quinta-feira, 30 de março de 2023

 

Mujeres Latinoamericanas Inmigrantes em España a través del Cine Documental

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Patricia Vilanova Becker. Mujeres Latinoamericanas Inmigrantes em España a través del Cine Documental: Decolonialidad, Resistencias y Ciudadanía. Tese de Doutoramento. Programa de Doctorado: Programa en Género y Diversidad, Universidade de Oviedo, España, 2023, 334 páginas.

 

Com enorme satisfação volto a me encontrar em espaço acadêmico de avaliação de trajetória com Patrícia Vilanova Becker. Agora, na Universidade de Oviedo, integrando na qualidade de 3º vogal o Tribunal de Tesis Doctoral, para a leitura e defesa de sua tese de doutoramento, juntamente com a Presidenta, Isabel Carrera Suárez  (Universidad de Oviedo); Secretario, Hans-Peter van den Broek (Universidad de Oviedo); Vocal 1ª, Marta Sofía López Rodríguez (Universidad de León); Vocal 2ª, Socorro Suárez Lafuente (profesora jubilada, Universidad de Oviedo), a tese dirigida pela professora Esther Álvarez López (Universidad de Oviedo).

 Reencontro Patrícia sempre protagonista, tal como ela sempre se me apresentou, tendo eu sido seu orientador no mestrado em direito, na Faculdade de Direito, até que ela defendeu, em 2017, seu trabalho, que pode ser examinado no Repositório Institucional de Dissertações e Teses da UnB, já publicado desde março de 2018.

Passo a referência: BECKER, Patrícia Vilanova. Políticas de respeito à diversidade sexual e à igualdade de gênero na iniciativa privada: Uma análise a partir do projeto Freeda: espaços de diversidade. 2017. 86 f., il. Dissertação (Mestrado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017 (https://repositorio.unb.br/handle/10482/31406).

Enquanto redigia este Lido para Você, recebi da professora Esther Álvarez, orientadora de Patrícia, a confirmação de que a la tesis le fue otorgada la máxima calificación, sobresaliente cum Laude, y ha sido propuesta para el Premio Extraordinario de Doctorado.

Tenho ainda mais satisfação nessa recensão da tese de Patrícia Vilanova Becker, afinal, aprovada por unanimidade, nota máxima, mención cum laude, posto que publicada no Jornal Estado de Direito, cuja sede é em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, pois Patrícia é gaúcha, e seu percurso que passou por Brasília (Mestrado), Bolonha (Master) e agora em Oviedo (Doutorado), iniciou sua formação na Faculdade de Direito (Bacharelado em Direito), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Já na dissertação Patrícia orientava sua perspectiva de estudos de gênero, com uma característica autobiográfica de enunciação em primeira pessoa (algo que não é interditado nos estudos sociais e de humanidades, basta ver o exemplo acadêmico de Boaventura de Sousa Santos, conforme o seu Sociologia na Primeira Pessoa: fazendo pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro. OAB – Revista da Ordem dos Advogados do Brasil. Nº 49, São Paulo: Editora Brasiliense, 1988).

De sua dissertação, em boa síntese vemos que o trabalho,

realiza um estudo autoetnográfico da experiência local do projeto Freeda: espaços de diversidade, autointitulado um “negócio social” em matéria de diversidade sexual e igualdade de gênero, analisando como os discursos de políticas de promoção da diversidade em matéria de gênero e sexualidade no ambiente empresarial se relacionam com dinâmicas próprias do modo de produção capitalista. Emprega-se a metodologia autoetnográfica que busca analisar criticamente memórias, documentos, discursos e outros elementos da experiência vivida. Enquanto co-fundadora deste projeto, realizo um estudo de caso sobre como Freeda enfrenta problemáticas e constrói práticas dentro do campo das políticas de promoção da diversidade no ambiente laboral. Estudos feministas, estudos pós-coloniais e descoloniais, O Direito Achado na Rua e a teoria queer são importantes balizas teóricas na análise de como os discursos jurídicos, políticos e científicos nesse âmbito possuem polos hegemônicos de produção e, ao mesmo tempo, assumem circulação transnacional impactando em nossas realidades locais.

 

Já nos deparamos os elementos estruturantes de seu modo sentipensante de realizar conhecimento. Patrícia encarna o que é uma característica da atividade intelectual em nosso coletivo de pesquisa – O Direito Achado na Rua. Ainda há poucos dias, na ocasião de defesa da tese de doutorado de Eduardo Xavier Lemos – em cotutela UnB/Universidade de Sevilha – Direitos Humanos Desde e Para a América Latina: Uma Proposta Crítico Dialética a Partir de O Direito Achado na Rua – presentes na banca, além dos colegas da UnB, David Sánchez Rubio (Universidade de Sevilha),  Maria José Fariñas-Dulce (Carlos III, Madrid), Vicente Barragan Robles (Universidade de Sevilha), Boaventura de Sousa Santos (CES-Universidade de Coimbra), eu salientava a esse propósito, o quanto assiste razão a Boaventura de Sousa Santos em convocar O Direito Achado na Rua para novas tarefas, para atenção a temas emergentes, paras as travessias que movem as subjetividades, ressignificam os espaços de interação social e criam direitos que são discerníveis nesses processos, de fato achados por meio de novas categorias que as designem os sujeitos em movimento (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: questões emergentes, revisitações, travessias. Coleção Direito Vivo, vol. 5. Rio de Janeiro, 2021; CÔRTES, Sara da Nova Quadros. Direito Achado na Rua: por que (ainda) é tão difícil construir uma teoria crítica do direito no Brasil? In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, vol. 10. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021).

E tem mais ainda razão quando se trate de pensar a partir de realidades incompensáveis nos trânsitos de conjunturas. Haveria uma incompatibilidade entre o pensar crítico que funda A Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR e O Direito Achado na Rua, atenta às tensões entre reforma e revolução; democracia e socialismo; dialética e pluriversidade, inscritas em enunciados que possam ter se esgotado ou que não sejam possíveis de assimilação na liquefação dos tempos correntes?

Penso que por mais aberto que uma perspectiva plurivérsica permita para capturar realidades plásticas em trânsito, isso não prescinde de uma aproximação epistemológica de enquadramento dialético. Não foi incompatível lá atrás, na conjuntura do pensar dialético-materialista em face da impotência positivista para compreender o real, com Marx e Engels admitindo a consistência do empirismo-descritivo, necessário à ordenação do caos dos fenômenos, conforme expressamente propõe com seu método em Contribuição à Crítica da Economia Política; e na mesma ordem de reflexão, não se envergonhou o autor de Dialética da Natureza de mostrar confiança também na descrição verdadeira do objeto como valor explicativo, tal como asseverou em seus relatórios sobre habitação e sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra (Manchester).

O pensar dialético pois, não fecha aberturas plurivérsicas como bem demonstra Ailton Krenak (Futuro Ancestral), ao fazer a crítica à plenipotência partidária e sindical que se realizam por meio da política, insuficiente, a seu ver para aferir as emergências de diferentes humanidades somente acessíveis por meio de novas alianças de afetos (sobre isso conferir o meu http://estadodedireito.com.br/futuro-ancestral/.

O caríssimo Boaventura tem nos ensinado que formas políticas – democracia, socialismo – são modos de experenciar a política, por isso que há múltiplas formas democráticas legítimas e socialismos legítimos se e enquanto democráticos. Assim por exemplo nos demonstra enquanto sujeito histórico o MST – Movimento Social dos Trabalhadores Sem Terra, já designado por Celso Furtado como o mais importante e revolucionário movimento social no mundo, que continua operando a práxis da reforma agrária para criar condições de realizar o socialismo, enquanto distribui cestas básicas para os vulnerabilizados atingidos pela negação de políticas inclusive sanitárias e ocupa a bolsa de valores para lançar ações de suas cooperativas de produção agrícola sustentável e familiar (https://www.youtube.com/watch?v=RxEL1cvFcrg – TV 61 O Direito Achado na Rua: O MST ocupa a Bolsa de Valores: entrevista com Diego Vedovatto).

Não se trata pois, de divergência de posicionamentos. A propósito, não obstante falar-se de uma divergência de posicionamentos, ao menos em conversa entre autores, o que se constata entre intelectuais de retaguarda, como o próprio Boaventura designa, é existir a rigor complementariedade das aproximações. Enfoques acentuados pelas perspectivas dos autores desde as interpelações decorrentes de seus pontos de vista ou da vista a partir dos lugares de observação. Assim, em O Sistema e o Antissistema. Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2021, com as autorias de Boaventura de Sousa Santos, Helena Silvestre e Ailton Krenak.

Se em Boaventura pode-se depreender um binarismo sistema/antissistema presente nas mais diversas disciplinas, das ciências naturais às ciências humanas e sociais, da biologia à física, da epistemologia à psicologia, a racionalidade explicativa da movimentação sistema/antissistema se faz na perspectiva globalizada do mundo (sistema mundo), na dinâmica de expansão do capitalismo em cujo âmbito se formam os impulsos de movimentos e ideologias de direita e de esquerda. Recapitulando as condições temporais e espaciais dessa movimentação, Boaventura expõe a resposta atual de profundo aperfeiçoamento do capitalismo que, com a quarta revolução industrial (inteligência artificial), torna possível desenvolver controles eficazes da população.

Por isso a sua consideração do balanço direita/esquerda porque ele leva a por em causa a questão da democracia e das institucionalidades que nela são geradas assim como nas organicidades que se constituem na sociedade civil, e indicar a necessidade de se fazer a sua defesa (da democracia). Por tudo ver o meu http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/.

Tudo se passa, conclui Eduardo Lemos, no exercitar “o nosso papel, portanto, [que] é lutar, dialogar e aprender com os sujeitos e sujeitas que resistem cotidianamente contra as opressões do colonialismo, do capitalismo e do patriarcado, mas experenciando tais lutas, porque essas sempre serão constitutivas de um pensamento de transformação social; para os coletivos insurgentes”, assim, aliás, indicou Lívia Gimenes da Fonseca de modo a realçar o sentido coletivo da construção que se inscreve no programa-compromisso do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, nos fundamentos teórico-metodológicos da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, orientados por O Direito Achado na Rua, sua concepção, seus projetos e sua prática. Uma mirada no apêndice, com o catálogo dessa construção, atesta a fortuna crítica do movimento estudado na Tese.

E ainda assim tendo em conta, conforme nos sugere Boaventura de Sousa Santos, em um de seus mais instigantes textos – Por que pensar-, que “pensar não é tudo”, às vezes é preciso “des-pensar”, “des-aprender”, como mostra a poesia (Manoel de Barros, A didática da invenção in O livro das ignorãças). Em Boaventura “pensar não é tudo, porque além de agir nós temos que sentir, nós temos que criar formas de pensamento que sejam mais acolhedoras às emoções, ao corpo, aos afetos, ao sentimentos. Isso também é uma grande dificuldade para o conhecimento em que fomos treinados. As ações coletivas de transformação social têm essa dupla característica de resistência e de criatividade e quer uma quer outra exige envolvimento emocional, entusiasmo e indignação. O próprio ódio é por vezes necessário, ao mesmo tempo que o amor, e a solidariedade, ou seja, elementos de sensibilidade com os quais a modernidade ocidental sempre se achou muito mal” (https://www.scielo.br/j/ln/a/CLwxcMF6Kq6Rzc9h74xt98t/?lang=pt).

Minha argumentação completa pode ser encontrada em http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-desde-e-para-a-america-latina/. Eu a evoco porque essa é a mirada de Patrícia Vilanova Becker, que pude acompanhar em exercício quando ela praticava seu estágio docente em disciplina de minha regência no curso de Graduação (Pesquisa Jurídica), seu modo corazonado na sua atuação paulofreireana de formação.

Eis algo que nunca se perdeu em Patrícia e que, felizmente, posso compartilhar porque ela enviou para nosso sítio de diálogo na web, para o espaço de cartas, o parlatório que organizamos para que nossos pesquisadores e pesquisadoras, em viagem, pudessem, ao estilo de diário ou crônicas, defrontar-se com suas angústias ou incertezas, exercitando-as publicamente, e não a elas sucumbindo.

Patrícia ocupou esse espaço com cartas antológicas (http://odireitoachadonarua.blogspot.com/p/cartas.html), nas quais revestiu de intensa subjetividade os temas ásperos de seu sentipensar, simultaneamente existencial e autoreflexivo.

Veja-se, sua carta – Quando a teoria descolonial se transforma em ferramenta de colonização em mãos europeias (Carta de Oviedo):

Ontem vivi uma situação extremamente violenta em um espaço formativo antirracista, em um curso de formação oferecido por uma associação que trabalha em temas migratórios. O curso iniciou com uma pessoa espanhola ensinando pensamento e feminismo descolonial com uma densidade teórica digna de doutorado, de forma rápida, vertical, academicista, para um público variado de pessoas onde se incluíam sujeitos imigrantes que não tinham bagagem acadêmica. A ponente, nitidamente, dialogava somente consigo mesma.

Meu desconforto aumentava em escala progressiva. Começou a explicar o que era extrativismo (de recursos materiais dos países subalternizados) e cultural/epistêmico. Explicava o que era apropriação cultural. Quando nos perguntou se podíamos pensar em algum exemplo de extrativismo, me pareceu o melhor momento para dizer que o extrativismo epistêmico ocorre todo o tempo na academia, quando a teoria descolonial se transforma em mercadoria acadêmica para programas europeos, que expropriam os sujeitos e ficam somente com a teoria. Me pareceu oportuno apontar que impartir um curso de pensamento descolonial tendo como ponente uma pessoa branca/européia, era também uma forma usurpar o lugar enunciativo dos sujeitos protagonistas da teoria.

As discussões que se seguiram passaram pela autodefesa reiterada do direito da ponente de ensinar pensamento descolonial, de que se ela, ponente/professora espanhola, não desse o curso, ninguém mais o daria, pois não havia pessoas imigrantes habilitadas a dar este conteúdo. Que era difícil encontrá-las. Que as pessoas imigrantes estão muito ocupadas com sua precariedade e que não tem tempo para dar conteúdos como este. Passou pela ponente e outra pessoa europeia sugerindo que eu poderia juntar minhas amigas imigrantes e fazer meu próprio curso. Passou por escutar a ponente dizer que ela já havia ouvido muitas vezes esta crítica que eu estava fazendo, mas que ela tinha refletido e decidido que ela era sim legitima para ensinar pensamento descolonial. E por fim, passou pela ponente dizendo que era “uma casualidade” que algumas pessoas imigrantes estivessem presentes, e que o curso estava pensado, na verdade, para conscientizar voluntários e profissionais brancos/europeus sobre seus privilégios. Ora, nada mais normal que fazer um curso aberto antirracista e não esperar que venham ao curso pessoas imigrantes e racializadas! Trinta minutos de pessoas europeias ensinando-me porque não existe nenhum problema que elas ensinem a pessoas imigrantes e racializadas o que é colonialismo, afinal se não fosse pela ponente europeia ninguém mais poderia dar o conteúdo, ou seria um exagero exigir que se busque uma pessoa habilitada, já que suporia um esforço hercúleo, como buscar uma flor no deserto.

Sai de lá com tristeza profunda, lágrimas contidas, a mesma raiva de sempre ao deparar-me com o mesmo muro de arrogância, típico dos espaços espanhóis quando são submetidos à crítica. Imigrante bom é imigrante oprimido, é imigrante indefeso, é imigrante que precisa de ajuda, que depende da boa vontade e da generosidade europeia.

Tenho absoluta consciência dos privilégios da minha condição migratória, que advém da minha branquitude, da minha residência regularizada, do perfil acadêmico e da condição laboral vigente. Supostamente minha experiencia migratoria deveria ser muito amena e suave. Contudo, cada vez mais percebo que não reúno os requisitos necessários para ser objeto de amor e generosidade, já que não estou na posição de precariedade digna da generosidade europeia, já que tenho arsenal linguístico e teórico que me permitem confrontar com mais facilidade as práticas e os discursos das pessoas brancas/europeias que dominam os espaços de poder dos temas migratórios.

Ontem, como se diz aqui na Espanha, recebi “una paliza” (uma surra) nesse espaço dominado numericamente e discursivamente por pessoas europeias, o que me custou meu sono, minha saúde mental, minha alegria, e inclusive minha vontade de seguir ou não vivendo aqui. Mas o que me consola é que fazendo o exercício de imaginar o rosto de cada uma das pessoas com quem trabalhei no SAJU da UFRGS, ou na AJUP da Universidade de Brasilia, dxas companheiras de militâncias que fiz Brasil afora, imaginando o rosto dos meus melhores amigxs e interlocutorxs teóricxs e políticxs, tenho a convicção de que elxs teriam atuado da mesma maneira que atuei, que não se calariam, que mostrariam resistência, que um outro mundo é possível, pois já o vivi – às vezes esqueço do que é possível fazer com um pedaço de chão e uma roda de pessoas, com um pedaço de lã e um pouco de giz. As vezes esqueço de que já fiz parte de um projeto de universidade e de educação popular que me fazia despertar a cada dia cansada, mas com brilho nos olhos. Aqui nos matam, amigxs. Aqui matam nossos sonhos, nossa esperança, e nossa capacidade de ser sujeito. Ansiosa por colocar os pés em solo brasileiro, onde impera o caos, mas onde os sonhos (e xs sonhadorxs) estão vivos (e resistem).

 

Com igual intensidade e pertinência a sua Novíssima Carta de Oviedo (Carta para o Zé):

Essa é uma carta para o Zé, o professor titular da prestigiosa Universidade de Brasília, que no auge da carreira acadêmica, sendo hoje um dos maiores intelectuais do país, se permite ser chamado apenas de “Zé”. Hoje não é um dia fácil para mim, é um dia em que minhas mãos pesam e meus olhos seguram lágrimas de cansaço. Por caminhos imprevistos vim parar em meio a epistemologias europeias, onde parece que a crítica não é parte indispensável nem mesmo do feminismo. Experiências frustradas  e silenciadoras dentro e fora da academia, colonialidades e exclusão dentro e fora da assembleia feminista. Nos dizem que o inimigo é o outro, que não podemos perder tempo brigando entre “nosotras” enquanto avança o patriarcado, o inimigo está lá fora, dizem. E assim vamos apagando nossas diferenças, homogeneizando e assimilando, ignorando as feridas e as violências (micro, macro, e de todos os tamanhos), sem enfrentar o opressor que mora em cada uma de nós. Meu corpo se transforma em um bau de ressentimentos, de coisas não ditas, ou de arrependimento pelo dito e nunca compreendido. A necessidade de inclusão e aceitação dentro do sistema acadêmico europeu em um contexto de imigração pode transformar a feminista descolonial mais feroz em uma ovelha assustada, temerosa por ser ainda mais excluída. Me calam? Me calo?

Mas tudo isso é sobre mim. Voltamos ao Zé. O professor que mesmo após tantas distâncias sempre me marca em suas publicações, que continua me pedindo cartas, que continua estimulando-me a escrever, o professor que ainda não desistiu de mim. Em dias como esse, em que as lágrimas caem fartas diante de tanta incompreensão, só consigo pensar na família político-afetiva que a UnB me deu, e da minha vontade de atravessar um oceano correndo. Quero voltar para a salinha cheia de livros amontoados do Zé, que organizamos a muitas mãos em pleno domingo, descobrindo tesouros empoeirados. Nosso pequeno espaço de confiança onde a crítica não era somente permitida, mas era a base de qualquer avanço.

É essa encarnação, esse sentipensar corazonado que mostra no trabalho uma autoria vivencial. Patrícia traz em seu texto uma desenvoltura e um conhecimento sobre a realidade europeia e espanhola, que poucos indígenas tem igual a ela, uma alienígena em território continental. Ela expõe os enunciados políticos dos programas partidários e das organizações da sociedade civil com um domínio que não é comum entre os nacionais da Comunidade Europeia. Volto à tese de Patrícia, anotando que ao lado do existencial ela acumulou elementos elucidativos de seu tema, preparando etapas analíticas em estudos que lhe permitiram aplicar à tese, elementos de sustentação aos seus argumentos, entre eles, parte da bibliografia, seu estudo em coautoria com Hernández Martínez, no qual concluem o impacto que estereótipos carregam para a vida cotidiana, de mulheres imigrantes. É assim, que a tese investiga as experiências das mulheres imigrantes na Espanha, principalmente de origem latinoamericana, a partir das representações no cinema documental no período de 2009 a 2021. Conforme seu resumo:

Analisam-se as violências que perpassam suas experiências cotidianas no espaço transnacional globalizado, produzidas por processos de colonialidade, racialização e subalternização que obstaculizam o exercício pleno de sua cidadania e de seus direitos humanos. O objetivo geral é identificar como as mulheres imigrantes geram estratégias de resistência a essas violências a partir da criação de um sujeito coletivo que reivindica novas formas de cidadania mais flexíveis, buscando romper com o modelo de cidadania excludente baseado no pertencimento ao estado-nação. Os objetivos específicos são: 1) Analisar os efeitos que a colonialidade segue produzindo sobre as experiências das mulheres imigrantes na Espanha, especialmente das mulheres de origem latinoamericana; 2) investigar que tipos de discursos e representações circulam no espaço transnacional espanhol sobre as mulheres imigrantes; 3) analisar criticamente as representações produzidas pelo cinema documental independente sobre as mulheres imigrantes, e como contribuem na luta pelos direitos humanos dessa coletividade. A metodologia utilizada baseia-se na análise discursiva de um corpus de curta e média-metragens de produção independente, com o auxílio da ferramenta de investigação qualitativa Atlas Ti. O marco teórico que orienta este trabalho situa-se no campo dos estudos feministas, a partir de uma perspectiva interseccional e decolonial. Conclui-se que as mulheres imigrantes são agentes ativos nos processos de transformação social que ocorrem na Espanha, produzindo lutas sociais por meio de práticas coletivas antirracistas, feministas e transnacionais que desestabilizam o próprio conceito de estado-nação e os limites formais da cidadania.

 

Localiza-se já aí uma nota de singularidade. A adoção metodológica da linguagem do cinema – cinema documentário – para corpus da interpretação do objeto da tese será uma extravagância? Já me dediquei a essa questão quando fiz o prefácio do livro DIREITO NO CINEMA BRASILEIRO. Carmela Grüne (org). São Paulo: Saraiva, 2017.

 Para mim, conforme expus no prefácio, a obra não inaugura uma vertente de interesse para o conhecimento do Direito e suas formas de difusão, incluindo o ensino e a educação jurídicas. As relações entre Direito, Arte, Literatura, Teatro e Cinema formam uma Paidéia em alcance clássico e dispõem de um catálogo expressivo para o confirmar.

No plano epistemológico, a propósito, tem sido estimulante a vertente que trabalha a interlocução interdisciplinar e complexa para acentuar o diálogo entre saberes, demonstrando que o conhecimento não se realiza por uma única racionalidade, mas, ao contrário, pela integração entre diferentes modos de conhecer que nos habilitem a discernir o sentido e significado da existência e a elaborar sínteses interpretativas que além de nos permitir compreender o mundo, contribuam para transformá-lo, conforme, entre todos, sustenta Boaventura de Sousa Santos. Trata-se, como acentua Roberto Lyra Filho (A Concepção do Mundo na Obra de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972; Filosofia Geral e Filosofia Jurídica, em Perspectiva Dialética, in Palácio, Carlos, S.J., coord. Cristianismo e História, São Paulo: Edições Loyola, 1982), de operar padrões de esclarecimento, recusando o monólogo da razão causal explicativa, para abrir-se a outras possibilidades de conhecimento: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica; o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; o divertir-se, da atitude lúdica; o revelar, da atitude mística.

Tem razão Eduardo Lourenço, não só em sustentar a unidade da poesia fernandiana (Fernando Pessoa), mas em suscitar a totalidade que abarca os seus aparentes fragmentos heterônimos, para indicar que nesse processo o problema central continua a ser o do conhecimento. Para Lourenço (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, publicado na edição brasileira do livro O Mito da Saudade, Editora Companhia das Letras), os avatares de Pessoa “representam uma tentativa desesperada de se instalar na realidade”.

Marx não havia ainda com O Capital analisado a estrutura econômica para, num certo modo de produção explicar a formação da mais-valia, e bem antes o Padre Vieira, artisticamente, a exibiu tal como está no Sermão XIV do Rosário: “Eles mandam e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto do vosso trabalho, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que o de vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: ‘sic vos non vobis melificatis apes’ (assim como vós, mas não para vós, fabricais o mel abelhas)”.

No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja, para caracterizá-las como “ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social”.

            Para além do prefácio tratei do tema na minha recensão sobre o livro, lançada na Coluna Lido para Você que o Jornal Estado de Direito, sob a direção editorial da advogada Carmela Grüne, e que está também publicada no 1º volume do livro Lido para Você. Direito, Cinema e Literatura. São Paulo: Editora Dialética/Jornal Estado de Direito, 2023, p. 25-40).

Recorto as ricas e plurais contribuições coligidas no livro, com temas que trazem ainda a vinculação em algumas abordagens, também da questão política, por exemplo, a vivida sob a sombra do autoritarismo obscurantista, que resultou em censura, em tortura, em exílio, em assassinato político, para por em relevo a contribuição do cinema documentário.

Aludo ao volume, o nº 7, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et allli (orgs). Brasília: Centro de Educação a Distância – CEAD/NEP/UnB- MJ/Comissão de Anistia, 2015), inclui um texto do cineasta, expoente do documentarismo brasileiro, meu colega de UnB, Vladimir Carvalho (“A Resistência em Brasília – um breve testemunho”), exemplar a esse propósito (págs. 69-70):

Neste mesmo ano de 1971, por mais que tentasse evitar, confrontei-me com o esquema de repressão do Estado discricionário: meu primeiro longa-metragem, O País de São Saruê, foi liminarmente proibido pela Censura e mais do que proibido, interditado em todo o território nacional. O veredito dos censores, como está no Diário Oficial da União, incluía uma justificativa afirmando que o documentário, imaginem, ‘feria a dignidade e os interesses nacionais’. Decidi, então, que não iria desistir e inscrevi o filme na competição do Festival de Brasília; para minha surpresa, ele foi selecionado. Entretanto, para purgar os meus pecados, a direção da Fundação Cultural, que tinha como presidente do seu Conselho José Pereira Lira, ex-chefe de polícia no Governo do general Eurico Dutra, foi taxativa, e, dias depois, recusou a decisão da Comissão de Seleção. Ficava o dito por não dito. … apelei e fui sozinho e contrafeito ao velho Pereira Lira, homem tosco, servil aos poderosos, herdeiro dos coronéis do Piancó, na Paraíba. Disse-me, seco como uma múmia, despachando-me: ‘Se esse seu filme fosse boa coisa, não teria sido preso na Censura’. Ainda insisti, indo bater na porta do gabinete de Rogério Nunes, manhoso e sibilino chefe da Censura Federal. E aí foi a vez da mais descarada farsa. Apanhou o meu processo e foi despachar com o general Canepa, o temível chefão da Polícia Federal; duas horas depois, voltou dizendo que o Ministro Alfredo Buzaid estava muito preocupado com o que lera na imprensa e, temendo pelo festival, desaconselhara qualquer liberação. Resumo da ópera: o O País de São Saruê foi substituído por uma xaropada esportiva chamada Brasil Bom de Bola, para adular o ditador Médici, que havia recebido em praça pública os vencedores da Copa de 70, objeto do documentário.

Em Vladimir, o documentário é uma maneira de se apropriar do real para significa-lo, social e politicamente. Veja-se o seu Conterrâneos Velhos de Guerra: Conterrâneos Velhos de Guerra é uma tentativa desesperada para reter a memória que se esgarça, que se esvai entre os dedos do esquecimento, quando se trata da história dos vencidos, num país como o nosso. Sem esses depoimentos de sobreviventes, sem essas conversas às vezes desencontradas sobre os tempos da construção de Brasília pouco restará além da grande obra de concreto armado frio e indiferente” (Conterrâneos velhos de guerra. Um filme de Vladimir Carvalho. Brasília: GDF/Secretaria de Cultura e Esporte/Fundação Cultural do DF, 1997).

O que nos revela Conterrâneos Velhos de Guerra, comenta a socióloga e professora da UnB Nair Heloisa Bicalho de Sousa, autora de Construtores de Brasília. Estudo de Operários e sua Participação Política. Petrópolis: Editora Vozes, 1983, é uma história ao avesso dos relatos oficiais de Brasília, [que] põe em cena a figura do candango simbolizado nos milhares de migrantes nordestinos que vieram para a capital da esperança trazendo o desejo de uma vida nova e feliz [mas que] atraídos pela propaganda desenvolvimentista de Juscelino, [têm] os sonhos trazidos na bagagem…pouco a pouco se desfazendo na árdua jornada de trabalho cujo relógio de ponto era a data da inauguração da capital (Uma elegia aos candangos: a outra face da história. In Conterrâneos Velhos de Guerra. Um filme de Vladimir Carvalho, op. cit.).

Sugiro a leitura completa do texto de Vladimir Carvalho, conforme a referência indicada, em tudo ilustrativo do quadro hostil que o autoritarismo esboça para escapar ao modo artístico de fazer a leitura simbólica do social, do político e do jurídico. E, no ambiente universitário, também afetado por essas interferências, de que modo o conhecimento crítico, nas suas múltiplas expressões, se preserva gerando formas sutis de resistência. Assim também em relação ao cinema. De fato, conforme ele conclui o seu texto (pág. 71): “Foi no clima dessa reconstrução (da Universidade de Brasília) e como pedagogia para a superação do período autoritário, que realizei ‘Barra 68 – Sem perder a ternura’”.

Tal qual Vladimir, também trazem uma filmografia social e de resistência a contrapelo, os Rocha-Oliveira, meus queridos amigos e compadres, Ana Maria Rocha e sobretudo o jornalista, escritor e cineasta Jorge Oliveira, especialmente com Perdão Mister Fiel uma versão que sangra com a tortura a vida do operário sequestrado do chão da fábrica pela ditadura militar cruenta que marcou a memória política do Brasil entre os anos de 1964 e 1985 e que é um libelo para o nunca mais, para o que não mais aconteça.

No primeiro capítulo, com o título “Cuestiones metodológicas”, ela aborda a motivação de suas escolhas metodológicas do estudo, esboçando o panorama atual do cinema documentário social e feminista na Espanha. Esclarece como guiou para a seleção dos filmes, o desenvolvimento teórico e temático do estudo, seguindo os critérios que indica: a) Diversidade dentro da singularidade, ou seja, a ocorrência de múltiplas narrativas de mulheres imigrantes, notadamente de mulheres latino-americanas; 20 disponibilidade, isto é, estar disponível em plataformas audiovisuais abertas ao público de forma gratuita (YouTube e Vimeo); 3) forma de produção, vale dizer, ter sido produzidos de modo independente, por agentes da sociedade civil. Com esses critérios selecionou obras que estrearam entre 2009 e 2021, em sequência cronológica: Las Migrantes (2009), dirigida por Samuel Sebastián; Un viaje a través de Mujeres Pa’lante (2012), dirigida por Tanja Wol Sorensen; Mujeres Inmigrantes y Resistencias (2016), dirigida por Jon Manterola; Vidas invisibles: Mujeres migrantes bajo el plástico (2020), realizado por LA COSECHA Producción Audiovisual de forma colectiva; Cuidar entre tierras. ¿Quién sostiene la vida cuando las mujeres migran? (2020), realizado por CooperAcció y La Directa de forma colectiva; y, finalmente, Las Nadie (2021), dirigida por Elisa Martín Gómez.

No segundo capítulo, “Colonialidad y eurocentrismo: Efectos del passado en las migraciones contemporáneas”, cuidou de examinar como se constituíram os processos históricos que conformam a colonialidade de gênero, de saber e de poder para mostrar que as populações latino-americanas continuam vivenciando os efeitos do passado colonial em seus territórios de origem, assim como através de suas trajetórias migratórias nas sociedades de destino. Analisa, nesse passo, o ambiente hostil das migrações na Espanha e na Europa, em sua conexão com essa colonialidade, revelando essa hostilidade nas narrativas (discursos, programas) populistas, racistas e ultranacionalistas, nítido em grupos de extrema-direita. Analisa também, a feminilização das migrações na medida em que há uma subalternização da outra migrante (discursos sanitário, político, jurídico etc).

No terceiro capítulo, “Representaciones de las mujeres inmigrantes: Estereotipos, subalternidad y otredad”, a atenção se concentra nas formas em as mulheres migrantes são represengtadas nos meios de comunicação, pelos efeitos significativos no imaginário da população autóctone. Se detêm na análise da posição específica das mulheres latinoamwericanas, e dos estereótipos que designam as suas experiências (serviçal, roubamaridos, prostituta). Nesse capítulo a identificação do corpus da pesquisa, estabelecendo a conexão entre as realidades examinadas e o argumento dos documentários.

No quarto capítulo, “Mujeres que cuidan: Trabajo reproductivo, redes y activismos en los espacios transnacionales”, o foco são as migrações das mulheres latino-americanas à luz do conceito “cadenas globales de cuidado”, em cuja formulação se indica a existência de um sistema de transferência emocional gerador de mais valia, catalizador do deslocamento do afeto dos sujeitos no trânsito entre os territórios do Sul para o Norte Global.

Desde esse deslocamento, analisa as perspectivas críticas que esse conceito move, como a ideia de “tramas transnacionales del cuidado” com a qual seus formuladores propõem uma complexização deste modelo de análise numa perspectiva decolonial.

Finalmente, no quinto capítulo, “Nuevas ciudadanías migrantes y diaspóricas em los contextos transnacionales”, procura aprofundar o debate sobre o que se tem construído na modelagem liberal e moderna da cidadania ainda predominante nas sociedades europeias, para identificar formas de membresía (pertencimento?), que ligam os indíviduos ao estado-nação como sujeitos de direito. Mostra como a realidade do estado-nação se erode enquanto suas fronteiras territoriais e simbólicas se desestabilizam pelo impacto das migrações contemporâneas de onde emergem expectativas de novas cidadanias migrantes transnacionalizadas que se constroem a partir de pertencimentos híbridos e múltiplos (pense-se o trânsito de expectativas em territórios espanhóis como Ceuta, encravado em costa africana).

Ela submete a tensão epistemológica conceitos como denizenship (que traduz multiplicação dos status jurídicos e o surgimento de novas formas de “cidadania parcial”, contrapondo as noções de Denizens e de Citizens (cf.  Denizens and Citizens in a World of International Migration, de Tomas Hammar, 1990), comemoradas como sinais de abertura de uma nova era de expansão e multiplicação dos direitos.

Para a autora da tese, as cidadanias parciais não respondem satisfatoriamente às demandas de direitos das pessoas migrantes, e restam delirantes de um marco amplo de salvaguardas aos direitos humanos dos migrantes.

Com essa crítica Patrícia avalia as múltiplas propostas de novas cidadanias enunciadas no contexto da globalização e das cidades transnacionais: open borders (Carens 1987), ciudadanías postnacionales (Soysal 1994), desnacionales (Sassen 2003) y flexibles (Braidotti 2002), entre outras.

Finalizo com a própria Patrícia, me valendo de sua Segunda Carta Novíssima de Oviedo, logo que ela se deslocava do Programa Erasmus Mundus Master´s Degree in Women’s and Gender Studies na Universidade de Bolonha e se engajava no da Universidade de Oviedo, para realizar o doutoramento que com brilho conclui.

Nessa Carta ela fere um ponto interpelante: As origens do anti-intelectualismo, ou sobre o crime de ser intelectual, um texto autoreflexivo, com a proposta, ela assim o finaliza, de só traz[er] perguntas, e não respostas, mas pode[r] encontrá-las juntas/os.

Releio a Carta agora, à luz, já não das perguntas que eram ali lançadas, mas das respostas que Patrícia, ela própria, oferece agora, com a sua Tese:

Na última década, ao longo dos governos do Partido dos Trabalhadores, sujeitos das classes populares ingressaram no sistema de educação superior motivados pela criação/ampliação de políticas afirmativas, pela expansão das universidades públicas e de suas vagas (Reuni), pela possibilidade de bolsas em universidades privadas (Prouni), pela reformulação e expansão do ENEM como prova de acesso, pelas novas dinâmicas de mobilidade regional através do SISU. Para a classe trabalhadora, entrar na universidade nesta época era sinônimo de cursar uma ou duas disciplinas em uma universidade privada, acumulando uma dívida que se triplicava de forma mágica, sem nunca chegar a se graduar. Um novo mundo então se abriu para muitas pessoas que não viam nenhuma possibilidade de ingressar no ensino superior. Aos poucos, compreendemos que este era um futuro possível de ser sonhado, e um novo imaginário coletivo nasceu para jovens das classes populares.

Eu, junto a tantas/os companheiras/os, fui uma destas pessoas, e me sinto na obrigação de analisar de perto minha responsabilidade na construção do retrocesso que hoje presenciamos, que encontra sua expressão máxima na figura de Bolsonaro – o homem mediano, como brilhantemente apontou Eliane Brum.  Uma nova geração jovem vinda das classes baixas ingressou na universidade e descobriu dentro ou ao redor dela seus primeiros espaços de militância. Estudantes pretos, pardos, indígenas, oriundos de escolas públicas e classes populares não tiveram somente seus destinos afetados pela educação superior, mas também foram responsáveis por tornar a universidade mais politizada e socialmente comprometida. Queríamos fazer extensão popular, participar do centro acadêmico, ocupar, fazer greve, assembleia, plebiscito. Jamais poderia contar, em uma lista ou livro por mais grosso que fosse, a quantidade de companheiras/os de militância político-acadêmica que encontrei em muitos rincões deste Brasil. Éramos (somos) infinitos. O que então deu errado?

Estas pessoas, embebidas em novos conhecimentos, novas categorias analíticas, novas maneiras de pensar e de ver o mundo, retornaram a seus lugares de origem transformadas, quiçá falando outras línguas de difícil compreensão para os que nos viram crescer. Os movimentos sociais de esquerda passaram a receber, de forma cada vez mais frequente, a uma nova categoria de militante, inquieta e multitarefas, dividida entre os muros da universidade e a rua. Na busca por uma universidade aberta e popular, buscamos maneiras de desenvolver uma ciência crítica através de metodologias variadas: pesquisa-intervenção, pesquisa-ação, observação-participante, pesquisa-militante, as alternativas eram muitas. Queríamos ouvir a voz dos sujeitos, trabalhar ao seu lado, construir perguntas a partir de suas demandas mais urgentes. Mas sabemos que nem sempre (ou quase nunca) a prática dá conta das ambições da teoria.

Por outra parte, as discussões dentro dos movimentos de esquerda ganharam notas de academicismo. Houve uma intelectualização das esquerdas na medida em que as classes populares se apropriavam dos espaços, da linguagem e dos conhecimentos da/na universidade. Nem mesmo o feminismo saiu ileso. E não teria porque sair, já que possui uma longa e exuberante tradição intelectual no campo dos estudos de gênero. Termos complexos, categorias que hoje ganham as redes sociais e a boca do povo (identidade de gênero, interseccionalidade, patriarcado…) encontram suas origens em livros empoeirados ou em arquivos pdf em inglês. Mas este conhecimento se expandiu para fora dos livros e tomou os espaços de militância. Foram comidos, digeridos e vomitados, como bem manda a nossa antropofagia.

Em meio a todas estas transformações, lugar de destaque merece a educação popular – esta mesma difundida por esta figura demoníaca chamada Paulo Freire. A educação popular, velha conhecida, se renovou na última década e não se deixou seduzir pelo prestígio das aulas magna:  não se esqueceu da necessidade de equalizar as linguagens, de trabalhar “com” o povo e não “para” ele, ao lado e não à frente. Este texto, por sinal, não tem a menor pretensão de chegar às classes populares. Esta é uma mensagem para os meus pares, vocês intelectuais. Porque hoje é isso que eu sou, e reivindicar meu lugar somente como “militante” ou “ativista” não seria honesto. Me dirijo especialmente àqueles/as que permaneceram na vida acadêmica, que seguiram com mestrados e doutorados, sonhos ainda mais impensáveis em um passado não tão distante. Estamos conscientes de pertencer à elite intelectual de um país tão sofrido quanto o Brasil? Qual o nosso papel em encontrar soluções para a crise atual?

A lógica é mesmo perversa. Vejamos: uma parcela expressiva de jovens das classes populares chegou à universidade, nos apropriamos de linguagens e categorias complexas que nos permitiram formular novas questões e compreender melhor os processos de opressões. Nos “empoderamos” coletivamente, deste empoderamento que os conservadores odeiam. Nos capacitamos para discutir frente a frente com as elites econômicas e intelectuais que ocupam os lugares de poder do país. Mas algo saiu tão errado ao longo do caminho que hoje são as próprias classes populares, junto às elites pouco instruídas ou mal intencionadas, quem nos acusam do crime do intelectualismo e do “politicamente correto”.

Às vezes tudo isso me lembra algo que costumávamos dizer durante a infância entre as meninas: – ela “é muito cheia”, “ela se acha”, não gosto dela porque “quer aparecer”. Talvez os jovens de classes populares que ascenderam na última década foram picados pelo bicho da vaidade, e outra parte dos brasileiros pelo bichinho dos ciúmes. – “Não venha com esse papo ‘politicamente correto’ tentando me educar porque você não é melhor que eu”. O estudante entusiasmado na mesa do almoço de domingo não entende como o tio pode desprezar tudo aquilo que aprendemos com rigor científico, reduzindo tudo ao campo da mera opinião. – “Mas tio, os direitos humanos se difundiram diante das atrocidades da segunda guerra mundial…”. E o tio sentencia: – “Tudo bandido”. Fim da discussão. Sabemos que esta tragédia democrática foi gerada por múltiplos e complexos fatores – inclusive de ordem global. Mas isso não nos exime da responsabilidade de descobrir qual foi a nossa dose de contribuição nisso tudo. Ah, esqueci de mencionar. Este texto só traz perguntas, e não respostas. Mas podemos encontrá-las juntas/os.

 

Observe-se o trecho que grifei, em negrito, da Carta. Terá Patrícia, na Tese, a partir da alta indagação que os sujeitos e sujeitas de sua pesquisa lançaram ao pensamento crítico, à política, ao direito, encontrado na sua intelectualidade o eco que deveria ser o salto decolonial de sua leitura? Nas suas palavras: “embebida em novos conhecimentos, novas categorias analíticas, novas maneiras de pensar e de ver o mundo, [pode retornar] a seu lugar [qual é agora esse lugar?] de origem transformada, falando outras línguas de difícil compreensão para os que nos viram crescer (línguas que se espraiam na tese, aliás, sendo ela uma mulher latino-americana imigrante, escrita em escorreito espanhol elogiado pela Banca). Está em condições de fazer interlocução com os movimentos sociais de esquerda passaram a receber, de forma cada vez mais frequente, a uma nova categoria de militante, inquieta e multitarefas, dividida entre os muros da universidade e a rua. Na busca por uma universidade aberta e popular, buscamos maneiras de desenvolver uma ciência crítica através de metodologias variadas: pesquisa-intervenção, pesquisa-ação, observação-participante, pesquisa-militante, as alternativas eram muitas. Queríamos ouvir a voz dos sujeitos, trabalhar ao seu lado, construir perguntas a partir de suas demandas mais urgentes. Mas sabemos que nem sempre (ou quase nunca) a prática dá conta das ambições da teoria?

 

Patrícia, com muita correção no manejo das categorias, noções, conceitos, construídos ao longo de sua Tese, se move com lealdade aos balizamentos das proposta de O Direito Achado na Rua, sua origem político-epistemológica na Faculdade de Direito da UnB. Com efeito, com pertinência, não só exercita a sua própria inserção na construção solidária da proposta (ver p. 206 da Tese, afirmando o grau de incidência pessoal para ponderar as múltiplas interpelações que sua autoria registra); mas também, diligentemente atenta às emergências, as revisitações e as travessias (cf. http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-questoes-emergentes-revisitacoes-e-travessias/; atenção ao livro O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias: Coleção Direito Vivo, volume 5. José Geraldo de Sousa Junior et al (org). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021)

Notadamente, aquelas três referências balizadoras que estão invariavelmente presentes nos estudos e pesquisas e na bibliografia em permanente atualização de O Direito Achado na Rua, vale dizer, “1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como por exemplo, os direitos humanos; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias para estruturar as relações sociais solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade”.

A apreensão do tema proposto por Patrícia, já me ativara a observação que me proporcionara a leitura que fiz sobre outro texto recentemente publicado no Brasil, que toma também a cultura como mediação política para a formação de sujeitas e sujeitos periféricos (http://estadodedireito.com.br/a-formacao-das-sujeitas-e-dos-sujeitos-perifericos-cultura-e-politica-na-periferia-de-sao-paulo/). Refiro-me ao livro de Tiaraju Pablo D’Andrea. A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e política na periferia de São Paulo. São Paulo: Dandara Editora, 2022, 288 p.

Em minha leitura do livro de Tiaraju, considero que a obra, por sua autenticidade, contribui para robustecer meu argumento duplo, sobre o espaço ressignificado e sobre as subjetividades instituintes, algo que eu divisara quando participei de banca examinadora na UnB da dissertação de mestrado de Willy da Cruz Moura e logo, no prefácio feito a pedido do autor, sobre temática em que essas questões são alinhadas. Refiro-me ao livro, Na Calada da Noite: processos culturais e o Direito achado na noite em Brasília, desdobrado da Dissertação de Mestrado Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o Direito achado na noite (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. CEAM/Universidade de Brasília, 2022).

Logo no prefácio que elaborei a pedido do autor, aludo aos referenciais, encontrados no trabalho, que vão dar ao Autor, confiança para aventar categorias inéditas como “a noite como espaço”, nessa fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos.

Meu ponto é que pode-se falar em espaço político, o território no qual “sujeitos podem adquirir consciência coletiva, estabelecer redes, operar afetos, desenvolver práticas sociais, visibilizar e consolidar direitos, conduzir transformação social emancipadora, estruturar solidariedade e materializar alternativas contra-hegemônicas, como sugere o percurso de O Direito Achado na Rua”. Espaços que se afiguram, ontologicamente, nesse passo citando a mim e a meu colega co-autor Antonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D‘Plácido, 2016) como lugares  de criação e realização do direito, apresentado e posto à disposição do povo na qualidade de sujeito histórico com capacidade criativa, criadora e instituinte de direitos, e, metaforicamente, como a esfera pública onde se reivindica a cidadania e os direitos, onde se agregam cidadãos, onde se lhes protege da dispersão e da desmobilização.

Espaços de Cidadania, como sustenta Milton Santos, que formam “cidades educadoras”, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção das cidades, quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa, conforme lembram Sara da Nova Quadros Cortes e Cloves Araújo, em belo texto – “Dialética Social no Rastro dos Pensamentos de Roberto Lyra Filho e de Milton Santos: aportes teóricos no campo do direito e da geografia” – também publicado nesse dia 1º de setembro, na Revista Direito.UnB (volume 6, número 2 – maio/agosto 2022), com um dossiê em homenagem a O Direito Achado na Rua e a Contribuições para a Teoria Crítica do Direito.

Em Patrícia, na Tese, essa apreensão vai corresponder ao que ela caracteriza como construção de espaço político próprio para abrigar as demandas específicas das mulheres imigrantes em face dos riscos de sofrer processos de dominação por parte de seus pares masculinos nas associações mistas quando evitam os processos de assimilação que podem ter lugar nas associações conduzidas por pessoas autóctones (final do capítulo 4, p. 192).

Assim que, recuperando do documentário, ela surpreende a jovem que toma parte em marcha e diante da câmera testemunha: “Yo he venido aquí por reclamar un derecho, el derecho al paro, el derecho a tener una vida más digna, a un trabajo que sea reconocido, porque realmente no es reconocido el servicio doméstico, bueno, también a demostrar que somos mujeres y valemos mucho”(18’08”).

Patrícia considera, a partir de Mujeres Pa’lante , que se fazem  visíveis as formas em que as mulheres imigrantes se organizam para preencher as lacunas deixadas pelo Estado, evidenciando as múltiplas discriminações jurídicas que sofrem pela ausência de cidadania transnacional (Capítulo 4, p. 192-193).

E, enquanto se articulam em redes de ativismo, amizade e solidariedade, formam alianças migrantes e feministas nos espaços transnacionais para instituir formas alternativas de exercício da cidadania ainda negadas às mulheres imigrantes pela juridicidade oficial.

           De que trata ao fim e ao cabo a Tese é aferir a emergência dessas novas formas de cidadania transnacional, multicultural e flexível, derivada da lutas dos coletivos migrantes, em especial dos movimentos feministas decoloniais e antirracistas, para organizar as expressões instituintes, contra-hegemônica, ‘de abajo”, desobediente do enquadramento bem comportado das classificações ‘de arriba’ dos enunciados globais neoliberais. Diz Patrícia, abrindo caminho para formulações mais amplas e alinhadas com os direitos humanos. Todavia, direitos humanos que seja a resultante das lutas concretas por reconhecimento da dignidade material dos sujeitos em ação política para emancipar-se, direitos humanos achados na rua, nas aldeias, nas águas, nas florestas, nos campos, nos cárceres, nos manicômios, na noite, nas favelas, bairro adentro (cf. ESCRIVÃO FILHO, Antonio e SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D‘Plácido, 2016; 2ª reimpressão 2019; HERRERA FLORES, Joaquín. La Reinvención de los Derechos Humanos. Andaluzia: Atrapasuñoes, 2008; SÁNCHEZ RUBIO, David. Derechos Humanos Instituyentes, Pensamiento Crítico y Praxis de Liberación. Argentina/España/México: Akal/Inter Pares, 2018; LEMOS, Eduardo Xavier. Direitos Humanos Desde e Para a América Latina: Uma Proposta Crítico Dialética a Partir de O Direito Achado na Rua. Tese em cotutela apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e ao Programa de Doctorado en Derecho de la Universidad de Sevilla. Brasília, 2023).

Para essa perspectiva instituinte Patrícia Vilanova Becker confirma a sua adesão aos fundamentos e pressuspostos, à concepção e à prática de O Direito Achado na Rua, nos termos por ela postos, p. 234-235:

A este respecto, me gustaría accionar una potente doctrina jurídica latinoamericana acerca de la construcción de los derechos humanos y fundamentales: “El Derecho desde la Calle” (Sousa Júnior 1993; Sousa Júnior 2012), em portugués O Direito Achado na Rua (ODANR). El Derecho desde la Calle consiste en “uma concepción del Derecho que emerge, transformadora, de los espacios públicos –la calle– donde se da la formación de sociabilidades reinventadas que permiten abrir la conciencia de nuevos sujetos para una cultura de ciudadanía y de participación democrática” (18). El Derecho desde la Calle surge para dar respuesta a los vacíos de derechos que se instalan entre las garantías previstas en el ordenamiento jurídico y su real efectividad en la vida de los sujetos. Por otra parte, la teoría del Derecho desde la Calle hace visible la existencia de derechos que se forman y se significan en el espacio público (representado por la calle) a través de las luchas sociales y que, sin embargo, no encuentran respaldo en la ley. En este sentido, “a rua aí, evidentemente, é o espaço público e, desnecessário explicar, o lugar simbólico do acontecimento, do protesto, do gesto paradigmático” (Sousa Júnior 1993).

La propuesta de Sassen (2003), aunque de forma no intencionada, dialoga con la doctrina jurídica del Derecho desde la Calle surgida en Brasil a partir de los años 1980. Está conexión es visible cuando concebimos que existe un contrato social invisible entre las personas inmigrantes y la comunidad autóctona, que puede ser fuente de derechos de ciudadanía no reconocidos por el Estado en sus esferas jurídicas. El Derecho desde la Calle nace de la trama corporal (Esguerra Muelle 2021) que atraviesa la experiencia vivida de las poblaciones inmigrantes, moldeando sus cuerpos, afectos y redes vitales en el país de destino. Para Sassen (2003), “la ciudad global se reconfigura como un espacio en parte desnacionalizado que permite reinventar parcialmente la ciudadanía” (109), por donde circula un número ilimitado de sujetos que habitan entre las tres posiciones dominantes de ‘el sujeto-ciudadano, el extranjero y el sujeto racializado’” (109). En este contexto, Sassen (2003) diferencia la ciudadanía desnacionalizada de la ciudadanía postnacional, en la medida que esta última propone un marco de ciudadanía exterior al estado-nación. En la ciudadanía desnacionalizada, “el centro de atención se desliza hacia la transformación de lo nacional, incluyendo también una nueva condición fundacional de la ciudadanía” (127), considerando que la ciudadanía, así como el significado de lo nacional, es una institución cambiante, capaz de expandirse y flexibilizarse.

 

Nas conclusões Patrícia fixa seu pressuposto (p. 276-281), expresso na Tese em português escorreito, extrema cortesia que me devota, afirmando que “através das experiências de ativismo retratadas nos documentários analisados, mostra-se que as cidadãs imigrantes exercem um “Direito Achado na Rua” (Sousa Júnior 1993; Sousa Júnior 2012) que desestabiliza as fronteiras políticas e o próprio conceito moderno de cidadania, que se baseia no pertencimento ao Estado-nação”.

Com efeito, caracterizado o espaço e designados os sujeitos, do que se trata é catalogar os achados, as categorias semantizadas e significadas na discursividade instituinte das subjetividades das mulheres imigrantes para integrar o rol numca plenamente quantificável mas sempre expansível, já que os direitos não são quatidades, estocáveis em almoxarifados normativos, mas relações, sem limite, salvo o vislumbrado a cada etapa utópica de emancipação humanizadora, prestes a ultrapassagem no percurso histórico.

São esses direitos de uma cidadania planetária distentida que vão se configurar os projetos de vida, reconhecidos pelas cortes internacionais de direitos humanos (Sentença de 19 de novembro de 1999, Caso Villagrán Morales y Otros – Caso de los Niños de la Calle, voto de Antonio Augusto Cançado Trindade: el proyeto de vida se encuentra vinculado a la libertad, como derecho de cada persona a elegir su próprio destino… El proyecto de vida envolve plenamente el ideal de la Decarción Americana de los Derechos y Deberes del Hombre de 1948 de exaltar el espíritu como finalidade suprema y categoria máxima de la existência humana.

É o direito à consulta livre e informada prevista no Convênio 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, em relação ao reconhecimento originais dos povos indígenas, tribais e originários, em relação à salvaguarda de seus usos sociais e modos de existir anteriores ao direito estatal positivado, permitindo a afirmação de identidades coletivas que demarcam as lutas atuais do povos indígenas em disputa sobre juricidades.

São os direitos da natureza, a pacha mama que levaram à classificação de um novo constitucionalismo latino-americano, constitucionalismo ecológico, constitucionalismo de transformação, constitucionalismo achado na rua.

É a semantização de categorias de luta por terra e território, descriminalizando o esbulho inscrito no conceito de invasão dos códigos penais de proteção da propriedade privada, para politizar com a categoria ocupação, que se define pelo cumprimento da função social da propriedade e de reconhecimento que o social realiza a promessa da constituição da reforma agrária como está na agenda das lutas de camponeses na sua articulação global conduzida pela via campesina.

Conforme promete Patrícia: no futuro, continuarei este processo investigativo centrado nas dinâmicas subalternizantes e racializantes que têm efeitos concretos nas vivências quotidianas das mulheres imigrantes, limitando as formas como são recebidas, vistas, representadas e localizadas na sociedade espanhola, mantendo sempre o objetivo de verificar as melhores maneiras de promover o seu desmantelamento.

 Espero que essa agenda inclua, com os pressupostos lançados na tese, organizar o catálogo, os novos direitos, as novas formas de cidadania, insurgentes e instituintes, inscritas pelos movimentos que as representam, no rol nunca completo de direitos que emancipam.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

quarta-feira, 22 de março de 2023

 

Diversidade e direitos humanos na universidade do futuro

Pensar a diversidade e os direitos humanos na universidade contribui para ampliar os diálogos e a luta por uma sociedade mais equitativa

 

O presente texto deriva de minha contribuição como expositor no encerramento da 9ª Conferência do Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa (FORGES), realizada de 20 a 22 de novembro de 2019 em Brasília, Brasil, na Universidade de Brasília (UnB), tendo como tema central “A integração do ensino superior dos países lusófonos para a promoção do desenvolvimento humano”, com o título: “Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória”.[1]

Aqui destaco alguns excertos do que está publicado, na medida em que guardam conexão com o tema proposto para esta edição de Ciência & Cultura – “Universidade do Futuro no Brasil” – e mais propriamente com o que trato em meu artigo “Diversidade e Direitos Humanos na Universidade do Futuro”.

Iniciei a minha saudação aos participantes da 9ª Conferência com uma evocação. Presente em Coimbra, na Sala dos Capelos, da vetusta universidade, nos começos da década de 2000, para um Congresso Portugal-Brasil, guardo em mim até hoje o sentimento marcado pela disposição de todos ali presentes, de construir caminhos para a uma história comum: “a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos”.[2]

Essas palavras, ditas pelo então presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, logo a seguir, seu vice-reitor, o professor António José Avelãs Nunes, assinalaram as distinções entre o Portugal português e o Brasil brasileiro, no que tange aos seus caminhos, nas condições daquele congresso. Mas se prestam também para designar as distinções entre o Portugal português e os países que formam a comunidade de povos de língua portuguesa, presentes nesta 9ª Conferência (Angola, Cabo Verde, Macau, Moçambique e certamente entre os participantes, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste) no que tange aos seus próprios e intercruzáveis caminhos, em que pese, lembra Eduardo Lourenço, “cada povo só o é por se conceber justamente como destino”.[3]

 

“A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenômenos mais dramáticos do nosso tempo.”

 

Temos, sim, os povos que se expressam em língua portuguesa, essa história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias. Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossos destinos?

Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções atuais do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.

Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando num bom português que ajude a interpretar os desafios que se colocam à nossa consideração. Retomo Avelãs Nunes: Nos últimos anos – diz ele – tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática. Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.

A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenômenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.

 

“A luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas ‘leis naturais’ do mercado ou da economia, implicando um espírito de resistência e um projeto político inspirado em valores”.

 

É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer “paraíso perdido”, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a atual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis dessa civilização fim-da-história.

Assim como essa globalização não é um “produto técnico” deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projeto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas “leis naturais” do mercado ou da economia, implicando um espírito de resistência e um projeto político inspirado em valores e empenhado em objetivos que o “mercado” não reconhece nem é capaz de prosseguir.

Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disso mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.

Até aqui, discorri seguindo Avelãs.[4] Mas, nesse diapasão, trata-se, pois, de indagar-se de que desenvolvimento se cuida, quando falamos em desenvolvimento. Essa é a questão proposta por Roberta Amanajás Monteiro, em tese defendida na Faculdade de Direito da UnB, sob minha orientação em 2018. Com o tema “Qual desenvolvimento? O deles ou o nosso? A Hidrelétrica de Belo Monte e seus impactos nos direitos humanos dos povos indígenas”, a pesquisadora apresenta exatamente a tensão entre o desenvolvimentismo e os direitos humanos a partir do estudo de caso da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e os seus impactos aos indígenas Arara da Terra Indígena Volta Grande e Juruna, da Paquiçamba. A pergunta central de sua tese interpela como ocorre a tensão entre projetos de desenvolvimentismo e os direitos humanos dos povos indígenas, e se os conflitos se inscrevem na matriz colonial de poder. Fundamentada na teoria da Colonialidade do Poder de Anibal Quijano e nos autores do pensamento decolonial, a metodologia eleita por Roberta Amanajás apoiada em investigação empírica, fornece os argumentos da constatação da incidência da ideia de raça no percurso do licenciamento ambiental do empreendimento.

Para a autora, numa aproximação sociológico-jurídica, a compreensão de que é a partir da ideia de raça que é negada a condição de sujeito de direitos e de conhecimento aos povos indígenas, consequentemente dos seus direitos de território, natureza, modo de vida e direito à participação e consulta prévia, a conclusão leva, necessariamente, à expectativa militante de construção de elementos de desenvolvimento a partir dos próprios povos indígenas.

 

“Interpelar a universidade para que ela se abra a novos modos de ingresso e de inclusão de segmentos dela excluídos. Alargar o âmbito das pautas pedagógicas que desenvolve e fazer circular no ambiente do ensino e da pesquisa novos temas, cosmologias plurais, epistemologias mais complexas e um diálogo mais amplo entre os saberes.”

 

Em Avelãs Nunes, a aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, enquanto se orienta para projeções que garantam o direito à vida plena, de homens e mulheres de carne e osso sim, porque ideologicamente o nosso percurso colonial separou seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.

Abri essa linha de problematização exatamente com um autor português, até para ponderar o lugar de Portugal no experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial é também uma condição para que a libertação e a emancipação sejam possíveis.

Para Paulo Freire, tão marcante em nossa cultura comum, a desumanização não é destino.

 

“A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”[6]

 

Com efeito, embora afirmem Ana Claudia Rozo Sandoval e Luís Carlos Santos[7] que:

 

“a disputa pela realidade é um traço comum dos filósofos, seja ele interpretando, desconstruindo, criando conceitos, mas o que está em causa é disputar a realidade. E para isso colocamos em crise o solo em que se pisa, como um lugar produzido à imagem e semelhança da produção de um discurso que legitimou historicamente a exploração e dominação, e o conflito estabelecido ao buscar filosofar-se caiu na armadilha da representação. Este é um dos primeiros elementos que precisam ser descortinados, a representação. Pois a imagem que se traduziu nos discursos era apenas a europeia. O exercício de pensar-se, o que é próprio da filosofia encontra-se no poço sem fundo, no beco sem saída da armadilha da representação europeia moderna, ocidentalizada na contemporaneidade. A perspectiva decolonial (ou estudos Modernidade/colonialidade) e as filosofias africanas colocam em discussão o epistemicídio e o semiocídio cultural. O conhecimento, e as formas de acessá-lo, e a diversidade cultural no fazer filosófico colocam em evidência outros modos de ser e fazer filosofia. Problemas não considerados filosóficos começam a ser problemas de interesse de outros sujeitos que foram negados pelo sistema mundo eurocentrado”.

 

Todavia, o núcleo de minha argumentação, busca em Boaventura de Sousa Santos sua proposição feita no espaço do Fórum Social Mundial de Porto Alegre uma bem elaborada proposta para a constituição de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais, atenta a essas exigências de um conhecimento emancipatório. Em Boaventura isso significa constituir oportunidades de emancipação que deem conteúdo eficaz a mecanismos do estado de direito, da democracia e dos direitos humanos para que não se contrafaçam em artificialismos enganosos que esvaziem “alternativas positivas geradas por um pensamento alternativo de alternativas e todas as possibilidades epistemológicas, teóricas e metodológicas aptas a realizar a tarefa política de superar a dominação capitalista, colonialista e patriarcal”.[8]

E o faço para salientar que esses pontos correspondem, em seus fundamentos, às expectativas que defendem uma universidade aberta à cidadania, preocupada com a formação crítica dos acadêmicos e mais democrática. Uma universidade, como lembrava Boaventura de Sousa Santos em sua recente visita à UnB, consciente de que “o que lhe resta de hegemonia é o ser um espaço público onde o debate e a crítica sobre o longo prazo das sociedades se podem realizar com muito menos restrições do que é comum no resto da sociedade” e que encontra no exercício da pluralidade tolerante a mediação apta a torná-la uma “incubadora de solidariedade e de cidadania ativa”.

Um modelo assim já se apresenta como proposição interpelante da universidade convencional, desde que ela se abra a, pelo menos, duas condições. A primeira é o dar-se conta da natureza social do processo que lhe cabe desenvolver. Não é condição trivial, porque ela implica opor-se à tentação de mercadorização do ensino e da pesquisa e consequente redução do sentido de indisponibilidade do bem Educação, constitucionalmente definido como um bem público, processo dramático e cruento em curso autoritário em muitos de nossos países, num projeto claramente hostil à ideia de universidade como valor social e ao conhecimento crítico como elemento nutriente de práticas e de pensamentos democrático e emancipatório.

A outra condição, é a de interpelar a universidade para que ela se abra a novos modos de ingresso e de inclusão de segmentos dela excluídos, a exemplo das políticas de ações afirmativas. Possibilita, assim, alargar o âmbito das pautas pedagógicas que desenvolve e fazer circular no ambiente do ensino e da pesquisa novos temas, cosmologias plurais, epistemologias mais complexas e um diálogo mais amplo entre os saberes. (Figura 1)


Figura 1. Políticas afirmativas contribuem para que as universidades se abram a novos modos de ingresso e de inclusão de segmentos dela excluídos, fazendo circular no ambiente do ensino e da pesquisa novos temas, cosmologias plurais, epistemologias mais complexas e um diálogo mais amplo entre os saberes
(Foto: Beto Monteiro/Secom UnB. Divulgação)

 

Ao fim e ao cabo, concluindo com o recorte que trouxe para meu artigo, na temática proposta para esta edição de Cultura & Ciência, pensar Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória, algo que, a meu ver, transparece nos debates acerca dos compromissos da instituição com a realização dos direitos humanos, é que libertar-se, emancipar-se, dizemos nós em nosso projeto acadêmico que denominamos O Direito Achado na Rua: “não é dom; é tarefa, que se realiza na História, porque não nos libertamos isoladamente, mas em conjunto”. E se ela não existe em si, o Direito de emancipar-se é comumente a sua expressão, porque ele é a sua afirmação histórico-social “que acompanha a conscientização de liberdades antes não pensadas (como em nosso tempo, a das mulheres e das minorias eróticas) e de contradições entre as liberdades estabelecidas como a liberdade contratual, que as desigualdades sociais tornam ilusória e que, para buscar o caminho de sua realização, tem de estabelecer a desigualdade, para nivelar os socialmente desfavorecidos, enquanto ainda existam”.[9]

Pensar a diversidade e os direitos humanos na universidade do futuro é cuidar de problematizar os modos de os conhecer e de os realizar, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos.

Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”.[10]


Referências
[1] REVISTA FORGES. n. Especial (2020): NÚMERO COMEMORATIVO DO 10.º ANIVERSÁRIO DA FORGES Publicado em 2020-11-19 (https://revistaforges.pt/index.php/revista/issue/view/8).
[2] Boletim da Faculdade de Direito – STVDIA IVRIDICA 48, Colloquia – 6, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999 / 2000.
[3] LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade Seguido de Portugal como Destino. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[4] NUNES, Antonio José Avelãs. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003.
[5] MONTEIRO, Roberta Amanajás. Qual desenvolvimento? O deles ou o nosso? Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Direito da UnB, 2018.
[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 11ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
[7] SANDOVAL, Ana Claudia; SANTOS, Luis Carlos. Estudos Decoloniais e Filosofia Africana: por uma Perspectiva Outra no Ensino da Filosofia. Revista Páginas de Filosofia, v. 6, n. 2, p.1-18, jul./dez. 2014.
[9] SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito como Liberdade: O Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Organizador). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Movimentos Sociais nos 50 Anos da UnB: Construindo uma Universidade Emancipatória. In RÊSES, Erlando da Silva (Organizador). Universidade e Movimentos Sociais. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2015.
[10] ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016; 2ª reimpressão 2019.

 


Capa. Universidade é local para se discutir direitos humanos e diversidade assim como problemas atuais da sociedade
(Antonio Scarpinetti/ Ascom Unicamp. Reprodução)
José Geraldo de Sousa Junior é professor jubilado (aposentado) da Universidade de Brasília (UnB) com vínculo de pesquisador sênior voluntário, atuando na Faculdade de Direito e no Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) em Direitos Humanos e Cidadania. É membro benemérito do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília.