perante a Banca Examinadora formada pelos professores e professoras Dr. Márcio Pugliesi (Orientador) – PUC-SP, Dr.– PUC-SP, Dra. Maria Vital da Rocha – UFC, Dra. Regina Vera Villas Bôas – Álvaro Luiz Travassos de Azevedo Gonzaga PUC-SP, Dr. Caio Gracco Pinheiro Dias (Suplente) – FDRB-USP, Dr. Willis Santiago Guerra Filho (Suplente) – PUC-SP, afinal aprovada, além de seus méritos, serviu para designar a atualidade de um tema, inscrito na reflexão sobre o conhecimento e o ensino do direito, num acumulado problemático disperso, no atual, nas disputas pedagógicas de mais de 1700 cursos instalados no Brasil, hoje.

Tive a honra de integrar a Banca Examinadora, vivenciando o impacto de dupla sensibilização, de um lado como que ser transportado para um tempo de viva interpelação provocada pelo maior movimento de crítica ao jurídico no campo do conhecimento e do ensino do Direito; de outro, na condição de examinador, me surpreender na condição, de certo modo, de integrar o objeto de estudo, já que, em seu âmbito, direta ou indiretamente participei como protagonista de todos os processos, articulações e eventos ativados nessa conjuntura, no MEC (Comissão de Especialistas de Direito, Exame Nacional de Cursos, ENADE,  Secretaria de Educação Superior/Diretoria de Educação do Ensino Superior, SINAES), no Conselho Federal da Ordem dos Advogados (Comissão de Ciência e Ensino do Direito, depois Comissão de Ensino Jurídico, logo Comissão de Educação Jurídica, Conferências Nacionais da OAB), no Conselho Nacional de Educação (Sistema de Avaliação de Cursos) e na Universidade, professor, Diretor da Faculdade de Direito, Reitor, da Universidade de Brasília.

O escopo do trabalho, apreendido do bom resumo preparado pelo Autor: “Neste trabalho avaliam-se os efeitos das Diretrizes Curriculares Nacionais do MEC e da atuação da OAB, por meio da Comissão Nacional de Educação Jurídica e do Exame de Ordem, em relação à qualidade da educação jurídica brasileira, com ênfase na questão curricular. Além disso, analisam-se o desenvolvimento histórico e a fundamentação político-ideológica e epistemológica dos cursos de Direito no Brasil, seguidos pela descrição e interpretação do direito regulatório educacional e o surgimento e desenvolvimento das Diretrizes Curriculares Nacionais. Verificou-se que o Exame de Ordem, criado para atestar a capacidade mínima para o exercício da advocacia, se converteu em instrumento de aferição de qualidade da educação jurídica ofertada por instituições de ensino superior no Brasil, além de ser utilizado como insumo principal para a concessão do “selo de qualidade OAB Recomenda”. A utilização do Exame de Ordem como parâmetro de qualidade de serviços educacionais, sem a devida adequação metodológica, influencia um processo de padronização curricular com resultados negativos na inovação, especialização, regionalização e flexibilização dos currículos jurídicos, e, em certa medida, contradiz esforços realizados pela Comissão Nacional de Educação Jurídica da OAB. Por outro lado, no processo de análise e avaliação, ficou evidenciada a importância e a necessidade social do exame, que cumpre função de proteger os direitos e liberdades dos cidadãos, o que levou à conclusão sobre a necessidade de ajustes na metodologia da avaliação do Exame de Ordem e do selo de qualidade da OAB para que se tenha maior eficácia na consecução de suas finalidades”.

Tomo essa referência, não apenas para designar a atualidade de um tema que a tese de Nalesso vem confirmar, mas para, a partir dela e da questão central que nela se desenvolve, se reivindique articular os temas operativos na dinâmica de validação para credenciamento e avaliação dos cursos jurídicos, mas porque nesse processo, com o aprimoramento de bons instrumentais, seja possível um duplo aprimoramento, da qualidade do ensino, mas também o poder construir um universo comum de significados, deduzidos não positivisticamente da diversidade de interpretações sobre categorias fundantes criticamente formuladas sobre o conhecimento do direito e suas formas de difusão.

Essa indicação está em texto de Mauro Noleto, antigo assessor da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB em texto que ofereceu – A Recomendação da OAB. Uma Nova Perspectiva para a Avaliação dos Cursos Jurídicos – ao livro OAB Recomenda. Um Retrato dos Cursos Jurídicos (Brasília, DF: OAB, Conselho Federal, 2001) – e a ele remeti, na minha arguição da Tese de Nalesso, exatamente para tomar como referência para a busca de construção de um universo comum de significados, a categoria sujeito de direito, tema do trabalho de Mauro, atualizado agora nessa edição da Editora Dialética, à luz das interpelações da conjuntura.

            A sua reflexão, em primeira pessoa, expressa o que poderia chamar de pensamento inquieto. Um pensamento que não se subordina a conhecimentos ou categorias óbvias que possam ser considerados insubstituíveis e que procura se conduzir conscientemente em seu modo de conhecer.

            Como reflexão sobre as condições de possibilidade da ação humana projetada no mundo, um pensamento inquieto sabe, como diz Boaventura de Sousa Santos, que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma racional; só a configuração de todas elas é racional e é, pois, necessário dialogar com outras formas de conhecimento, deixando-se penetrar por elas.

            Mauro desenvolve o seu trabalho tendo muito presentes estas condições, que se traduzem em seu processo de reflexão e em seu estilo. Nem poderia deixar de ser diferente. Pensamentos inquietos são, essencialmente, existenciais. Esta é a base de uma cultura, ela também inquieta, apta, assim, a transformar experiências e vivencias projetando-as em direção ao novo, porque em condições de discernir os sinais de futuro já inscritos nas práticas do próprio cotidiano.

            Discernir o sentido e o significado destas experiências e vivências supõe um deslocamento constante do olhar – visão de mundo – cognoscente acerca das imagens de síntese que buscam compreender o mundo ao invés de manipulá-lo.

            Enquanto participações que ensejam o conhecimento acerca de elementos da realidade, estas sínteses constituem o imaginário que organiza as várias expressões das atitudes humanas e que determinam modos de conhecer: o modo filosófico, o modo científico, a experiência mística, a intuição artística.

            O trabalho de Mauro Noleto é pródigo no enlace dessas participações, num esforço de esclarecimento cujo impulso é a rejeição de qualquer forma de monólogo, inclusive o da razão, sobre as formas possíveis de conhecer o mundo.

            Não por acaso, a epígrafe que abre o seu trabalho é poética, sendo ele próprio e geneticamente poeta e ensaísta (seu pai, o advogado Agostinho Noleto  é autor da ficcão Guerrilheiro sem Rosto e de  Antologia, Crônicas, Contos, Poesias). Com Uma Didática da Invenção,  de Manoel de Barros (Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios), a sua mensagem é a de que assim como a poesia não é um delírio, mas uma apropriação do real por meio de outro discurso, é também próprio do pensamento científico e da reflexão filosófica, abrir-se à subjetividade em perspectiva emancipatória.

            Mauro honra desta maneira, sem perder a altivez de um pensar autônomo, a influência clara e conscientemente assumida que pontuou a sua formação jurídica: Roberto Lyra Filho. Não se trata de uma adesão fascinada. Antes, de uma gemeidade de interesses, não fosse Lyra Filho também, filósofo e poeta.

            Portanto, o pensamento de Roberto Lyra Filho não é a matriz da reflexão de Mauro Noleto. Mauro não retoma os temas deste notável pensador para desenvolvê-los até patamares ou para encontrar soluções que este, em seu tempo e em razão de suas circunstâncias, não pudera alcançar ou estabelecer. Ele encontra os seus próprios temas haurindo, aí sim, no diálogo entre o seu pensamento e o pensamento de Roberto Lyra Filho, a excelência de um filosofar sem precedentes na cultura brasileira, preciso, vigoroso, sutil, iconoclasta, fecundo em suas antecipações, receptivo em seu aconchego epistemológico, em que tantos nos abrigamos, como Mauro, como eu também, para novos pontos de partida.

            Não era, assim, afinal, que o próprio Lyra Filho imaginava a partilha intelectual do trabalho associado? Ao lançar as bases do movimento que denominou Nova Escola Jurídica Brasileira – Nair (Direito e Avesso – Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, n. 1, Editora Nair, Brasília, 1982, p. 13), ele indicou: Adotamos o rótulo de Escola, não por arrogância, mas por humildade. Não impomos lições: procuramos juntos a verdade; não somos mestres, mas eternos estudantes, que nunca deixarão de sê-lo, para evitar que as nossas cabeças se tornem museu de ideologias e pantanal de subserviência. Também não adotamos o rótulo de Escola por dogmatismo; as nossas conclusões não formam corpo de doutrina a ser engolida como um catecismo. Reconhecemos, tão-só, que, na pesquisa e reflexão, há menos probabilidade do erro, quando empreendidas em trabalho de companheiros associados, formando um vivo entreposto de trocas intelectuais. Escola, para nós, quer dizer fraternidade, entrosamento e comunhão de esforços, que se escoram reciprocamente e se reajustam à crítica dos consócios….

            Em seu trabalho, portanto, Mauro Noleto parte da concepção crítica da Nova Escola Jurídica Brasileira, e dos paradigmas designados por Roberto Lyra Filho, mas procura indicar novas alternativas conceituais para pensar o tema a que se propôs: a subjetividade jurídica e, notadamente, a titularidade de direitos em perspectiva emancipatória. Aprofunda, desse modo, questões que identificara desde seus trabalhos de iniciação científica e de participação universitária no movimento estudantil que lhe valera à época, suas primeiras publicações (Sujeito Coletivo de Direito. Brasília: UnB. Você Pesquisa,,, Então Mostre!. Anais, 1991, prêmio de melhor trabalho, em co-autoria com Inês da Fonseca Porto e Bistra Stefanova Apostolova, trabalho completo p. 145-160); e a assunção à responsabilidade de direção na organização nacional de estudantes de direito, na executiva do ENAJUR (Encontro Nacional de Assessoria Jurídica).

            Vem daí, por conseguinte, a percepção que cedo desenvolveu acerca da emergência de novos e plurais formas de identidade individual e coletiva, ou, como ele designa, de novos sujeitos, novos atores, (que) cada vez mais frequentemente, ganham visibilidade no cenário público instituído, demandando o reconhecimento de suas ações como legítimas no exercício da cidadania, bem como o reconhecimento das condições sociais de sua existência como circunstâncias injustas do cotidiano. Fruto da emergência desses novos sujeitos é o processo de instituição de novos direitos.

            Localiza-se nessa concepção o horizonte do duplo engajamento – político, teórico e metodológico – que demarca o percurso de Mauro Noleto. O que ele indicava em seu texto de 1998 está inteiramente contido nos fundamentos de seu protocolo de pesquisa atual, como visto acima e nas diretrizes que imprime atualmente, na qualidade de Presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, em sua assimilação genuína do magistério pontifício de Francisco, tanto na alegria de evangelização, quanto no diálogo com os Movimentos Sociais. Confiro, em Mauro o que ele revela nessa disposição, conforme http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/573734-arquidiocese-de-brasilia-abre-as-portas-para-os-movimentos-populares:

Engajados nas lutas por Terra, Teto e Trabalho – os três T’s a que se refere o Santo Padre -, as lideranças dos movimentos compareceram em peso à sede da Cúria Metropolitana para expressar seus “anseios e esperanças”, ao tempo em que sugeriram a D. Sergio e a toda a Igreja de Brasília suas “pistas e apoios para o enfrentamento das graves questões vividas pelas classes trabalhadoras do Distrito Federal”. Organizados em três grupos, de acordo com suas respectivas lutas por terra, trabalho e pelo direito à cidade e à moradia, as lideranças se revezaram na apresentação de suas identidades, conflitos, carências sociais e bandeiras de luta, em tom sempre respeitoso e esperançoso diante da oportunidade oferecida pela Igreja de Brasília ao abrir suas portas e seu coração para o clamor daqueles que mais sofrem e lutam por justiça em nossa sociedade (acesso em 06.01.2019).

            É reconfortante constatar, no percurso de Mauro Noleto a fidelidade aos princípios que traçam o mapa desse percurso. Isso transparece dos fundamentos de seu projeto de pesquisa atual e também nas participações e intervenções funcionais ativadas nesse seu caminhar. Certo que seu mapa de navegação está tecnicamente aberto às inflexões operadas em razão das injunções que manifestam no seu trânsito, por isso que a sua salvaguarda de ancoragem é coerentemente fincada nos pressupostos de uma teoria crítica em seus fundamentos. Ainda quando o fluxo do seu agir se faça em terreno estritamente funcional, conforme, por exemplo, ao exercer assessoria  junto à Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, a direção que imprime ao seu movimento reflexivo, segue aquele cânone indicado por Boaventura de Sousa Santos, expressamente, no sentido, diz Mauro,  de que a teoria crítica deve partir de uma atitude insatisfeita, mas também autocrítica, pois, para Boaventura, a auto-reflexidade á a atitude de perceber criticamente o caminho da crítica. Mauro sustenta isso enquanto submete a juízo crítico o sistema de avaliação de cursos jurídicos desenvolvido pela OAB (NOLETO, Mauro Almeida. A Recomendação da OAB, Uma Nova Perspectiva para a Avaliação dos Cursos Jurídicos. In Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB. OAB Recomenda. Um Retrato dos Cursos Jurídicos. Brasília: OAB Conselho Federal, 2001, p. 101-112).

            Mauro aplica assim, concepção que aprofundou em seu trabalho acadêmico, combinando ensino, pesquisa e extensão universitária, quando em situação de responder a interpelações da realidade, no diálogo entre conhecimento e ação no mundo, quando o agir acadêmico é desafiado a abandonar a contemplação para atuar no sentido da transformação do mundo e a reconhecer a influência da teoria crítica, antes de tudo um filosofar na práxis.

            É de Mauro Noleto, o excerto a seguir transcrito:

 Por isso, a distinção mencionada acima entre formas de aprendizado prático nos cursos jurídicos (assistência e assessoria) não se limita à questão metodológica, pois tem como pano de fundo os conflitos epistemológicos travados no campo da teoria do direito, em busca de uma compreensão mais alargada desse objeto de estudo…

(…) é possível perceber os elementos inovadores e emancipatórios da teoria jurídica crítica, mais especificamente, os marcos teóricos da Nova Escola Jurídica Brasileira, presentes no curso O Direito Achado na Rua, organizado e coordenado pelo professor José Geraldo de Sousa Jr,, quais sejam: a apreensão dialética do fenômeno jurídico, como enunciação e positivação histórica das conquistas concretas humanas, a partir dos conflitos sociais, pela ampliação e constante reorganização dos espaços de liberdade em sociedade; a compreensão de que este fenômeno, o Direito, é plural, isto é, surge em diversos contextos de produção normativa e, portanto, não se restringe ao contexto jurídico-legal, embora reconheça seja este um espaço privilegiado de produção do Direito na sociedade moderna; a superação do modelo individualista de subjetividade jurídica, de titularidade de direitos, forjado pelo pensamento idealista dos séculos XVII e XVIII, por sua compreensão atualizada da sociedade e de seus conflitos em sua dimensão coletiva, que fazem emergir novas formas de subjetividade em cada contexto em que se apresentam lutas pela superação das condições de opressão e de injustiça social, cultural, étnica, religiosa, classista…(NOLETO, Mauro Almeida. Prática de Direitos. Uma Reflexão sobre Prática Jurídica e Extensão Universitária. In SOUSA Junior, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino (Orgs.). Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília. Brasília: UnB/Faculdade de Direito/MJ/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, 1996, p. 93-105).

            Tem razão Mauro. Uma das mais importantes constatações derivadas dos estudos acerca dos chamados novos movimentos sociais foi a percepção, primeiramente elaborada pela exegese teológica da libertação  e simultaneamente pela literatura sociológica, de que o conjunto das formas de mobilização e organização das classes populares e de suas configurações estruturadas nesses movimentos, instauravam, efetivamente, práticas políticas novas, em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política capazes de criar direitos.

            Chamei a atenção, no âmbito jurídico, para essa percepção, lembrando (Movimentos Sociais – A Emergência de Novos Sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direitos. Belo Horizonte: XIII Conferência Nacional da OAB. Anais, 1990) que a questão que se coloca, a partir da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, é a da designação jurídica destas práticas sociais e dos direitos novos que elas enunciam. Cuida-se de valorizar, adequadamente, as formas de sociabilidade constituídas nas relações de reciprocidade num cotidiano que adestra a convivência e legitima padrões sociais livremente aceitos.

            Na mesma XIII Conferência da OAB,  Marilena Chauí referiu-se a esta realidade para pensar a cidadania como possibilidade de operar o salto dos interesses aos direitos. Em suas palavras (XIII Conferência Nacional da OAB, 1990, Anais), ela afirma: cidadania ativa é a que é capaz de fazer o salto do interesse ao direito, que é capaz portanto de colocar no social a existência de um sujeito novo, de um sujeito que se caracteriza pela sua auto-posição como sujeito de direitos, que cria esses direitos e no movimento da criação desses direitos exige que eles sejam declarados, cuja declaração abra o reconhecimento recíproco. O espaço da cidadania ativa portanto, é o da criação dos direitos, da garantia desses direitos e da intervenção, da participação direta no espaço da decisão política.

            Trata-se. Evidentemente, de uma experiência emancipatória. Lyra Filho a havia compreendido neste sentido e, por esta razão, para ele, o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão, tal como ele o entendia, enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.

            E o que será, pois, neste processo, entender o Direito como modelo de legítima organização social da liberdade? É perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho,  que o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto de consagração do Direito) [ARAUJO, Doreodó (Org). Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986].

            Nesse eixo teórico insere-se o trabalho de Mauro Noleto, nessa primorosa edição da Editora Dialética. Sociologicamente sensível ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades, ele está também filosoficamente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito coletivo emergente deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de direitos nomeando as novas categorias jurídicas que as representam.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.