segunda-feira, 29 de maio de 2023

 

A Questão Ambiental não é uma Aposta, é um Compromisso Político e Ético

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Em matéria publicada na página Amazonia Real – https://amazoniareal.com.br/crise-ambiental-governo-lula/, acesso em 26.05.2023, com o título Em governo Lula, área ambiental corre o risco de ser dominada por modelo bolsonarista, a jornalista Cristina Ávila afirma que “De uma forma parecida com o que aconteceu no primeiro governo do petista, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, sofre desgastes e não conta com o apoio explícito do presidente Lula . Ela corre o risco de perder poder, assim como o Ministério dos Povos Indígenas, liderado por Sonia Guajajara”.

 

 

Na matéria ela chama a atenção para o que caracteriza como “desgastes de pautas ambientais e indígenas no Congresso Nacional, com aparente desarticulação do governo Lula (PT) para defendê-las, [levando] lideranças dos dois segmentos a acreditar que há o risco de o modelo bolsonarista de governar ser retomado no país, mesmo após o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ter perdido a eleição e ainda não ter se consolidado como líder da oposição”.

 

 

E não só no Congresso. Acabo de ler em página editada pelo pensador Leonardo Boff (https://leonardoboff.org/2023/05/26/se-lula-rifar-o-meio-ambiente-seu-governo-acaba-por-eliane-brum/), artigo da jornalista Eliane Brum, com um título contundente – Se Lula Rifar o Meio Ambiente Seu Governo Acaba –, motivado pela decisão do Ibama de negar a licença para abrir uma nova frente de exploração de petróleo na Amazônia. Para ela, a posição do Ibama foi uma vitória: “Não uma vitória de Rodrigo Agostinho, presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, que assinou o documento no dia 17 de maio. Não uma vitória de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Não uma vitória dos povos indígenas e das comunidades tradicionais que seriam impactadas se o projeto fosse adiante. Não uma vitória de populações de cidades e regiões que poderiam ser atingidas em caso de um vazamento. Não. Foi uma vitória da melhor ciência e da melhor política. Foi uma vitória da inteligência. Foi uma vitória da vida”.

 

 

Mas, ela contextualiza, “Se essa vitória for apagada pelo ataque feito pelo Congresso a Marina Silva e ao Ministério do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, ao tirar da pasta áreas vitais, acabou. Não acabou para Marina nem para o ministério. Acabou para o governo Lula, que será rearranjado ao modo da extrema direita, com a boiada passando sobre a Amazônia. “O povo brasileiro elegeu o presidente Lula, mas parece que o Congresso quer reeditar o governo Bolsonaro”.

 

 

Volto ao texto de Cristina Ávila. Segundo a matéria, “o desgaste foi agravado esta semana com o avanço, no Congresso, de uma Medida Provisória que reestrutura a Esplanada dos Ministérios. Aprovada por comissão mista formada por deputados e senadores, a MP que reorganiza o governo Lula recebeu emendas parlamentares e, na versão votada, tira funções do Ministério do Meio Ambiente, comandado por Marina Silva, e diminui as atribuições do recém criado Ministério dos Povos Indígenas, liderado por Sonia Guajajara”.

 

 

Na matéria ela compara a atuação atual de Marina em relação a sua primeira passagem como ministra de Lula, entre 2003 e 2008. A ministra deixou o cargo em maio de 2008 após disputa com a ala desenvolvimentista do governo – na ocasião, não contou com o apoio do presidente e ficou sem condições de continuar o trabalho ambiental.

 

 

Não parecem ser equivalentes as duas situações. Em que pese o Congresso, sob a condução do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), querer tomar a direção de importantes pautas ambientais e indígenas e tentar dominar inclusive a atribuição da demarcação das terras indígenas, a partir da tese do marco temporal, neste caso, com a atuação da bancada ruralista da Câmara dos Deputados que levou à  aprovação de urgência para a tramitação do projeto de lei 490/2007, que define a data da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988) como marco temporal para o direito às terras indígenas.

 

A movimentação das ministras Marina e Sonia, imediatamente recebeu o apoio de centenas de entidades que defendem a causa ambiental, porque  cuidam de lembrar ao Presidente Lula que esse tema é o divisor de águas entre uma política de rearranjo neoliberal forte num desenvolvimentismo predatório e suicida para o Planeta, que parece cerzir o acordo da frente ampla que o elegeu, mas que sepulta o anúncio de sua virada utópica para conduzir o país a uma posição ética e paradigmática que possibilite modificar o próprio sistema mundo conforme uma agenda sustentável, pacifista, multipolar e solidária com os descartáveis da necropolítica global. O projeto estabelece que, para serem consideradas terras indígena, as áreas reivindicadas teriam que estar ocupadas na data em que a Constituição foi promulgada, ignorando direitos históricos, além dos massacres a que foram submetidos os povos ancestrais.

 

 

Apesar da aposta de parlamentares no desgaste de Marina Silva – improvável, pois não é ela que se desgasta, mas quem hipotecou a confiança do mundo numa política de compromisso com a sustentabilidade do planeta. Agora, no dia 26, foi divulgada a notícia de que acidade de Belém, no Pará, vai sediar a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-30). O próprio governo federal divulgou a informação por meio de um vídeo em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o governador do Estado, Helder Barbalho (MDB), recebem a confirmação do ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira.

 

 

As Nações Unidas aprovaram, no último dia 18 de maio, a realização da COP-30 na cidade de Belém do Pará, em novembro de 2025”, informou o chanceler. A Conferência do Clima da ONU é o maior evento do mundo dentro dessa temática. Na reunião, chefes de Estado e de governo, pesquisadores, ambientalistas e empresários discutem medidas de enfrentamento às mudanças climáticas.

 

 

O Presidente Lula, projetado no mundo como liderança confiável – a ponto de ser protagonista real, somente comparável aos esforços do Papa em busca de uma solução mediada para cessar o conflito entre a Rússia e a OTAN (Estados Unidos) – buscou essa confiança durante a COP 27 (Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas – ONU), em novembro, seu primeiro grande momento internacional antes da posse, quando afirmou, alto e em bom som que “O combate às mudanças climáticas deve ser um compromisso do Estado brasileiro”, certamente seu compromisso político e ético para ter a credencial de realização em Belém da COP-30.

 

 

Marina e Sônia estão confiantes em que até a votação final no plenário e mesmo depois, no limite do veto, o Presidente e seus ministros (já houve demonstração pública de que esse é um compromisso do governo) cuidarão de recuperar o protagonismo de condução da agenda ambiental e dos direitos indígenas.

 

 

Apesar da demora nesse posicionamento, a decisão dos ministros do STF sobre o tema mais se deve aos cuidados que uma manifestação que interessa a toda a sociedade precisa ter.  Aliás, a considerar voto do ministro Edson Fachin, relator, que interessa a uma política que é global em termos de direitos humanos internacionais (Convenção 169, da OIT). E nesse aspecto, de modo consentâneo, o voto do ministro, já lançado, ao reconhecer que a posse da terra indígena deve ser definida por uma tradicionalidade instituinte de direitos e não por um marco temporal. Tese brilhante, politicamente, filosoficamente, juridicamente, pois reconhece que direitos pré-estatais e pré-colombianos ou pré-cabralinos, não se extinguem em prorrogações subordinantes pós-coloniais para revogar direitos que lhes são anteriores e que, certamente, permanecerão para além deles, quando superadas todas as reduções neocoloniais. Tanto mais que nesse modelo colonial e neocolonial, para lembrar o grande Victor Nunes Leal (ministro do STF, autor de Coronelismo, Enxada e Voto), pensar marco legal é anistiar o crime que a começar com a grilagem se consuma com a pistolagem, assassinando, expulsando posseiros, quilombolas e indígenas, queimando seu plantio e suas moradias, exaurindo a natureza e exterminando existências e modos de vida.

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

quinta-feira, 25 de maio de 2023

 

A Cooperação Humanitária Internacional em Saúde no Brasil

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Raquel da Silva Machado. A Cooperação Humanitária Internacional em Saúde no Brasil: realizações e desafios no período de 2017 a 2020. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Políticas Públicas em Saúde. Escola Fiocruz de Governo. Fundação Oswaldo Cruz, 2023, 71 fls.

 

 

Integrei com satisfação e interesse, na qualidade de membro externo, a Comissão Examinadora formada pela professora e professores Roberta de Freitas – Orientadora; Swedenberger do Nascimento Barbosa – Membro interno; José Nogueira Paranaguá de Santana – Membro interno suplente, que avaliou a Dissertação de Raquel da Silva Machado.

Sobre a Dissertação transcrevo o seu resumo:

Partindo do pressuposto de que a cooperação humanitária internacional em saúde – CHIS é uma política pública de saúde – PPS, pois tem embasamento legal no Art. 6º da Constituição Federal de 1988 dentre os quais, destacamos o apoio à população nas áreas da saúde, alimentação, segurança e assistência aos desamparados, fatores imprescindíveis para o desenvolvimento de uma população e é uma ação que fortalece a Política Externa Brasileira – PEB, a presente dissertação propõe realizar uma análise da política de cooperação humanitária internacional em saúde, desenvolvida pelo Ministério da Saúde e operacionalizada pela Assessoria Especial de Assuntos Internacionais. São apresentados conceitos da Política Externa Brasileira de forma não exaustiva e realiza um levantamento das ações executadas pelo MS no período de julho de 2017 a dezembro de 2020, com informações de acesso livre, coletadas no Sistema de Informações Eletrônicas do MS. Finalizamos com a apresentação dos desafios a serem superados identificados pela autora e sugestões de estratégias para a melhoria do trabalho e para o reconhecimento da cooperação humanitária internacional em saúde como política nacional e de importância para a política externa brasileira.

 

Os resultados do trabalho são apresentados em três capítulos, assim designados pela Autora:

No capítulo 1, abordamos a política externa brasileira, aqui chamada de PEB, apresentando conceitos de alguns autores da área das relações internacionais e um breve histórico sobre seu surgimento e desenvolvimento até os dias atuais; em seguida, são apresentadas uma lista de legislações que amparam as ações da CHIS e buscamos, de forma despretensiosa, apresentar os primeiros registros oficiais das ações desenvolvidas pelo país, identificados na pesquisa; por último, apresentamos a base legal brasileira, que caracteriza a CHIS como uma política nacional.

No capítulo 2 explicamos como é desenvolvida a CHI brasileira, as atribuições e responsabilidades dos órgãos do governo federal envolvidos nessa política; apresentamos os resultados do levantamento de dados coletados no SEI e tabulados em planilhas e gráficos, de forma a justificar a importância dessas ações para a PEB.

No capítulo 3, procuramos retratar os desafios encontrados na execução do trabalho de CHIS para seu aprimoramento e desenvolvimento, de forma a trazer benefícios reais às populações beneficiadas por essas ações, tanto no âmbito nacional, quanto no internacional.

            Os demais elementos, que eu diria pré-textuais, se integram ao trabalho para referenciar seus objetivos, para designar suas referências e para agregar notas e anexos próprios à circunscrever o núcleo fundamental da abordagem necessário à análise desenvolvida na Dissertação.

            Gosto de identificar desde logo que essa análise, conduzida com a força de larga experiência funcional sobre a gestão de políticas públicas, não se enreda na funcionalidade burocrática, mesmo se essa responde aos requisitos de racionalidade, em acepção weberiana, para caracterizar um dos fundamentos da modernidade.

            O enfoque de Raquel é de que “as políticas públicas são feitas para todos os cidadãos, sem distinção de escolaridade, gênero, raça, religião, nacionalidade ou nível social [mas conforme suas fontes] o fundamento mediato das políticas públicas e o que justifica o seu aparecimento, é a própria existência dos direitos sociais – aqueles, dentre o rol de direitos fundamentais do homem, que se concretizam por meio de prestações positivas do Estado, ou seja, o Estado desenvolve ações e programas com o objetivo de pôr em prática e garantir tais direitos” (fls. 17).

            Esse parti pris em Raquel já era por mim esperado, considerando o que cotidianamente testemunhei em nosso contato acadêmico, ao longo do Mestrado, durante o desenvolvimento da disciplina Direito à Saúde na Perspectiva de O Direito Achado na Rua, na qual colaborei com seu titular, presente aqui na Banca, professor Swendeberger Barbosa.

            Portanto, não foi surpresa, localizar no trabalho de Raquel, os Direitos Humanos como um ponto de arrimo, quando ela toma, a partir de obra que co-organizei em co-edição da Editora da UnB e da Fiocruz (Dallari, D. Módulo 4 – Ética Sanitária. In Série O Direito achado na rua: Introdução crítica ao direito à saúde. Vol. 4 / Alexandre Bernardino Costa … [et al.] (organizadores) – Brasília: CEAD/ UnB, 2009) a referência a Dalmo Dallari, na passagem que ele “defende que o direito à saúde não é apenas um imperativo moral, mas também uma obrigação legal sob o direito internacional dos direitos humanos, uma vez que a saúde é um direito humano fundamental que está consagrado no direito internacional e reconhecido pela maioria dos países, inclusive no Brasil”.

            Sob a perspectiva humanitária ou técnica, há um boa bibliografia, a qual de modo representativo Raquel arrola em seu trabalho. Mas, em perspectiva teórica, a sua incidência é mais restrita. Fiz esse registro em recensão que publiquei em minha Coluna Lido para Você (Jornal Estado de Direito), a propósito do livro Direito Sanitário. Coletânea em Homenagem à Profa. Dra. Maria Célia Delduque. Sandra Mara Campos Alves, Amanda N. Lopes Espiñeira Lemos (Organizadoras). Brasília: Matrioska Editora, 2020, 278 p. Disponível para download gratuito: https://www.cadernos.prodisa.fiocruz.br/LIVRO_PDF_Direito_Sanitario_digital_link_ajustado-1.pdf. (cf. http://estadodedireito.com.br/direito-sanitario/). Aliás, fiz uma busca ativa em Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário (CIADS) a publicação trilíngue (português, espanhol e inglês), trimestral, de acesso livre, editada pelo Programa de Direito Sanitário da Fundação Oswaldo Cruz/Brasília, com a aplicação dos termos que designam o tema da Dissertação, sem sucesso. Penso que, como membro do Conselho Científico dessa valiosa publicação,  dirigida por professores, pesquisadores e estudantes de Direito, Ciências da Saúde e Ciências Sociais; operadores do Direito; profissionais de saúde e gestores de serviços e sistemas de saúde, com o objetivo  de difundir e estimular o desenvolvimento do Direito Sanitário na região ibero-americana, promovendo o debate dos grandes temas e dos principais desafios do Direito Sanitário contemporâneo, devo cuidar de propor pautas editoriais a partir desses termos.

Por isso, a Dissertação de Raquel ganha ainda mais relevância ao abrir o tema para o debate acadêmico, nos termos em que ela propõe: trazer para “além do plano doméstico, o princípio da solidariedade abarca o plano internacional e instar o país ao compromisso de que somos todos responsáveis uns pelos outros e temos o dever de ajudar aos necessitados e de trabalhar pelo bem comum. As relações internacionais vêm ganhando destaque no cenário mundial desde o advento da Segunda Guerra Mundial, promovendo a expansão da cooperação internacional como prática institucionalizada pelos governos. Em um mundo cada vez mais interdependente, a paz, a prosperidade e a dignidade humana não dependem apenas de ações em âmbito nacional e a cooperação para o desenvolvimento internacional é peça-chave para o estabelecimento de uma ordem internacional mais justa e pacífica”. Tal como afirma (fls. 17), nesse passo seguindo a Constituição brasileira: “é legítimo afirmar que o Brasil se preocupa com o bem-estar, não apenas de seus nacionais quando o Estado brasileiro estende ações de políticas de saúde aos países parceiros, visando garantir a prevalência dos direitos humanos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”.

É certo que essa dimensão de solidariedade implica abrir a governança para uma dimensão humanitária que não reduza seus procedimentos a um jogo concertado de uma troca de interesses. Mas que represente estruturar sua base institucional e burocrática para valores que insiram a saúde numa perspectiva dessa solidariedade.

Pense-se, por exemplo, em face do fato de que “o mundo se encontra atualmente num processo de emergência de um Direito mundial para além das ordens políticas do tipo nacional e internacional a preocupação com a necessária regulação por parte do Estado das relações que envolvem consumo de bens e serviços de saúde, a fim de garantir que não ocorram violações a esse direito fundamental. Adicione-se a isto que há, atualmente, uma ordem econômica internacional, alicerçada sobre o liberalismo pensado em Bretton Woods (mas redimensionara ao longo das décadas), e que não apenas afeta comércio, finanças e moedas, mas que também se desenvolve como ideologia internacional transfronteiriça que influencia o cotidiano do cidadão comum” (RDIET, Brasília, V. 14, nº 2, p. 584– 643, Jul-Dez, 2019. O Direito à Saúde e o Licenciamento Compulsório de Medicamentos Frente à Mercantilização da Saúde no Brasil, artigo de Mateus de Oliveira Fornasier e Carolina Andrade Barriquelo, fundado na a hipótese básica  de que o direito à saúde é, por um lado, essencial para a garantia do direito à vida; por outro, é considerado um bem do mercado de consumo, necessitando, por conta disso, da proteção do Estado para garantia e efetivação desses direitos. Essa é exatamente a situação, lembram Marcio Iorio Aranha, em Propriedade Intelectual e Patente Farmacêutica (In Série O Direito achado na rua : Introdução crítica ao direito à saúde. Vol. 4 / Alexandre Bernardino Costa … [et al.] (organizadores) – Brasília: CEAD/ UnB, 2009), assim como Carol Proner, in Saúde Pública e Comércio Internacional: a Legalidade da Quebra de Patentes “quando resta ameaçado o interesse público, neste caso a saúde pública e a sobrevivência do Programa Nacional de tratamento e prevenção de HIV/AIDS. Os direitos empresariais sofridos pelo laboratório estão garantidos juridicamente, ao mesmo tempo em que encontra respaldo legal e legítimo a medida em prol dos direitos humanos e da soberania do Estado” (file:///C:/Users/Jos%C3%A9%20Geraldo/Downloads/admin,+9-20-1-SM+-+OK.pdf).

 Claro que para fortalecer essas possibilidades solidárias é fundamental organizar o sistema em todas as suas dimensões. Em 2007, no espaço de debate do Observatório da Constituição e da Democracia que os Grupos de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, editavam na Faculdade de Direito da UnB, em edição dedicada ao Direito e Saúde, a entrevista desse número foi conduzida pelas pesquisadoras Maria Célia Delduque e Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira, que ouviram a Professora Sueli Gandolfi Dallari, num “Balanço da Saúde no Brasil: SUS, Participação Social, Formação Sanitária e Agências Reguladoras”  (C&D Constituição e Democracia, nº 13, maio de 207, p. 12-13). Temas amplos, mas ao final uma dramática antevisão: “O ponto frágil do sistema de saúde brasileiro é o olhar para as questões de vigilância sanitária e epidemiológica. Trabalhar com estruturas separadas não funciona. Não se pode ter um emaranhado de estruturas burocráticas, que precisam dialogar. O fato é que a vigilância sanitária ainda hoje é uma estrutura pouco privilegiada no nosso sistema de saúde e é a mais importante. Se nós fizermos isso bem, inclusive a visão da assistência será outra”.

A racionalidade gestora certamente contribuirá para isso. Raquel oferece no caso específico que estuda, sugestões muito interessantes. Mas ela adverte para um plano mais difícil de ultrapassar, o da ideologia.

No último período governamental, a propósito de vigilância sanitária, medidas internacionais e pandemia, avalia a jurista Deisy Ventura, um quadro de tragédia. Para ela: “Não houve omissão, mas uma ação deliberada para disseminação do vírus”, ela que é especialista na relação entre pandemias e direito internacional, afirma que atos normativos ao longo da pandemia evidenciam que o governo federal trabalhou contra as medidas de isolamento para não afetar a economia. Além disso, fez propaganda para o tratamento preventivo claramente ineficaz. Com isso, a jurista acredita que autoridades devem responder a mais ações na Justiça e até em tribunais internacionais. Pois são muitas as evidências aliás, externalizadas, com farta gravação por meios de comunicação que não avançam na análise crítica da impudência mais ainda que imprudência, ao afiançar que a melhor contenção seria o máximo de contaminação para o arrefecimento “natural” do contágio (https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/328980/nao-houve-omissao-mas-uma-acao-deliberada-para-dis.htm?fbclid=IwAR0gBBwGC0enx-PpyZNuqv_DAlOV8T72ASzPTcf0HCtye3Tgm6fjLhKIsmE).  Na mesma direção, tomando por base pesquisa levada a efeito sob a direção da professora Deisy, a sua conclusão de que  “Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma ‘estratégia institucional de propagação do coronavírus’” (https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html?fbclid=IwAR0V2HWwuXbFBgGg8xIXK5daR0V6A9v-iyTq9lucsdeorgo-nzFa7xezBRY).

Por estas razões, tomo uma consideração final do trabalho de Raquel: Atesta-se a importância do tema da PNCHIS (Política Nacional de Cooperação Humanitária Internacional em Saúde) não apenas como política pública doméstica na área de saúde, mas também como instrumento fundamental da política externa brasileira. É necessário que a PNCHIS se solidifique enquanto uma política de Estado, para que ela não volte a sofrer no futuro, com mudanças de governos e volte a incorrer na violação dos Direitos Humanos, como ocorreu com o impedimento de envio de doações de medicamentos, alimentos e outros insumos à Venezuela, por ideologia política” (fls. 60).

A inserção dessa política num programa solidário e internacionalizado de Direitos Humanos, pressupõe, tal como se registra na monumental Enciclopédia Latino-Americana dos Direitos Humanos (Antonio Sidekum, Antonio Carlos Wolkmer e Samuel Manica Radaelli, organizadores. Blumenau: Edifurb; Nova Petrópolis: Nova Harmonia, 2016), que se tenha, tal como dizem os seus organizadores a propósito da construção desse belo repositório, em  sua concepção, o intuito de “construir – esse intuito presente nas 108 entradas (verbetes ou expressões temáticas que formam a Enciclopédia), desde o conceito de Acesso à Justiça até o fenômeno do Zapatismo – uma gramática fundamental dos direitos humanos latino-americanos, com a intenção de expressar em sua essência uma atitude integracionista, buscando refletir uma experiência intercontinental e realizada por autores dos diversos países latino-americanos”.

Em David Sánchez Rubio, professor sevilhano convocado para contribuir, oferecendo exatamente o verbete – Intervenção Humanitária (p.  485-490) – há nesse tema a exigência de um desdobramento ético, não obstante o limite regulatório desse instituto no direito internacional humanitário, de tal modo que deva cingir-se ao princípio segundo o qual “a vida se gera desde a vida e não desde a morte” (cf. http://estadodedireito.com.br/enciclopedia-latino-americana-dos-direitos-humanos/).

Muito bem. Aqui trago a consideração para um enfoque que procure aproximar os pressupostos humanitários firmados pela Autora da Dissertação e a perspectiva de O Direito Achado na Rua que foi a base de nossa disciplina – Swedenberger e eu – no Mestrado da Fiocruz. Refiro-me a uma publicação que acabei não fazendo circular porque coincidia em grande parte com o volume 4, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito à Saúde, fartamente citado por Raquel na Dissertação.

Ocorre que a boa acolhida a essa publicação levou a que a UnB, a Fiocruz e a OPAS, com a recomendação do caro José Nogueira Paranaguá de Santana também presente na Banca, buscassem internacionalizar a proposta e chegássemos a uma edição em espanhol daquela publicação que não fosse a mera tradução de seus textos mas uma modificação que buscasse desbrasileirar e mais continentalizar o tema. A OPAS para isso promoveu uma oficina  em sua sede, com participantes do Continente, que resultou no volume 6 da Série O Direito Achado na Rua, com o título Serie El Derecho Desde la Calle: Introdución Critica al Derecho a la Salud, os mesmos organizadores, novas ilustrações, a tradução de alguns textos, supressão de outros muito específicos da realidade brasileira e a inclusão de novos títulos e autores sugeridos pela Oficina – https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/39193/Derecho%20desde%20la%20Calle.pdf?sequence=2&isAllowed=y.

Dentre esses novos textos menciono, no Módulo VI, la unidad 2 – Desastres, viulnerabilidad, equidade y salud em la región de América Latina, de Aderita Sena, Mara Oliveira e Ciro Ugarte;  la unidad 4 – Derecho a la salud de las poblaciones migrantes y fronterizas, de Sandra Regina Martini Vial; e la unidad 6 – La cooperación internacional em salud: Es posible hablar em ‘cooperación’ desde la calle?, de Rodrigo Pires de Campos, Marco Aurélio A. Torronteguy e Manoel Araújo Amorim.

Nesse texto, em face da questão por eles propostas, os autores afirmam:

“la cooperación internacional desde la calle es posible y no se impone por medio de una visión unilateral, y extranjera, de la problematización y la preconización de las cuestiones sociales, sean ellas tocantes a las políticas públicas, los servicios públicos o, más genéricamente, la vida en sociedad. La cooperación internacional desde la calle no se manifesta por el juicio indebido de ese o aquel local, país o cultura, como ‘atrasado’, no ‘civilizado’, ‘beneficiario’, o incluso ‘en quiebra’. La cooperación internacional hallada em la calle  no fornece tecnologías de punta que meramente equipan instituciones sin el debido respeto a los movimientos internos legitimadores de aquellas instituciones y sin la debida compensación a la población en general.

La cooperación internacional desde la calle sería aquella realizada a partir del reconocimiento mutuo de procesos sociales vigentes como fuente de la propia práctica y de la transformación social e institucional en cuestión. Por lo menos tres caminos fortalecieron esa visión: la emergencia de los países en desarrollo y su papel fundamental de acercamiento de democratización de los procesos de cooperación internacional visible a partir de emergência de nuevos actores, sobretodo organizaciones no gubernamentales, en el sistema internacional; y la cooperación internacional reflexiva” (pág. 320).

Minha questão de arguidor é saber o que a Autora pensa dessa assertiva e em que medida seu trabalho a ela corresponde?

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

 

Miradas Críticas en Torno al Derecho y la Lucha Social: Confluencias con América Latina

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

David Sánchez Rubio. Miradas Críticas en Torno al Derecho y la Lucha Social: Confluencias con América Latina. Madrid/España: Editorial Dykinson, 1ª edición, 2023, 186 p.

                            

                          

 

O livro, resumido pelo próprio Autor para se expor no catálogo da Editora,  

é uma espécie de reivindicação do paradigma crítico no campo do Direito e dos direitos humanos na América Latina, mas tem a particularidade de usar, como pretexto, a análise que seu autor realizou sobre o pensamento do advogado mexicano e o filósofo jurídico Jesús Antonio de la Torre Rangel, e os juristas brasileiros Antonio Carlos Wolkmer, Amilton Bueno de Carvalho, José Geraldo de Sousa Júnior e Roberto Lyra Filho. Ainda, em defesa de uma perspectiva multidisciplinar, acrescenta-se a reflexão sobre outros quatro pensadores que possuem forte afinidade epistêmica de compromisso com a justiça social: o educador brasileiro Paulo Freire, o economista e filósofo alemão Franz Hinkelammert, o filósofo chileno Helio Gallardo e o pensador mexicano Leopoldo Zea, que fazem parte desse movimento interdisciplinar, especificamente latino-americano, denominado pensamento de libertação. Abrange o pedagógico, o político, o filosófico, o psicológico, o teológico, o econômico e o literário. Cada um dos pensadores tem em comum não apenas uma visão crítica das instituições políticas, econômicas e jurídicas ligadas às relações de poder, mas também o fato de apostarem naqueles processos de libertação cujos principais protagonistas são os movimentos sociais que lutam por seus direitos e pela um mundo inclusivo onde cabemos todos. A maioria das obras foi realizada em homenagem a cada um deles. Suas contribuições são reconhecidas e são destacados os quadros categóricos que podem nos ajudar a construir um planeta com uma Humanidade plural e multicolorida.

 

David Sánchez Rubio é Professor Catedrático e Diretor do Departamento de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Sevilha. Foi coordenador e diretor de vários cursos de mestrado e doutorado na Universidade Pablo Olavide de Sevilha e na Universidade Internacional da Andaluzia. Ele foi e é membro diretor e pesquisador de vários projetos de Excelência e P&D. Professor visitante em várias universidades na Espanha, Bélgica, Portugal, México, Equador, Colômbia, Costa Rica, Argentina e Brasil. Autor de mais de 110 artigos e vários livros sobre teoria crítica dos direitos humanos, democracia, educação para a cidadania, migração, tráfico de pessoas, poder constituinte e pensamento de libertação latino-americano. Dentre outros, destacam-se: Repensando os direitos humanos (2007); Encantos e Desencantos dos Direitos Humanos (2011); Instituindo os direitos humanos. Pensamento crítico e práxis libertadora (2018). É também autor e coordenador dos livros Poderes Constituintes, Alteridade e Povos Indígenas (2020) e Direitos Humanos e Transformação Social (2021).

Pessoalmente, gosto de poder integrar ao rol de obras destacadas pela biobibliografia publicada com a edição, ainda outros estudos viscerais, publicados em espanhol e também em português que dão uma medida de continuidade e de atualização ao pensamento interpelante do Autor: desde Filosofía, Derecho y Liberación en América Latina (1999), lançado pela Desclée de Brouwer, de Bilbao; passando por Contra una Cultura Anestesiada de Derechos Humanos (2007), publicado no México, pela Facultad de Derecho de la Universidad Autómoma de San Luis Potosí; Fazendo e Desfazendo Direitos Humanos (2010), publicado pela EDUNISC de Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul; com Juan Antonio Senet de Frutos, Teoria Crítica del Derecho. Nuevos Horizontes (2013), também publicado no México, em Aguascalientes/San Luis Potosí/San Cristóbal de Las Casas; até se reconfigurar no paradigmático livro Derechos Humanos Instituyentes, Pensamiento Crítico y Praxis de Liberación (2018), da Akal/Inter Pares, Argentina/España/México. Dessa edição, uma parte, saiu em português em 2022, com o título Direitos Humanos Instituintes, pela Editora Lumen Juris, do Rio de Janeiro, tendo valido como credencial para a inclusão de David no Conselho Editorial Internacional da Editora, juntamente com os portugueses António José Avelãs Nunes, Boaventura de Sousa Santos e Diogo Leite de Campos.

Incluo na formulação biobliográfica de David Sánchez Rubio a sua atenção às mobilizações críticas que geraram o alternativismo jurídico, notadamente no Brasil, contribuindo para distinguir suas vertentes e nesse passo situar as juridicidades autônomas, emergentes do pluralismo jurídico, insurgentes, achadas na rua (SÁNCHEZ RUBIO, David. Sobre o Direito Achado na Rua. Absolutização do Formalismo, Despotismo da Lei e Legitimidade, in CARVALHO, Amilton Bueno e CARVALHO, Salo de. Direito Alternativo Brasileiro e Pensamento Jurídico Europeu. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2004).

Terá sido nesse intercâmbio que Amílton Bueno de Carvalho, autor de uma bem elaborada categorização dos elementos que envolvem o denominado direito alternativo, a saber, o uso alternativo do direito, com raízes na Magistratura Democrática Italiana, o positivismo de combate, para concretizar as aquisições de conteúdos prometidos pela legislação às maiorias sociais e o direito alternativo, em sentido estrito, que emerge do pluralismo jurídico em arranque instituinte de direitos (CARVALHO, Amilton Bueno. Flexibilização X Direito Alternativo, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de e AGUIAR, Roberto A. R. de. Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, Série O Direito Achado na Rua, vol. 2. Brasília: CEAD/Editora UnB, 1993: 99), a perspectiva democrática abre um horizonte expansivo para a realização dos direitos enquanto afirmação de direitos humanos. Confira-se minha Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/para-alem-do-direito-alternativo-e-do-garantismo-juridico/). A propósito dessa obra que é homenagem, mas é também balanço de uma mirada crítica no Brasil que desaguou na criação de um entorno para situar abordagens de teorias críticas do Direito no Brasil – Para Além do Direito Alternativo e do Garantismo Jurídico: Ensaios Críticos em Homenagem a Amilton Bueno de Carvalho. Organizadores Salo de Carvalho, Diego de Carvalho, Gabriela de Carvalho e Renata Almeida da Costa, 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2017 – para a qual também contribui (Juízes à Frente de seu Tempo: Amilton Bueno de Carvalho (ou Cultura de Litígio, Ensino Jurídico e Direitos Humanos na Refuncionalização da Prática dos Operadores de Direito no Brasil), vamos encontrar David Sánchez Rubio registrando uma interlocução iniciada desde longa data e que tem continuidade até esta edição de Miradas Críticas.

De minha parte, desde quando o conheci em Sevilha, então jovem doutor não obstante as enormes responsabilidades acadêmicas, então compartilhadas com seu orientador Joaquín Herrera Flores, fui cada vez mais estreitando vínculos epistemológicos, também no campo das teorias críticas em direito e em direitos humanos.  Ali, no antigo  Mosteiro de Santa Maria de La Rábida, o mosteiro franciscano instalado em Palos de la Frontera, na província andaluza de Huelva, serviu para abrigar, no século XV a companhia de Colombo para organizar a expedição de conquista ao Novo Mundo; em Palos ainda é mantido o Muelle de las Carabelas, com as réplicas de la Niña, de la Pinta e de la Santa Maria, também a plataforma com o livros que Colombo lia – entre eles Santo Tomás, Avicenas, Averróis; ao lado, o velho monastério agora abrigando, no século XX, a Univesidade Internacional da Andaluzia, e seu programa de mestrado em direitos humanos, que Herrera e David conduziram, por sinal, num movimento contrário, o de recepcionar os estudantes latino-americanos movidos pelas teses decoloniais e de libertação, num processo recíproco de emancipação. Testemunhei todo esse intercâmbio em minha visita docente ao programa, nos final dos anos 1990.

Se há um fio condutor material no sentido epistemológico para caracterizar esse intercâmbio, esse é o que tece o percurso dos processos de luta por liberdade e dignidade, e que nos entrelaça como companheiros de viagem na rota da emancipação: desde Roberto Lyra Filho que lançou a pedra fundante da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR. David o distingue como interlocutor em Miradas Críticas, mas já antecipara elementos desse diário de viagem quando ele veio a contribuir, a meu convite, de Salo de Carvalho e de José Carlos Moreira da Silva Filho, para a obra que organizamos: Criminologia Dialética, 50 Anos. Um Diálogo com o Legado de Roberto Lyra Filho – http://estadodedireito.com.br/criminologia-dialetica-50-anos-um-dialogo-com-o-legado-de-roberto-lyra-filho/.

Releio para esta recensão Teorias Críticas e Direitos Humanos. Contra o sofrimento e a injustiça social. Organizadores David Sánchez Rubio, Liziane Paixão Silva Oliveira e Carla Jeane Helfemsteller Coelho. Curitiba: Editora CRV, 2016. Meu texto com Nair Heloisa Bicalho de Sousa – Direitos Humanos e Educação: questões históricas e conceituais –  na primeira parte do livro: Teoria Crítica: história, educação, libertação, insurgências e lutas, vem na sequência de nossa interlocução. O que pretendemos, Nair e eu, nesse texto, é articular a relação entre Direitos Humanos e educação, tal como David Sánchez Rubio indica “de [que]los nuevos sujetos colectivos [são] capaces de elaborar un proyecto político de transformación social y en donde se construyen nuevas sociabilidades y se establecen reconocimentos recíprocos a partir de una ciudadania popular activa y autónoma” (SÁNCHEZ RUBIO, David. Derechos Humanos Instituyentes, Pensamiento Crítico y Praxis de Liberación. Argentina, España e Mexico: Akal/Inter Pares, 2018, p. 150.

Não é circunstancial, pois, que a monumental Enciclopédia Latino-Americana dos Direitos Humanos (Antonio Sidekum, Antonio Carlos Wolkmer e Samuel Manica Radaelli, organizadores. Blumenau: Edifurb; Nova Petrópolis: Nova Harmonia, 2016), tal como dizem os organizadores, tenha, em  sua concepção buscado “construir – por meio de suas 108 entradas (verbetes ou expressões temáticas), desde o conceito de Acesso à Justiça até o fenômeno do Zapatismo – uma gramática fundamental dos direitos humanos latino-americanos, com a intenção de expressar em sua essência uma atitude integracionista, buscando refletir uma experiência intercontinental e realizada por autores dos diversos países latino-americanos”.

No rol dos verbetes ou expressões temáticas, são designados elementos do debate acumulado histórica e politicamente na formação econômica, social, política e jurídica da região, muitos deles localizáveis em outros repertórios críticos ou não. Mas a obra põe em relevo um elenco de categorias novas emergentes do processo histórico de construção de um outro mundo possível desde o sul latino-americano.

Assim, verbetes singulares, inéditos, coligidos com a acuidade e o discernimento crítico da equipe liderada pelo professor Antonio Carlos Wolkmer, são destaques da obra: assessoria jurídica popular, bem-viver, bolivarismo, constitucionalismo emancipatório, constitucionalismo pluralista, criminalização dos movimentos populares, direito alternativo, educação jurídica popular, Fórum social mundial, jurisdição indígena, justiça comunitária, tempo emancipado.

Entre essas expressões distingo, para minha consideração mais interessada, o verbete Direito Achado na Rua (pp. 209-215), elaborado por Ricardo Prestes Pazello. Já se localiza em sentido dicionarizável um verbete bem elaborado alusivo a O Direito Achado na Rua, localizado em Enciclopédia de construção anônima (http://bit.ly/2MNa3cV), fruto de exercício acadêmico (disciplina Pesquisa Jurídica do Curso de Direito da UnB), o verbete da Wikipédia é uma excelente exposição, que cumpre mais o objetivo de divulgação do projeto O Direito Achado na Rua. Oferece um desenvolvimento histórico (com linha do tempo) da proposta, seus desafios (epistemológicos e institucionais, aludindo à criação de um constitucionalismo achado na rua, à criminalização dos movimentos sociais; políticos, educacionais e meios de concretização; identifica as principais críticas e indica referencias midiáticas e bibliográficas) relativas ao campo teórico e político que configura esse, pode-se dizer, movimento.

Também David Sánchez Rubio foi convocado para contribuir, oferecendo um verbete muito interessante – Intervenção Humanitária (p.  485-490) – cujo desdobramento ético, não obstante o limite regulatório desse instituto no direito internacional humanitário, deva cingir-se ao princípio segundo o qual “a vida se gera desde a vida e não desde a morte” (cf. http://estadodedireito.com.br/enciclopedia-latino-americana-dos-direitos-humanos/).

Parceiro engajado nos programas de pós-graduação da Universidade de Brasília (em Direito – Faculdade de Direito; e em Direitos Humanos e Cidadania – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares), David estará em Banca Examinadora (participação virtual) – qualificação doutoral, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania – PPGDH, de Maria Inês Adjuto Ulhôa, com o tema: teoria crítica, marxismo e direitos humanos – Compreendendo a emancipação humana. Oportunidade para rever o amigo pois também integro a Banca, que se realizará, por coincidência, no mesmo dia em que esta Coluna Lido para Você será publicada.

Digo rever porque há poucos meses, tivemos na UnB, com participação presencial do professor David, na Banca Examinadora de Eduardo Xavier Lemos. Direitos Humanos Desde e Para a América Latina: Uma Proposta Crítico Dialética a Partir de O Direito Achado na Rua. Tese em cotutela apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e ao Programa de Doctorado en Derecho de la Universidad de Sevilla. Brasília, 2023, 436 fls.

Conforme sintetizo em http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-desde-e-para-a-america-latina/, Eduardo, com efeito, traz como singularidade em seu texto, examinar a passagem teórico-política entre a concepção epistemológica inscrita na Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR (Roberto Lyra Filho), para o âmbito da práxis, tornado possível pela concepção e pela prática de O Direito Achado na Rua (Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; Movimento O Direito Achado na Rua (conforme J.J. Gomes Canotilho), pela mediação crítico-dialética, instituinte de Direitos, conforme formula seu co-orientador David Sanchez Rubio, e também em Alexandre Bernardino Costa, sobretudo em sua concepção de poder constituinte permanente.

Aqui se associa a percepção sociológico-filosófica de Fariñas-Dulce, com o enunciado de Ellacuría, uma indicação forte de Sanchez Rubio:

Se trata, por tanto, de un proceso negativo, crítico, y dialéctico, que busca no quedarse en la negación, sino que avanza hacia una afirmación nunca definitiva, porque mantiene en sí misma, como dinamismo real total más que como dinamismo lógico, el principio de superación. Siempre sigue el elemento de desajuste, injusticia y falsedad, aunque en forma cada vez menos negativa, al menos en los casos de avance real en lo ético personal y en lo político social. Y esta continuidad negativa, acompañada por el deseo general de cambiar y mejorar, mantiene activo el proceso. (ELLACURÍA in SENENT , 2012,. 366)[p. 204].

Vou ao Sumário do livro que David Sánchez Rubio acaba de publicar. Nele, além da Introducción. Confluencia de Voces e da Bibliografia, o Autor desenvolve nove capítulos demarcando exatamente as vozes confluentes da viva interlocução que o Autor vem mantendo nesse complexo território da saberes e humanidades que se designa América Latina:

CAPÍTULO PRIMERO. EL PENSAMIENTO DE JESÚS ANTONIO DE LA TORRE RANGEL. EL DERECHO QUE NACE DEL PUEBLO (COMO DERECHO INSURGENTE)

CAPÍTULO SEGUNDO. ALGUNOS APORTES DEL PENSAMIENTO DE FRANZ HINKELAMMERT SOBRE LA IDEA Y LA PRÁCTICA DE DERECHOS HUMANOS

CAPÍTULO TERCERO. EL PENSAMIENTO DE HELIO GALLARDO SOBRE DERECHOS HUMANOS, PRAXIS DE LIBERACIÓN, TRAMAS SOCIALES Y MULTIGARANTÍAS

CAPÍTULO CUARTO. HOMENAJE A ANTONIO CARLOS WOLKMER: UNA VIDA COMPROMETIDA CON LA JUSTICIA SOCIAL Y CON LOS EXCLUIDOS DESDE LA COHERENCIA ACADÉMICA Y EPISTÉMICA

CAPÍTULO QUINTO. ROBERTO LYRA FILHO: DIALÉCTICA HUMANISTA, PLURALISMO JURÍDICO Y PROCESOS DE LUCHA POR LA LIBERTAD Y LA DIGNIDAD

CAPÍTULO SEXTO. EL PUEBLO HACE DERECHO, ABRIENDO ESPACIOS DE LIBERTAD (HOMENAJE A JOSÉ GERALDO DE SOUSA JÚNIOR)

CAPÍTULO SÉPTIMO. AMILTON BUENO DE CARVALHO: UN DERECHO DE OPCIONES CON NARANJAS DULCES Y AMARGAS

CAPÍTULO OCTAVO. PAULO FREIRE, TOMA DE CONCIENCIA Y DIGNIDAD HUMANA: LA LUCHA Y EL GOCE DE LOS DERECHOS DESDE LO INSTITUYENTE

CAPÍTULO NOVENO. EL HUMANISMO Y LO UNIVERSAL EN EL PENSAMIENTO DE LEOPOLDO ZEA

 

Para David, cada um dos pensadores tem em comum não apenas uma visão crítica das instituições políticas, econômicas e jurídicas ligadas às relações de poder, mas também o fato de apostarem naqueles processos de libertação cujos principais protagonistas são os movimentos sociais que lutam por seus direitos e pela um mundo inclusivo onde cabemos todos. Estou feliz de me ver entre os Autores com os quais considerou relevante fazer interlocução. Não é um episódio, é o fortalecimento de laços, entrelaçados com fios de inteligência e de amizade, algo sentipensantecorazonado, tal como David já revelara em sua participação em 2019, no Seminário Internacional realizado na Universidade de Brasília para celebrar 30 anos do Projeto O Direito Achado na Rua (http://estadodedireito.com.br/o-direito-como-liberdade-30-anos-de-o-direito-achado-na-rua/), com uma comunicação marcante e mobilizadora: O Direito Achado na Rua, Entre lo Constituyente, lo Insituyente y las Praxis de Liberación.

Ao cabo de minha leitura de Miradas Críticas en Torno al Derecho y la Lucha Social: Confluencias con América Latina, uma nota de relevo. É que David Sánchez Rubio vai se tornando cada vez com mais organicidade intelectual e política um pensamento estruturante da emancipação e da libertação, pela mediação teórica crítica no Direito e nos Direitos Humanos.

Em 2014, nesse sentido orgânico, vale registrar sua passagem por Brasília, na UnB, onde participou de Banca de Mestrado no Programa de Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania, no CEAM/NEP (Banca de Isis Táboas), ocasião em que concedeu entrevista a Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Coordenadora do PPGDH: Direitos Humanos Constituintes e Processos de Luta. Este o título da entrevista publicada em http://odireitoachadonarua.blogspot.com/search?q=david+sanchez+rubio&updated-max=2021-07-28T13:59:00-03:00&max-results=20&start=4&by-date=false. Um trecho, deduzido da questão – Tendo em vista as experiências de diferentes movimentos sociais que lutam por direitos, as quais se combinam com diversas formas de violação de direitos humanos no campo e na cidade, como o senhor avalia as perspectivas futuras dos direitos humanos Brasil? – dá a medida dessa compreensão comum assentada na confiança instituinte que tem sido o campo de interesse de nossas preocupações:

La fuerza de los derechos humanos en eficacia y reconocimiento garantizado se incrementará cuando el poder constituyente popular y democrático, que también puede decantarse a la creación de espacios de dominación y destructores de dignidades, se complemente con los derechos humanos instituidos, que concretizan las luchas instituyentes y emancipadoras populares y que permiten a todo ser humano ser tratado como sujeto actuante e instituyente y no como objeto manipulable, victimizado y prescindible. Desde esta dimensión instituyente y como proceso de lucha, los derechos humanos con su dimensión política, socio-histórica, procesual, dinámica, conflictiva, reversible y compleja, nos permitirá de manera sinestésica espabilarnos de la anestesia en la que estamos sumergidos, con la que los cinco o los seis sentidos actúan simultáneamente las veinticuatro horas del día y en todo lugar. Son prácticas que se desarrollan diariamente, en todo tiempo y en todo lugar y no se reducen a una única dimensión normativa, filosófica o institucional, ni tampoco a un único momento histórico que les da un origen. Derechos humanos guardan más relación con lo que hacemos en nuestras relaciones con nuestros semejantes de manera individual y colectiva, ya sea bajo lógicas o dinámicas de emancipación o de dominación, que con lo que nos dicen determinados especialistas lo que son (aunque también repercute en nuestro imaginario y en nuestra sensibilidad sobre derechos humanos). Lo instituido está siempre afectado por lo instituyente tanto popular como oligárquico o poliárquico. Y debe ser el primer poder desde un prisma emancipador, el que debe primar. Todo esto tiene mucha relación con los derechos humanos militantes que desde hace años ya señalara Roberto Lyra Filho y desarrollara José Geraldo de Sousa Jr., junto a esa capacidad de la sociedad de producir derechos de manera liberadora.

Traduzindo

A força dos direitos humanos em termos de efetividade e reconhecimento garantido aumentará quando o poder constituinte popular e democrático, que também pode optar pela criação de espaços de dominação e destruidores da dignidade, for complementado pelos direitos humanos instituídos, que concretizam as lutas fundadoras e popular emancipatório e que permitem que todo ser humano seja tratado como um sujeito atuante e instituinte e não como um objeto manipulável, vitimizado e dispensável. A partir desta dimensão instituinte e como processo de luta, os direitos humanos com sua dimensão política, sócio-histórica, processual, dinâmica, conflituosa, reversível e complexa, nos permitirão despertar sinesteticamente da anestesia em que estamos submersos, com os quais os cinco ou seis sentidos atuam simultaneamente vinte e quatro horas por dia e em todos os lugares. São práticas que se desenvolvem diariamente, em todos os tempos e em todos os lugares e não se reduzem a uma única dimensão normativa, filosófica ou institucional, nem a um único momento histórico que lhes dá origem. Os direitos humanos estão mais relacionados com o que fazemos em nossas relações com nossos semelhantes, individual e coletivamente, seja sob lógicas ou dinâmicas de emancipação ou de dominação, do que com o que certos especialistas nos dizem o que são (embora também afete nosso imaginário e em nossa sensibilidade para com os direitos humanos). O instituído é sempre afetado pelo instituinte, tanto popular quanto oligárquico ou poliárquico. E deve ser o primeiro poder de um prisma emancipatório, aquele que deve prevalecer. Tudo isso tem muito a ver com os direitos humanos militantes que Roberto Lyra Filho já aponta há anos e que José Geraldo de Sousa Jr. vem desenvolvendo, junto com essa capacidade da sociedade de produzir direitos de forma libertadora.

Trata-se, parafraseando David e recuperando sua reflexão na entrevista concedida a Professora Nair Bicalho já indicada, de realizar – e para tanto vale as perspectivas abertas por essas Miradas Críticas – luchas sociales colectivas e individuales, en forma de procesos de resistencia de movimientos sociales por espacios de libertad y de una vida digna de ser vivida y acciones cotidianas de reivindicación, por sociabilidades y relaciones de reconocimiento de la dignidad en todas las esferas de lo social que sepan convocar y articular, tomando conciencia de la dimensión pre-violatoria de los derechos humanos y que dependen de nuestras acciones concretas diarias con las que unos a otros nos tratamos como sujetos y no como objetos, desde dinámicas de reconocimiento mutuo, horizontales y no verticales y jerárquicas bajo el patrón de superiores/inferiores (lutas sociais coletivas e individuais, na forma de processos de resistência dos movimentos sociais por espaços de liberdade e uma vida digna e ações cotidianas de reivindicação, por sociabilidades e relações de reconhecimento da dignidade em todas as esferas do social que saibam convocar e articular, tomando consciência da dimensão pré-violação dos direitos humanos e que dependem de nossas ações concretas cotidianas com as quais nos tratamos como sujeitos e não como objetos, a partir de dinâmicas de reconhecimento mútuo, horizontais e não verticais e hierárquicas sob o comando superior /padrão inferior).

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

segunda-feira, 15 de maio de 2023

 

25ª Hora: Genocídio Declarado. Agir ou Omitir-se?

  •  em 



Acabo de ler matéria publicada no Estadão, com a assinatura de Fernanda FrizzoBragato, professora do Programa de Pós-graduação em Direito – UNISINOS e de KenarikBoujikian, cofundadora da Associação Juízes para a Democracia, desembargadora aposentada TJSP, que acompanharam como membros da sociedade civil, a visita ao Brasil da subsecretária-geral das Nações Unidas e Assessora Especial para Prevenção do Genocídio Alice WairimuNderitu. No artigo suas subscritoras afirmam categoricamente, diante das conclusões e da declaração pública da autoridade das Nações Unidas, que é chegada a hora da ONU proteger os Guarani e Kaiowá, referindo-se somente ao âmbito mato-grossense do sul da visita. Para os aqui no Brasil, entre nós, que há anos acompanhamos a tragédia que a desídia e a cumplicidade com a voracidade espoliadora e opressora que afeta os territórios, a cultura e a existência dos povos indígenas, é a 25ª hora.

 

No artigo as autoras esclarecem que a assessora chefia um Escritório cujo mandato objetiva coletar informações sobre graves violações de direitos humanos contra grupos étnicos e raciais discriminados que, se não forem evitadas ou interrompidas, podem levar a crimes de atrocidade (genocídio, crimes contra humanidade, crimes de guerra ou limpeza étnica).

 

E esclarecem que tais crimes não acontecem espontaneamente e decorrem de processos que se desdobram em inúmeros atos ou omissões. Constatado o risco, o Escritório alerta o Secretário-geral da ONU, bem como a comunidade internacional, em busca de soluções. Ele oferece cooperação ao Estado e pode engajar-se com a sociedade civil em ações para prevenir, deter ou preparar a responsabilização por possíveis crimes. Ele age preventivamente na presença de fatores de risco, como discursos de ódio contra grupos vulneráveis, interesses econômicos sobre os bens que lhes são de direito, desequilíbrio de poder entre os grupos em conflito, indisposição ou incapacidade do Estado para proteger, presença de hostilidades e ocorrência de crimes. 

 

Com efeito, na sexta-feira, dia 12/05, a sub-secretária em declaração pública, apresentou as observações preliminares da visita de 11 dias realizada no Brasil, onde esteve pela primeira vez, numa missão durante a qual ela se reuniu com altos funcionários e representantes do governo, representantes de organizações da sociedade civil e representantes de comunidades indígenas e minorias em todo o país, assim como membros da comunidade internacional.

 

Ela deixou claro a natureza, os objetivos e as circunstâncias da visita, esclarecendo que veio a convite do governo brasileiro, que é uma agenda convencional de monitoramento nos seus termos legais e os limites do relatório. Nos termos de sua declaração: 

 

Esta é a minha primeira visita oficial ao Brasil, realizada de 1 a 12 de maio de 2023. Primeiramente, estendo meu agradecimento ao governo Brasileiro. 

 

 

Devo ser clara sobre o principal objetivo desta visita. Estou no Brasil a convite do governo brasileiro. Isso é esperado, considerando que tenho um mandato global e visito vários outros países também. O propósito da minha visita foi realizar consultas a oficiais sêniores do governo, colegas da equipe de país das Nações Unidas, representantes da sociedade civil, líderes comunitários e outros atores relevantes sobre ampliar a proteção de povos indígenas, pessoas afro-brasileiras e outros grupos em situação de risco. 

 

 

Em Brasília, tive reuniões com Ministros e oficiais sêniores dos Ministérios das Relações Exteriores, Igualdade Racial, Direitos Humanos e Cidadania, Povos Indígenas, Mulheres, Esporte, Saúde e Justiça e Segurança Pública, além da Defensoria Pública, Procuradoria Geral da República, Advocacia Geral da União, Conselho Nacional de Direitos Humanos e organizações da sociedade civil. 

 

 

Também viajei para o estado de Roraima e tive reuniões com autoridades governamentais federais e estaduais, incluindo o governador AntonioDenarium e representantes dos povos indígenas e da sociedade civil em Boa Vista. Visitei o Centro de Saúde Indígena de Boa Vista (CASAI) e testemunhei de perto a situação de extrema precariedade do povo Yanomami, que há décadas sofre abusos e violações. Tive reuniões com as lideranças Yanomami e visitei outros indígenas e outras comunidades da região, que vêm recebendo apoio do governo nacional desde o início deste ano, mas continuam em situação de grande vulnerabilidade. 

 

 

Também visitei o estado de Mato Grosso do Sul, inclusive o governador Eduardo Riedel, e tive reuniões com autoridades estaduais e sociedade civil em Campo Grande. Visitei a comunidade Guarani Kaiowá no território Guapo’y e outras partes do estado. Conversei com acadêmicos da Universidade de Dourados e fiz uma apresentação sobre formas de aumentar a proteção do povo Guarani Kaiowá e de outros grupos indígenas. Visitei as populações deslocadas Guarani Kaiowá e a comunidade quilombola.

 

 

No Rio de Janeiro, realizei consultas com representantes de pessoas afrodescendentes que têm enfrentado graves atos de violência, bem como funcionários do governo e representantes da sociedade civil que representam e promovem os direitos de vários grupos vulneráveis. No Rio me encontrei com o Governador Interino Thiago Pampolha e com o Procurador Regional e participei de um evento organizado pela sociedade civil. 

 

Antes de me aprofundar em um resumo de meus achados, devo esclarecer o papel de meu mandato, o que foi explicado em todos os compromissos que tive aqui no Brasil.  

 

Não estou aqui para caracterizar a natureza dos crimes cometidos ou determinar se o crime de genocídio foi cometido ou não no Brasil.

  

Somente um tribunal de justiça competente (nacional ou internacional) pode determinar se houve genocídio, crimes de guerra ou crimes contra a humanidade (crimes de atrocidade). Meu mandato é a prevenção do genocídio contra grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos, comumente referidos como grupos protegidos.  

 

Com certeza, está tudo muito claro sobre o alcance da visita e da função de monitoramento que incumbem ao mandato da representante das Nações Unidas. Ela faz o relato da situação constatada mas não lhe cabe caracterizar a natureza de crimes cometidos, mesmo que se trate de genocídio, porque essa é uma atribuição de tribunais nacionais e internacionais. Mas, convenhamos, se a descrição verdadeira da realidade a explica, nos termos do relatório, salta aos olhos a sua tipicidade. Como deve saltar aos olhos das autoridades que acompanharam a visita e o vão receber formalmente.

 

Basta ver as conclusões publicamente anunciadas: 

 

Olhando para os fatores de risco para crimes de genocídio e atrocidades em relação à situação dos povos indígenas, brasileiros afrodescendentes e outros grupos de risco no Brasil, constato com preocupação que há registros de graves violações do direito internacional dos direitos humanos contra esses grupos; situações de instabilidade, principalmente no que se refere ao conflito entre indígenas e fazendeiros; uso excessivo da força pelas agências de segurança, especialmente contra pessoas negras; tensões intergrupais entre comunidades indígenas e outros grupos; e uma série de políticas que facilitaram a discriminação e o abuso desses grupos protegidos com base em sua identidade.

 

A presença desses fatores de risco para crimes de atrocidade exige medidas urgentes por parte das autoridades, da sociedade civil, da mídia, das Nações Unidas e de outros atores relevantes para corrigir a trajetória.

 

Antes de concluir, permitam-me fazer algumas recomendações para aumentar a proteção de grupos indígenas, afrodescendentes e outras comunidades em risco no Brasil: 

 

  • Agradeço ao governo do Brasil pelo reconhecimento dos desafios que o país enfrenta, especialmente indígenas, afrodescendentes e outros grupos de risco. Aplaudo o governo por criar ministérios muito específicos para Povos Indígenas, Igualdade Racial, Mulheres e Direitos Humanos e Cidadania, de modo a aumentar a proteção dos direitos de brasileiras e brasileiros, especialmente dos grupos protegidos.

 

 

  • Agradeço também à Equipe de País das Nações Unidas, liderada pela Coordenadora Residente, Silvia Rucks, por apoiar o governo na prestação de assistência vital à população afetada e trabalhar lado a lado com atores relevantes para apoiar o Brasil no avanço dos direitos humanos, assistência humanitária e desenvolvimento.

 

 

  • O Brasil, signatário da Convenção de Genocídio e de outros tratados de direitos humanos, deve combater a impunidade, principalmente entre as forças de segurança que cometeram graves violações contra indígenas e afrodescendentes brasileiros. Isso deve ser feito de maneira independente e imparcial, com o único objetivo de alcançar justiça para as vítimas, ao mesmo tempo em que promove a coesão nacional.

 

 

  • O governo deve garantir que as novas medidas de apoio aos povos indígenas, especialmente no território Yanomami, sejam aprimoradas, contínuas e sustentáveis.

 

 

  • Além de retirar os garimpeiros do território indígena Yanomami, é fundamental que o governo, com o apoio de outros atores, aborde as questões da juventude, principalmente dos grupos protegidos. O Brasil não pode continuar perdendo sua juventude por meio de suicídio, violência, saúde mental e exploração, incluindo exploração sexual.

 

 

  • Saliento aqui também o papel inestimável que representantes dos meios de comunicação têm na educação, informação, sensibilização e alerta sobre situações de risco de genocídio e crimes atrozes relacionados, contrapondo as narrativas de ódio e segregação com fatos verificados.

 

 

  • O discurso de ódio pode levar a discriminação, ódio, violência e, em seu extremo, crimes de atrocidade e deve ser abordado em alinhamento aos direitos humanos internacionais. Isso vale especialmente para o discurso de ódio dirigido contra os grupos protegidos que mencionei e outras populações em risco, por exemplo, defensores dos direitos humanos, líderes comunitários, mulheres, entre outros. Meu Escritório está pronto para fornecer apoio técnico ao governo, equipe nacional da ONU e outros atores relevantes no Brasil nesta área.

 

 

 

  • O governo deveria examinar as atuais políticas de combate ao crime (drogas), que têm impactado fortemente a população negra. O governo deve investigar vigorosamente todos os incidentes de assassinato e execuções extrajudiciais. Por exemplo, mortes em mãos de policiais classificadas como “atos de resistência à prisão” devem ser integralmente investigadas por órgãos independentes.

 

 

  • Agradeço ao governo, à Coordenadora Residente da ONU, à Act Alliance e a todos aqueles que contribuíram imensamente para o sucesso da minha visita. Eu sinceramente aprecio seu apoio. Este é o começo de uma longa jornada e continuaremos engajados.

 

 

Não é necessário desenhar. O relatório mesmo preliminar, é uma notitia criminis. Em toda a sua abrangência e em diferentes tipos. Principalmente na caracterização de genocídio e crimes de atrocidade. Para os que estamos há muito advertindo para a gravidade dessa situação, tal como aqui mesmo no espaço deste jornal (https://www.brasilpopular.com/pode-se-falar-de-crime-de-genocidio-no-quadro-de-mortandade-atual-yanomami-em-roraima/), é chegada a 25ª hora. Caracterizados os crimes, cabe as autoridades judicantes que detêm a iniciativa penal dar consequência a notitia criminis. O que farão? Agir ou omitir-se?

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).