sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

 

Lealdade ao Dever Constitucional de Proteção: a Funai, os Índios e o Direito

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https://apiboficial.org/2021/08/03/normativa-da-funai-que-fragiliza-protecao-de-terras-indigenas-esta-suspensa-em-8-estados-da-uniao/

 

Chamam a atenção notícias seguidas que indicam uma continuada postura de conflito entre a Funai, o órgão governamental incumbido da proteção dos direitos indígenas, o sujeito da diretriz constitucional de reconhecimento e proteção.

 

Anoto alguns destaques nesse assunto: 

 

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/10/presidente-da-funai-provoca-investigacao-da-pf-contra-servidor-que-defendeu-indios.shtml

 

https://oglobo.globo.com/politica/presidente-da-funai-diz-que-vai-processar-indigena-que-integrou-comitiva-de-bolsonaro-na-onu-24191574

 

https://apiboficial.org/2021/10/05/apib-e-dpu-pedem-afastamento-do-presidente-da-funai-na-justica/.  

 

Esse último registro dá conta de que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ingressou, no marco dos 33 anos da promulgação da Constituição Federal (CF), com uma Ação Civil Pública (ACP) na Justiça Federal de Brasília (JF-DF) para pedir o afastamento do Presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai).

 

 

Não só nesse tema, como igualmente na questão do racismo, à luz do que se passa, também como conflito de interesses entre a Fundação Palmares e as mobilizações antirracistas no Brasil, essa postura antidemocrática e hostil à Constituição fica cada vez mais evidente.

 

 

Não é uma postura nova, ela se revela em toda vocação autoritária e anti-povo. Ainda que a Constituição atual, artigos 231 e 232 tenha reconhecido a capacidade ativa dos índios, ela manteve o dever de proteção pelo Estado dos direitos originários desses povos, tanto que atribuiu ao Ministério Público acompanhar todos os atos que digam respeito à salvaguarda desses direitos e manteve como obrigatoriedade governamental, não havendo mais o regime de tutela, de exercitar essa obrigação, atribuindo a Fundação Nacional do Índio (Funai) como órgão indigenista oficial responsável pela promoção e proteção aos direitos dos povos indígenas de todo o território nacional.

 

 

Ora, é legítimo o repúdio indígena aos posicionamentos hostis que a partir desse órgão, começam a caracterizar a quebra de lealdade ao dever constitucional de Proteção, violando os direitos indígenas.

 

 

É preciso lembrar que mesmo no curso da ditadura do regime imposto em 1964 e ainda sob a égide de uma Constituição de traços colonialistas, que não reconhecia a capacidade plena aos indígenas, mantendo-os subalternos e tutelados, nunca se perdeu o horizonte emancipatório de respeito aos seus direitos, usos e tradições originários.

 

 

Num artigo que publiquei no Jornal de Brasília, edição de 29/04/1984 –Os Índios e o Direito –trato desse tema. Nele aludo a decisão proferida em mandado de segurança que estudantes terenas, representados por membros da Comissão de Direitos Humanos, da OAB-DF, impetraram contra a Funai, ocasião para que o íntegro juiz Dario Abranches Viotti, da Justiça Federal em Brasília, reconhecendo a incompatibilidade de interesses entre o tutor e seus assistidos, nomeou curador especial um dos advogados, para o fim específico de representa-los na ação. Essa curatela especial coube a mim, um dos advogados da OAB, investido no processo pelo magistrado.

 

 

Essa decisão não trouxe, a rigor, eu disse no artigo, nenhuma inovação técnica. A remoção do tutor, no âmbito da legislação cível, ou a interdição de direitos, como pena acessória, nos casos de incompatibilidade manifesta, na esfera penal, implicam na perda do exercício da tutela, constituindo alternativas adequadas para a verificação da responsabilidade do tutor em face de suas obrigações para com o tutelado.

 

 

Tanto é assim que, no caso relatado, o Juiz simplesmente adotou a solução sugerida pela lei processual civil, identificando, na situação litigiosa, uma hipótese de colisão de interesses.

 

 

O inusitado da medida não chega a ser, sequer, o seu pioneirismo jurisprudencial, embora mereça relevo a determinação, no particular, que resultou em abandono de postura, evidentemente inibida da magistratura brasileira. O que repercute nessa decisão, sem precedente a nível judiciário, é o seu alcance instrumental para a defesa de interesses e direitos diferenciados no seio da sociedade civil, como garantia de acesso à Justiça de segmentos sociais dela alienados.

 

 

Com efeito, relativamente às comunidades indígenas, a decisão rompe, definitivamente, o círculo férreo com o qual o tutor especial procura privatizar as relações entre os índios e o Estado, isolando as suas reivindicações específicas do conjunto das lutas gerais da sociedade pelos direitos de cidadania.

 

 

A decisão, em todo o seu alcance, aponta para o caráter público dessas reivindicações e confirma o Poder Judiciário na condição de instância privilegiada para a fundamentação jurídica de suas implicações não vislumbradas. Assim, por exemplo, o sentido da fidelidade como categoria cogente do tipo de tutela especial, suscetível de avaliação plena em sua peculiaridade teleológica.

 

 

Há, assim, incindível entre cidadania e Justiça. Esse vínculo, aliás, foi acentuado pelo ex-Presidente da OAB-DF Antonio Carlos Sigmaringa Seixas (pai do advogado Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, patrono do Grupo Prerrogativas que reúne juristas pela justiça e pela democracia) em sua bela tese sobre a democratização da justiça, apresentada no 1º Encontro de Advogados do Distrito Federal. Nela, mostra o autor o quanto a estrutura judiciária reflete a face do Estado que a organiza, esclarecendo que a condição para a concretização de uma justiça democrática é a própria reconstrução democrática da sociedade. Tanto mais, diz ele, quanto seja necessário para elaborar, inclusive, teoricamente, instrumentos jurídicos de intervenção compatíveis com a exigência atual da prática da cidadania.

 

 

Nesse contexto é que, demonstra Sigmaringa Seixas, se coloca a necessidade imperiosa de ampliação da tutela jurisdicional para a garantia de acesso à Justiça de pretensões fundadas na defesa de interesses difusos ou coletivos da sociedade.

 

 

E este é, precisamente, o campo de exercício da concepção atualizada da cidadania, compreendida como espaço de emergência de novos direitos. Na verdade, um processo de busca de reconhecimento de valores, elaborados a partir das contradições da estrutura econômico-social e que reclamam instrumentalização política e fundamentação jurídica, até como direitos humanos.

 

 

O que fez o Juiz Dario Abranches Viotti, aliás um homem conservador, mas um juiz íntegro, cujo desvelo pela justiça mais expõettttt os maus juízes que oficiam hoje no país (conferir aqui no Jornal Brasil Popular o meu artigohttps://www.brasilpopular.com/os-integros-e-os-maus-juizes/), antes de tudo, simplesmente, um juiz. Essa estirpe de juízes, lembra o moleiro citado por Rudolf Jhering, que há ainda, “em Berlim” e em Brasília. 

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

 


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